Existe quem gosta de fazer as malas. Há outros, porém, que abominam tal ritual. Costumamos fazer as malas quando partimos de viagem, quando nos lançamos para um novo destino ou revisitamos algum lugar ou alguém em particular.
O movimento da viagem, pura dinâmica de saída ao encontro de algo, é uma metáfora que pode muito bem resumir a nossa vida. Recordo, enquanto escrevo estas linhas, as vozes de alguns anciãos que com a sua sabedoria me recordavam: “Não te esqueças, filho, que a vida é uma viagem. E é bem curta!”.
Pessoalmente, gosto de fazer as malas e de viajar. Gosto de ir ao encontro do mistério inexplicável do mundo visível e invisível. Aprecio o imponderável e o profundo de um local ou de uma existência, parafraseando as palavras em epígrafe de Kazantzakis.
Assim, viajar não significa necessariamente sair de casa. Exige uma atitude de disponibilidade face ao incógnito e ao que deseja ser conhecido. Acredito que todos conservamos um profundo desejo de ser visitados. No fundo, trata-se de contemplar a realidade – visível e invisível – com um olhar totalmente novo: «é educar os sentidos para ver o ordinário como extraordinário, o familiar como estranho, o mundano como sagrado, o finito como infinito» (Novalis).
Este novo olhar, tão bem retratado por Novalis, é sinónimo precisamente de preparar as malas. Por isso, talvez custe tanto fazer as malas: de tantas coisas que vemos, absorvemos e consumimos, eleger o essencial para nos colocarmos em marcha. Fazer as malas significa optar apenas pelo imprescindível, abandonando tudo o que vamos conservando de caduco e efémero.
Este Verão foi-me dada a possibilidade de fazer uma viagem até Castela, em Espanha. O mês de agosto foi passado entre os prados castelhanos, numa paisagem seca que nos abre o olhar – e o coração – a novos horizontes. A estância foi passada em Ávila, cidade que conserva a sua magnífica muralha intacta, as suas ruas medievais estreitas e cheias de rincões, com as suas gentes sóbrias e austeras, mas de coração grande. Enfim, Ávila del Rey, de los Leales y de los Caballeros. E de Santa Teresa de Jesus.
Não foi a primeira vez que viajei até à cidade amuralhada. Porém, desta vez esta viagem teve um sabor diferente. As muralhas estavam iguais, a catedral elevava-se e impunha-se com as suas pedras milenares, a casa-natal da Santa estava no mesmo sítio. Mudava, talvez, o meu olhar, a minha perceção, a minha atenção.
Ao regressar a Ávila, recordei-me de um livro que havia lido há poucos meses: um diário de viagens da autoria de Nikos Kazantzakis, filósofo e escritor grego do século XX (1883-1957). Também ele, há quase cem anos, visitou Espanha e recolheu nesta obra intitulada Do Monte Sinai à Ilha de Vénus, a sua experiência por paisagens hispânicas[1].
A sua visita a Ávila sem dúvida que o marcou profundamente. Foi precisamente a sua primeira paragem em Espanha. Quando lemos os diários das suas visitas a Toledo, a Granada ou a Córdova, o seu entusiasmo é inegável. Já para não falar da sua passagem por Salamanca, onde o jovem Kazantzakis se encontrou com Miguel de Unamuno e trocou com ele um diálogo épico.
Contudo, Nikos Kazantzakis foi atraído a Ávila não só pela beleza da sua muralha, pela sua história ou pela curiosidade de conhecer os seus habitantes. Quem o trouxe a Ávila foi, sem dúvida, Teresa de Jesus.
Não deixa de ser curioso que um intelectual e académico como Kazantzakis se deixasse afetar desta forma por uma mulher do século XVI que nunca se sentou numa cátedra universitária. A verdade é que Teresa impactou de tal forma este filósofo grego que este se viu obrigado a visitar o seu berço.
Nikos Kazantzakis, um claro leitor das obras teresianas, reconhece que Teresa foi uma heroína. Chega a compará-la a Dom Quixote. Teresa foi uma cavaleira que partiu numa aventura heroica sobre o largo território espanhol, mas sobretudo, que empreendeu uma viagem pelo seu interior.
Porque foi heroína, foi santa. Os santos são os heróis que combatem contra os moinhos do egoísmo, do comodismo, da mediocridade da vida. Teresa rompeu o ritmo humano da sua vida para se abrir a uma nova pulsação marcada pelo divino. Teresa fascinou-se de tal forma pelo humano que o seu olhar transcendia os limites visíveis da nossa condição.
Teresa não foi santa pelos fenómenos místicos que a acompanharam ao largo da sua vida, como bem compreendeu Nikos Kazantzakis: «A santidade não é um estado de exaltação ou o acto de valentia de um momento. Exige tesouros de paciência e de trabalho. Não é um assalto, mas uma guerra quotidiana no fundo das trincheiras, na sujidade e na lama. Assim lutava Santa Teresa»[2]. Teresa de Jesus lutava tanto quanto amava. As suas batalhas eram atos verdadeiros de amor. As suas lutas não repousam apenas nos dezassete conventos que fundou ao longo da sua vida. O seu amor de mulher incompreendida numa sociedade que não a reconhecia verteu-se em tantos e tantas que se cruzaram com ela, nas suas obras redigidas entre tantos problemas e doenças que a assaltavam. Teresa venceu porque amou até ao fim.
Mesmo no meio das dificuldades a mística abulense não perdia o sentido de humor. Recorda Kazantzakis que «algumas vezes, quando faltava o pão, o lume e a enxerga para dormir, Teresa pegava numa bandeja de folha e usava-a como um tambor para cantar salmos e dançar no meio do pátio do convento»[3]. Teresa era uma enamorada que sabia com todo seu coração que a beleza liberta e salva. Só um coração enlouquecido sadiamente pelo amor de Deus é que podia reagir desta forma às intempéries da vida.
Para Teresa, «viver santamente não queria dizer vaguear, pairar nos espaços e desligar-se das coisas deste mundo, mas sim trabalhar, resignar-se e amar. […] Paciência, lógica, alegria e bondade eram as quatro pequenas éguas que puxavam o carro de Santa Teresa e sua alma»[4]. Belo retrato pintado por Kazantzakis para resumir a santidade de Teresa de Jesus. Neste ano jubilar, ao celebrarmos os quatrocentos anos da canonização desta mulher (1622-2022), contemplamos um modelo de santidade desafiante que continua a iluminar os nossos dias.
Teresa de Jesus, mulher andariega, viajou muito ao longo da sua vida. Teresa aprendeu a fazer as malas e a colocá-las nas carroças que a levavam através de caminhos desconfortáveis ao desconhecido. Como seria para uma mulher fundar um convento de monjas de clausura no século XVI? Pelas suas cartas, compreendemos um pouco das dificuldades pelas quais passou Teresa.
Estas viagens pelas estradas de Espanha custavam-lhe menos porque primeiro fez uma viagem pelas moradas do seu coração e entregou-se totalmente ao Rei que quis servir sempre com total fidelidade e radicalidade. Os passos de Teresa não eram apenas seus, mas também de Deus e do seu Companheiro e Amigo, verdadeiro capitão da reforma teresiana.
A viagem de Teresa foi vivida com intensidade. Recorda-nos Kazantzakis que «a fé foi sempre o melhor método para e o mais fecundo para garantir a intensidade, não da vida futura, mas sim da que vivemos na terra»[5]. Teresa de Jesus é modelo de fé e de confiança no único necessário. A fé de Teresa ardia no seu coração de tal forma que se transformava em amor. Por isso, foi fecunda e, ainda hoje, continua a dar vida.
Enquanto passava por Ávila, no dia 9 de agosto, um amigo terminou a sua viagem: José Cardoso Marques (1955-2022). O Zé era uma biblioteca, amigo de boas leituras e de bons livros, como Teresa. Homem sábio e generoso, conhecia os livros como a palma da sua mão. Foi o Zé que me apresentou a Nikos Kazantzakis e me abriu a porta para viver várias epopeias literárias. Aqui em Ávila, recordo este meu amigo e presto-lhe esta simples homenagem.
Depois de uma viagem, regressamos a casa. Regressamos diferentes. A passagem de Kazantzakis por Ávila deixou-o diferente. A mim também. Termina dizendo: «Despeço-me de Ávila, despeço-me de Teresa. Noutros tempos, com certeza, esta chama teria outro aspecto, arderia de outra maneira: na Primavera divina dos tempos pré-socráticos, numa ilha grega, rodeada de alunas amorosas, Teresa chamar-se-ia Safo; da mesma maneira, no século vinte, transtornada pela injustiça, pela fome, pela dor e sem poder agarrar-se ao Deus antigo para transportar para uma outra vida a recompensa ou o castigo, a santa empreenderia uma outra cruzada e tomaria um outro caminho»[6].
Também eu, ao despedir-me de Ávila e de Teresa, agarrado a estas muralhas, peço-lhe que me dê a ousadia e a determinada determinação de viajar sem medo, confiado apenas n’Aquele que me dá a Sua mão para me guiar. Despeço-me de Ávila confiante e seguro no caminho de regresso. Já não regressarei pelo mesmo caminho, pois já não sou o mesmo que aqui cheguei. Regresso com o coração a arder com o exemplo e a santidade de Teresa de Jesus. Não sei que outras viagens terei de empreender, mas trago no coração a certeza de que jamais partirei só.
Agarrado a estas muralhas, agradeço a Teresa a sua vida, as suas batalhas, as suas palavras e os seus gestos. Agradeço-lhe as dificuldades, as dores, os padecimentos e os fracassos. Agradeço-lhe as dúvidas, as incertezas, as noites escuras e os dias claros.
Agarrado a estas muralhas, outrora agarradas por Teresa, peço-lhe a fé e a chama que eleve os nossos passos e nos faça caminhar – ou voar – num ritmo superior. Peço-lhe a confiança que me faça também exclamar: Solo Dios basta.
[1] Nikos Kazantzakis. Do Monte Sinai à Ilha de Vénus. Traduzido por Ana de Moura. Lisboa: Prelo, 1960.
[2] Kazantzakis, Do Monte Sinai à Ilha de Vénus, 106-107.
[3] Kazantzakis, 107.
[4] Kazantazkis, 108.
[5] Kazantzakis, 108.
[6] Kazantzakis, 109-110.