Copiei o título de hoje da famosa obra de G. K. Chesterton, “Ortodoxia” [1]. O quinto capítulo desta obra chama-se precisamente “Os Paradoxos do Cristianismo” e teve grande impacto em mim, quando o li há uns anos atrás. Confesso que Chesterton (C., a partir de agora) é um bocado irritante à primeira leitura. É petulante, panfletário e briguento. Parece que está sempre a ironizar com os seus contemporâneos do alto da sua supremacia intelectual. Mas quando insisti mais um bocadinho, acabei por perceber que todo aquele espalhafato estilístico é apenas a forma (desagradável, por vezes) que envolve um conteúdo profundo e original. Passei portanto a gostar de C., apesar de C., mesmo não concordando com tudo. E mesmo o facto de “Ortodoxia” ter sido escrito quando C. ainda era anglicano (só se converteu ao Catolicismo 14 anos depois), não nos deve afastar de o ler, pois não há no livro nenhuma contradição com a doutrina católica.
Em “Ortodoxia”, C. faz um resumo do seu percurso pessoal, discutindo de forma muito crítica as ideias do seu tempo.
Procurarei, depois, sintetizá-las [ideias suas] por uma forma geral, resumindo, assim, a minha filosofia pessoal ou religião natural. Por fim descreverei a espantosa descoberta, que fiz, de que tudo isso já tinha sido anteriormente descoberto. Fora descoberto pelo Cristianismo.
Concentrar-me-ei apenas numa breve descrição do que mais me impressionou no quinto capítulo. No decurso das suas deambulações, C. deu-se conta de que a síntese ou compromisso de duas posições distintas pode conduzir a um esbatimento da compreensão ou da forma de agir no mundo:
A ideia era a mesma que eu tinha esboçado, pelo que dizia respeito ao otimista e ao pessimista, isto é, que nós precisamos, não de uma amálgama ou dum compromisso, mas de ambas as coisas no apogeu da sua energia – amor e raiva, ambos ardentes.
Mas a manutenção simultânea de dois princípios antagónicos ou, pelo menos, dificilmente conciliáveis, pode ser insustentável do ponto de vista racional. Tanto assim é que o dogma fundamental do Cristianismo é precisamente a afirmação da existência simultânea de Deus e do homem em Cristo:
A teologia ortodoxa tem, especialmente, insistido em que Cristo não era um ser à parte de Deus e do homem, como um elfo, nem, também, um ser metade humano e metade não, como um centauro, mas ambas as coisas ao mesmo tempo, ambas as coisas completamente – verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
E de uma forma geral, na vida humana, trata-se de encontrar o equilíbrio entre princípios opostos? Sim, mas a forma de o atingir é que varia:
Admitindo, porém, que todos nós temos de conservar certo equilíbrio, o interesse principal está em saber como tal equlíbrio pode ser conservado. Foi este o problema que o paganismo tentou resolver e foi este o problema que eu julgo ter sido resolvido pelo Cristianismo, e resolvido por forma deveras estranha. O paganismo declarou que a virtude estava num equilíbrio e o cristianismo veio declarar que ela estava num conflito: a colisão de duas paixões aparentemente opostas.
Um bom exemplo é a coragem:
A coragem é quase uma contradição nos seus termos. Significa um forte desejo de viver que toma a forma duma completa disposição para morrer (…) [um soldado] deve procurar a vida num espírito de furiosa indiferença para com ela.
C. generaliza então:
Comecei, então, a compreender que esta dupla paixão era a chave cristã para a ética em toda a parte. Por toda a parte o credo operava uma moderação sobre o embate contínuo de duas impetuosas comoções.
Para perceber melhor, tomemos um exemplo, o da modéstia:
(…) o equilíbrio entre o mero orgulho e a mera prostração. O pagão vulgar, como o vulgar agnóstico, diria, simplesmente, que estava contente consigo mesmo (…) que havia muitos melhores e muitos piores (…) Esta é uma posição humana e racional, mas está exposta à objeção que apontámos contra o compromisso entre o otimismo e o pessimismo (…) Sendo uma mistura de duas coisas, é uma diluição de duas coisas: nem está presente na sua força plena, nem contribui com toda a sua cor (…) E assim se perde não só a poesia de ser orgulhoso, como, também, a poesia de ser humilde. Mas o Cristianismo procurou, por este mesmo estranho expediente, salvar uma e outra poesia. Separou as duas ideias e exagerou ambas. Por um lado, o homem tinha de ser mais altivo do que fora até então e, por outro, tinha de ser mais humilde do que fora até ali. Considerado como Homem, sou a maior criatura; considerado como um homem, sou o maior dos pecadores. (…) Mais uma vez aqui o Cristianismo venceu a dificuldade de combinar coisas furiosamente opostas, conservando-as ambas e conservando-as furiosas. A Igreja era positiva em ambos os pontos. Dificilmente pode alguém ter em muito pouca estima a sua própria pessoa e dificilmente também pode uma pessoa avaliar em muito a sua própria alma.
C. segue com mais exemplos, como a caridade, a liberdade, o celibato e a família. Não há muito mais espaço, mas não resisto a transcrever esta famosa passagem:
É verdade que a Igreja histórica defendeu ao mesmo tempo o celibato e a família; defendeu, ao mesmo tempo e violentamente, o ter filhos e o não os ter. E conservou ambas estas coisas lado a lado, como duas cores fortes – vermelho e branco -como o vermelho e o branco sobre o escudo de S. Jorge. A igreja sentiu sempre uma sã antipatia pela cor-de-rosa.
Esta manutenção de princípios opostos na Teologia Cristã, tal como é descrita por C., é um reflexo da nossa incapacidade de compreender o Mistério. Relacionamo-nos com o Mistério através de símbolos, parábolas e paradoxos. E é a fé, a luz (obscura) que nos guia, que nos permite avançar, neste terreno não cartografado. A procura de Deus faz-se também através da adesão ao paradoxo: de Deus que se fez homem; de Deus glorioso que morreu na Cruz como o mais miserável dos homens; da Vida que se alcança negando-a; da aparente indiferença de Deus ao sofrimento inexplicável do mundo. E se procurarmos nos Evangelhos, encontraremos constantemente paradoxos na vida de Jesus: o Jesus que oferecia a outra face, mas que expulsou violentamente os vendilhões do templo; o Jesus que chorou no túmulo do amigo Lázaro, mas que avisou quem o quisesse seguir que teria de abandonar família e amigos. E o que é a parte inicial do sermão da Montanha senão uma lista de paradoxos?
À medida que a vida espiritual se desenrola, a vivência dos paradoxos torna-se mais esclarecedora e profunda. Por exemplo, há uma tendência para se ficar mais focado e eficiente na dimensão prática da vida porque, na realidade, há em relação a ela um maior desapego. Mas esse desapego não quer dizer desleixo. Deus faz crescer as duas qualidades opostas, em simultâneo, de uma forma que a nossa lógica não atinge: é-se um membro mais ativo no mundo mas, ao mesmo tempo, está-se mais fora do mundo. As duas coisas parecem ser mutuamente exclusivas, mas em Deus não são.
Por outro lado, a vivência interior pode ser iluminada por esta perspetiva do paradoxo. Por exemplo: há, quanto a mim, uma tendência global para procurar a espiritualidade (cristã ou não) para “se estar bem”. Quem assim o faz tem tendência a obliterar a dimensão de sofrimento da vida, reduzindo-a a uma dimensão – a dimensão do “eu, eu, eu”. Trata-se portanto de uma espiritualidade materialista. Também um paradoxo, mas um mau paradoxo. Mas o mistério do paradoxo cristão – o bom paradoxo -, é que é possível estar infeliz com as coisas da terra e feliz a amar a Deus. Entregar a vida a Deus é a chave desse paradoxo.
E a Cruz, claro, é o maior dos paradoxos. Só quem adere profundamente à vontade de Deus sabe como Ele opera milagres à medida que se faz o caminho. A fé é a confiança em Deus para nos conduzir pelo meio do paradoxo. Para lhe dizer. “não percebo como dor e alegria se podem conciliar, mas sei que me amas infinitamente e que, por isso, me vais conduzir pelo caminho que eu posso percorrer, até aos verdes prados, onde todos os paradoxos vão desaparecer para dar lugar à visão clara da Tua Luz”.
Referências
[1] Gilbert Keith Chesterton, “Ortodoxia”, Livraria Tavares Martins, Porto, 5ª ed., 1974