Nov 22, 2022 | Cultura, O Deus que inspira

Professora de música – Carmelita Secular

A simplicidade da arte ao encontro da vida de um cristão

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“Se a arte nos pode ajudar neste caminho de busca da simplicidade, na vida pessoal e em comunidade, ela estará ao serviço de Cristo e, assim, fará sentido estabelecer o paralelismo entre o simbolismo que certa arte evoca e os valores que um cristão procura seguir.”

Desde cedo somos ensinados que para se viver de acordo com os princípios cristãos, devemos procurar estar em sintonia com a simplicidade, quer ao nível sensitivo, quer ao nível espiritual. Mesmo fora do âmbito religioso tem-se falado em viver de forma cada vez mais simples, apenas com o essencial. Também a própria arte nos tem ensinado a trilhar esse caminho através do uso exclusivo de elementos que são básicos, no sentido de serem essenciais e indispensáveis. Esta ideologia artística, muito própria do minimalismo[1] (anos 50) e que já se espalhou nas diferentes vertentes sociais e humanas, tem vindo a ganhar maior protagonismo junto daqueles que procuram a praticidade, o funcionalismo e o descomplicado.

Mas como é que a arte nos pode ensinar a ser simples? Faz sentido estabelecer esta relação entre a arte e a vida de um cristão? Para responder a estas duas perguntas darei o exemplo de dois artistas que se preocuparam em transmitir a simplicidade espiritual, tendo como recurso a música e a pintura.

Ao nível musical, referencio Arvo Pärt (1935-Presente), compositor estónio que põe em prática o minimalismo em muitas das suas obras, as quais são maioritariamente de cariz cristão. Este compositor esteve em Fátima e, no âmbito das comemorações do Centenário das Aparições, o Santuário de Fátima encomendou-lhe uma composição, tendo resultado uma pequena peça intitulada “Os Três Pastorinhos de Fátima”, a qual se pode ouvir no canal YouTube através do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=YeQco8EFxqU.  A genialidade deste compositor manifesta-se pela capacidade de (re)criação, muitas das vezes de forma inesperada. Por exemplo, na obra “Silentium” é recriado, através de instrumentos eruditos, o som dos sinos de uma igreja a tocar, não ficando o ouvinte indiferente ao ambiente criado. A esta ideia sonora, Pärt atribuiu o conceito de tintinabulação. Seria interessante que o leitor também ouvisse o exemplo que é seguidamente apresentado de forma a compreender melhor este conceito e, assim, entrar na profundidade da sua obra, aqui representada em “Silentium”. É igualmente uma sugestão para poder acompanhar, como pano de fundo, muitas das nossas orações ou momentos mais introspetivos. Assistam ao vídeo através do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=uuYhR2KPPo4.

Assim como a tendência de muitas correntes artísticas é a busca do essencial e do simples, tal como o é expressamente o minimalismo aqui exemplificado através da música de Arvo Pärt, também o cristão deveria, ao exemplo de Cristo, primar pelo que é simples e verdadeiro. Tal como a renúncia aos exageros é característica desta corrente artística, também o cristão deveria focar-se no que é comedido, discreto e simples. Assim sendo, torna-se pertinente a expressão popularmente conhecida “menos é mais”, popularizada pelo arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) no âmbito da prática de uma arquitetura mais racional e menos complexa; abolindo o que é supérfluo e procurando o essencial, a arte, reduzida ao que mais importa, remeto-nos para a simplicidade. Também no processo de encontro com Deus, a urgência em dissipar os excessos é primordial. Menos ódio é mais amor, menos desespero é mais coragem, menos egocentrismo é mais altruísmo, menos desconfiança é mais fé, menos ruído é mais silêncio interior.

Também neste âmbito importar fazer referência a Ferdinand Gehr (1896-1996), pintor suíço que perpetuou um fresco na Capela do Convento dos Dominicanos, em Fátima (1966) com inspiração bíblica na Árvore de Jessé (cuja imagem pode ser vista online através do seguinte link: http://retalhosdavidadeumpadre.blogspot.com/2009/07/arvore-de-jesse.html). O artista fez uso de formas simples e cores primárias no seu estado mais puro de modo a alcançar o essencial e eliminar, mais uma vez, o supérfluo.

Também o rosto de Cristo de Gehr (que pode ser visualizado online através do link: https://gulbenkian.pt/cam/publications/ferdinand-gehr) é construído sobre poucas formas e cores, remontando, de alguma maneira, à arte das catacumbas e expressando uma grande simplicidade artística. Sabemos que muitas das suas obras são inspiradas em trechos bíblicos e resultam, de certa forma, de algum ascetismo, o que confere à sua obra uma marca de indelével essencialidade.  

Com esta breve exposição penso que se torna mais fácil responder às questões inicialmente expostas: como é que a arte nos pode ensinar a ser simples? Faz sentido estabelecer esta relação entre a arte e a vida de um cristão?

Considero que a arte, no seu sentido mais nobre, contém elementos essenciais e inefáveis que nos remetem para a simplicidade e para a interioridade. Naturalmente que para isso é necessário conhecer e perceber a arte que visualizamos ou ouvimos, tal como é importante compreender a intenção do próprio artista. A contemplação de obras em que o traço, as formas, as cores e os materiais transmitem a leveza e a essência de Deus, pode-nos ajudar a encontrar o foco para uma vida mais ao estilo de Cristo, simples e verdadeira. Deixarmo-nos cativar por essas obras que transmitem os valores cristãos é um lembrete para nos recordarmos de Cristo, do seu estilo de vida, da Cruz que faz olhar a Humanidade de uma outra forma. Se a arte nos pode ajudar neste caminho de busca da simplicidade, na vida pessoal e em comunidade, ela estará ao serviço de Cristo e, assim, fará sentido estabelecer o paralelismo entre o simbolismo que certa arte evoca e os valores que um cristão procura seguir. É bom quando estamos rodeados de pessoas simples como Jesus, com sentido de missão, com gestos que elevam e dignificam o ser humano, que optam pelo que é mais puro e verdadeiro. Que a arte possa ser expressão de tão simples e grandes valores e constitua, assim, um meio de encontro com Cristo!


[1] Na arquitetura e na pintura a corrente é caracterizada pelo uso de linhas retas, pelas repetições simétricas, valorização da forma e da cor, pela importância dada à qualidade ao invés da quantidade, utilizando, para isso, o mínimo de recursos. Na música o conceito é o mesmo, mas transpõe-se para a criação de ambientes sonoros também eles com padrões repetitivos que podem variar após grandes períodos de tempo, o uso de poucas notas bem como a estaticidade/quietude rítmica e melódica/harmónica.

Marlene Tavares

Professora de música – Carmelita Secular

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