Nov 1, 2022 | Perspetivas

Pintora e Educadora Social

A dimensão do silêncio na relação de ajuda

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 O silêncio como desafio aos profissionais sociais

Na relação de ajuda a comunicação entre o profissional social e a pessoa com quem se intervém também o silêncio é caminho e verbo de escuta e compreensão da narrativa pessoal. Esta reflexão procura ainda explorar o silêncio como um modo outro de dizibilidade, mesmo se ferida.

          Ao longo do percurso de vida de uma pessoa, tal como ao longo da história da humanidade, a palavra é o que dando nome às coisas lhes confere sentido, por que possui poder criador. A linguagem e a história, porém, não se fazem só com palavras, mas também com vagidos e balbuceios, com música, através do indizível, e com o silêncio.

Proponho uma breve reflexão sobre o silêncio, sobretudo no quanto ele tem de instaurador de uma nova realidade (palavra, história, criação), por também eu estar convencida de que o “silêncio é um elemento da comunicação que se faz presente em qualquer ato comunicativo humano” (Padrão, 2009, p.92).

É certo que o silêncio possui muitíssimas nuances: existe o silêncio antes da tempestade e o da bonança; aquele antes do primeiro vagido do recém-nascido e o do durante o aleitamento; o criativo antes do eureka! e o do conflito que não encontrou ainda um canal para dizer-se; o da sublimidade e o da indizibilidade; o da paz e o da derrota após o zénite do último combate; o do desejo e o da saciação; o do grão de trigo que morre e o da pré-alvorada que já vai anunciado a fatigosa manhã; o dos prisioneiros e o do espanto; o silêncio entre dois estrangeiros e o dos enamorados… Tantos silêncios…

Parafraseando De Certeau (1982), poder-se-ia dizer que o silêncio não pode ser buscado fora da linguagem, mas naquilo que fica dito, que é, justamente, o lugar donde ele irrompe (p.200). Assumo também, entre nós, a carência/ausência de uma linguagem comum onde se instaure o lugar da conversação pela qual se dê, entre diferentes interlocutores, a comunicação através da palavra (e do silêncio). Em certos casos, se não sempre, urge-se a construção de uma casa comum, onde mais que observadores sejamos participantes e colaboradores que na diversidade de buscas se fazem lugar para os outros (Daniel Faria, 2007, p.69).

É célebre a última proposição do Tractatus Logico-philosophicus de L. Wittgenstein: “Aquilo que não pode falar-se é melhor calar” (Preposição 7). Assumindo tanta história de vida “calada”, julgamos, porém, haver de se considerar que nada existe fora da linguagem, pelo que o mundo é o que dele dissermos (Cavaillé, 1992, pp. 255-275), visto ser impossível poder sair-se da linguagem (Salin, 2017, p.164).

Seguindo esta linha condutora de assumir o silêncio como elemento capaz de dizer o mundo de alguém, torna-se importante, a meu ver, perceber de que forma se pode observar e assumir o silêncio numa relação de ajuda, porque “o silêncio não é somente estratégia. O silêncio pode, de facto, ser repleto de palavras silenciosas, portadoras do sentido consciente e inconsciente: pode, igualmente, estar cheio de outras coisas além de palavras. Mas pode também ser o inaudível do nunca ouvido” (Green, 2004, p.25).

A relação de ajuda mesmo quando pautada (ou entrecortada) por silêncios é muito importante, principalmente, nos dias de hoje, muito em parte devido à forma como a sociedade se encontra organizada, tendo sempre em conta o que para Soriano é a relação de ajuda: “um encontro pessoal entre uma pessoa que pede ajuda, para mudar alguns aspetos do seu modo de pensar, sentir e atuar, e outra pessoa que quer ajudar, dentro de um quadro interpessoal adequado” (Soriano, 2005, p.82). Devemos estar sempre conscientes de que “o que possibilita ou impossibilita a comunicação é, em última instância, o silêncio” (Cañizal, 2005, p.18).  Cañizal, reconhece ainda que o silêncio é verbo – isto é, motor e ação! – em qualquer contexto social comunicativo, e como é importantíssimo que seja tido em conta como qualquer outro código linguístico; aliás, “mesmo nos signos verbais, considerados como entidades eminentemente sonoras, as configurações que eles desenham nas paisagens de qualquer tipo de conversa, se revestem de cargas de silêncio contundentes…” (Cañizal, 2005, p.17).

A narrativa de vida de cada pessoa tem muitos silêncios, um conjunto de histórias revisitadas. Somos habitados por silêncios vivos, que amam e ajudam a medrar, mas tantas vezes em silêncio – o que, por vezes, tem sabor a amputação! Haveremos aqui de considerar que “o comportamento advém de movimentos e interações que ocorrem dentro da mente das pessoas. (…) e tanto a mente como o comportamento influenciam e são influenciados pelo ambiente social da pessoa” (Yelloly 1980; Wood, 1971, citado por Payne 2002, p.109). A meu ver o que mais chama a atenção aos profissionais (e até os perturba) é o silêncio! Sim, “o silêncio liga ou separa, e ambos, palavra e silêncio, podem servir como muro na relação” (Marta, 2005, p.27). Como profissionais sociais somos agentes da palavra, logo não estamos habituadas a entender-nos sem palavras! Temos de reconhecer, e aceitar que, por vezes, o silêncio é assaz difícil na comunicação; tal como noutras situações ele é zona de conforto; porém, “o silêncio é [sempre] o terreno onde vai desabrochar a relação” (Marta, 2005, p.28). Na sua intervenção o profissional social deve sempre considerar que “mesmo nas condições mais adversas, mesmo sob as condicionantes mais severas, pode preservar e desenvolver alguma capacidade de autonomia e autodeterminação” (Santos, 2004, p. 18).

Da relação de ajuda espera-se que nasça a alavanca para a mudança de comportamento e para um diálogo aberto, pois: “o silêncio do analista cava o leito do outro” (Násio, 2010, p.122). Deverá existir, aceita-se, um diálogo de silêncios, entendendo que “(…) é nos aspetos frívolos e anódinos da vida social, no “nada de novo” do quotidiano, que encontramos condições e possibilidades de resistência que alimentam a sua própria rotura” (Pais, 1993, p.108).

O profissional social tem de ser um bom ouvinte, um ouvinte sensível, capaz de conseguir colocar-se no lugar do outro, sem desvalorizar nem culpabilizar qualquer silêncio, palavra ou ação, pois “entre pessoas não existe silêncio sem sentido, porque não existe um olhar humano sem interpretação da realidade, ou seja, o silêncio entre as pessoas é sempre uma folha em branco sobre a qual projetamos uma imagem” (Marta, 2005, p. 24).

Tenho ainda por muito valioso considerar que a palavra e o silêncio caminham lado a lado, ambos se solidarizando com a pessoa numa determinada altura da sua narrativa de vida, ao ponto de ser deveras importante considerar e valorizar os tempos de silêncio e de palavra (Botelho, 2013, p. 195). O silêncio também fala, portanto, e pode instaurar-se como verbo de mudança! Estou, aliás, convicta – e em função dessa convicção assim atuo – que é “necessário construir uma relação que alimente a criação de condições que garantam que a mudança se vá perpetuar. Uma relação que, para ser uma efetiva base de apoio, se inscreva num tempo suficientemente longo para que se criem laços, cumplicidades e para que se valorizem os processos necessários para a mudança” (Timóteo, 2010, pp. 36-37).

Ao longo da relação de ajuda também os profissionais sociais crescem e aprendem (em silêncio!) com a pessoa, sensibilizando-se com os seus progressos, partilhando e celebrando em conjunto as conquistas. Na verdade, “ao promover-se o desenvolvimento pessoal do outro, em relação a nós e facilitando a relação, também nos desenvolveremos de igual modo. Esta deverá ser a grande e fascinante meta a atingir… oferecermos felicidade aos outros, tornando-nos nos simultaneamente felizes” (Simões et al., 2006, p.48).

Hoje dou-me conta que aprendo muito com o silêncio do outro, e que os tempos de silêncio não têm um dicionário e uma gramática fáceis!

Ao longo de grandes momentos de silêncio reflexivo desenvolvi estas linhas repletas de pensamentos e poucas conclusões. Talvez, porque para mim, falar de silêncio implica falar de pessoas, falar de medos e anseios, caminhos não concluídos. Sobre este arriscado ângulo de abordagem da relação de ajuda – o silêncio – me debrucei. Assumi assim a beleza do paradoxo: existe silêncio falado que muito diz, e palavras (vazias) que adiam e pouco ou nada dizem!

Deixemos que o silêncio na relação de ajuda tenha o seu lugar fecundo. Que o tempo não pertença ao profissional social, mas à pessoa com quem se estabelece uma verdadeira relação de ajuda. O silêncio não é, de todo, uma barreira na relação porque, afinal, ele fala. É comunicação. Posso afirmar, por experiência própria, que é um canal importante por onde encaminhamos a ajuda: a pessoa define como e quando quer comunicar, se por palavras, por gestos ou por silêncios. A nós, profissionais, cabe instaurarmo-nos como hermeneutas da mensagem trazida no seio grávido do silêncio (ou de palavras, por vezes tão entrecortadas e tão raras)!

Paradoxalmente, se por um lado vivemos numa sociedade de sons, mensagens, de híper-informação, de ruídos que ganham forma e sentido nos recetores, por outro lado, é possível verificar que o silêncio foi ostracizado da cidade dos homens conferindo-se-lhe apenas o papel de mero figurante no teatro da vida, onde lidamos nós, os profissionais sociais, visto que se por um lado, queremos obter mais e mais informação, para termos matéria com que trabalhar os casos, por outro lado, temos o silêncio de seres que nos preenche os ouvidos e o coração.

Sim, o silêncio pode ser fecundo e fecundante; pode ser ativo, proativo. E verbo. O silêncio da pessoa humana é pensamento transformador da história. Cabe-nos estar atentos ao que o silêncio representa na relação de ajuda que estabelecemos. Nesta cultura da contemporaneidade urge-se dar tempo ao tempo e espaço ao silêncio, decantando-o, a fim de se alcançar decifrar o que o representa para cada um de nós. Neste tempo de vertigem, onde (a falta de) o tempo parece ser tudo, afinal o que nem os profissionais sociais possuem é tempo para escutar os nadas de alguém!

Existe uma canção de David Fonseca ilustrativa daquilo que deixo escrito, e que bem poderia ser bem a súmula do processo de relação de ajuda:

“O silêncio, deixa-me ileso,
e que importância tem?
Se assim, tu vês em mim
alguém melhor que alguém,
sei que minto, pois o que sinto
não é diferente de ti
não cedo, este segredo
é frágil e é meu.”

Referências

Botelho (2013). Se…, Não… Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. Vol. A, n. º2 192-218

Cañizal, Eduardo Peñuela. (2005). O silêncio nos entremeios da cultura e da linguagem. In: Baitello, N., Cotrera, M; Menezes, J. (Org.). Os meios da incomunicação. São Paulo: Annablume.

Cavaillé, Jean Pierre (1992). Descartes – La Fable du Monde. Paris: Vrin.

Certeau, Michel de (1982). La Fable Mystique. Paris: Éditions Gallimard.

Faria Daniel (2007). O livro de Joaquim. Vila Nova de Famalicão: Quási Edições.

Green, A. (2004). O silêncio do Psicanalista, Revista Psyché, n. º14. 13-38.

Marta, Rita (2005). O silêncio na Comunicação ou a Comunicação pelo Silêncio: O Silêncio na Psicanálise. Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca.

Nasio, J. –D.; (2010) O silêncio na psicanálise. Editorial: Jorge Zahar. Rio de Janeiro.

Padrão, C. B. (2009). Considerações sobre o silêncio na clínica psicanalítica: dos primórdios aos dias atuais. Revista Cad. Psicanal, 31(22). 91-103.

Pais, J. M. (1993). Nas Rotas do Quotidiano. Revista Crítica de Ciências Sociais, (37), 105-115.

Payne, M. (2002). Teoria do trabalho social moderno. Coimbra. Editora Quarteto.

Salin Dominique (2017). Michel de Certeau y la cuestión del lenguaje. Revista de Espiritualidad nº 303, pp. 164-166.

Santos, C. B. (2004). Abordagem Centrada na Pessoa – Relação Terapêutica e Processo de mudança. Psicologos, 1(2), 18-23.

Simões, J., Fonseca, M. & Belo, A. (2006). Relação de ajuda: Horizontes de existência. Revista Referência, 2(3), pp. 45-54.

Soriano, J. M. (2005). Los procesos de la relación de ayuda. (2ªEd.). Editorial Desclée de Brouwer: Espanha.

Timóteo, I. (2010). Educação social e relação de ajuda – Representações dos educadores sociais sobre as suas práticas (Dissertação de Mestrado não publicada). Universidade de Évora, Évora, Portugal.

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