O fogo e o madeiro

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Nem toda a mensagem, e menos ainda a mais sublime, a que nos fala das realidades mais elevadas, se pode dizer sem recurso a uma nova linguagem e, por vezes, sem recorrer ao paradoxo. É o caso da mística de São João da Cruz, nosso pai.

São João da Cruz, grande poeta e místico, doutor da Igreja e pai espiritual, reformador do Carmelo com Santa Teresa de Jesus recorre, como os demais poetas e místicos, à linguagem simbólica e metafórica para dizer da profundidade do que vive, ama e pensa. Os místicos cunham novas linguagens e são criativos. Uma das suas parábolas é a do fogo e o madeiro.

Encontramos esta parábola no capítulo 10 do livro Noite Escura, bem como no livro Chama de Amor Viva. O seu desejo é ajudar-nos a entender que estamos e devemos desejar estar num processo de purificação (e união ao Senhor). Para alcançar a união o ser humano tem de purificar e limpar o seu coração de tudo o que o afasta da sua condição, de tudo o que o afasta de Deus que o criou, e o quer tornar cada vez mais parecido com Ele. A proximidade livre e consciente a Deus que o procura permite-lhe receber a pureza e demais atributos que Deus lhe quer infundir.

Para chegarmos à união com Deus temos de entrar neste processo de purificação que São João da Cruz chama via purgativa. Depois de conhecermos e acolhermos o plano de alegria e felicidade que tem para cada ser humano, só temos de nos libertar dos amores desordenados e do apego às coisas que não nos deixam viver de maneira adequada a nossa condição de criaturas livres. A felicidade está em nos libertarmos de tudo o que não nos realiza, o que nos ata e enreda, que nos faz abrandar o passo; mas para isso precisamos de nos purificar do que carregamos connosco, das consequências do pecado e dos apetites que precisam de ser ordenados. Estas purificações de que nos fala São João da Cruz são boas e necessárias para todos.

Numa linguagem muito própria do seu tempo, diz-nos que a purificação leva os principiantes, que são os que intensificam um caminho espiritual, ao estado de aproveitados, que é o caminho dos contemplativos, para que cheguem ao estado de perfeitos que é o da divina união com Deus. Reparemos como diz, de forma tão ilustrativa, a dinâmica deste processo com esta belíssima parábola:

“Quando o fogo material se ateia ao madeiro começa por secá-lo, arrancando-lhe a humidade, obrigando-o a deitar fora a água que con­tém. Depois, vai-o deixando negro, escuro, feio, e até com mau cheiro; enquanto o vai secando pouco a pouco, vai-lhe arrancando e expelindo todos os horrorosos e escuros elementos contrários ao fogo. Por fim, quando começa a inflamá-lo por fora e a aquecê-lo, chega a transformá-lo em si e a deixá-lo tão puro como o próprio fogo. No fim de tudo isto, o madeiro já não tem qualquer ardência ou ação própria (…). Está seco e quente, é claro e alumia, está muito mais leve que antes, porque o fogo aviva nele estas proprie­dades e efeitos” (2N 10,1).

Esta parábola do fogo e o madeiro remete-nos para uma morte que leva à vida. Por muito que o madeiro esteja transformado pelo fogo, quer dizer por Deus, ficará sempre alguma coisa da sua vida terrena que só permitirá chegar à plenitude depois da morte física, e não só interior e espiritual. O madeiro chega a converter-se completamente ele mesmo em fogo. O fogo de que fala São João da Cruz é o amor de Deus, é o fogo do Espírito Santo infundido em toda a criatura humana. Este fogo investe sobre todas as criaturas; e se o acolhermos tem possibilidades de aquecer, purificar, iluminar… Mas se oferecemos resistências, a sua ação é reduzida porque Deus respeita sempre a nossa liberdade. Deus atua sempre com delicadeza, como uma mãe que educa os seus filhos polindo e limando os nossos caprichos, vontades egoístas e egocentrismos. Este processo é moroso e normalmente longo.

O fogo luta com o madeiro verde até que este se converta no próprio fogo e fique formoso como ele, pois o objetivo desta tremenda purificação é assemelharmo-nos, por graça, com Deus, até ao encontro definitivo no face a face. São João da Cruz chama a este processo doloroso noite escura — uma experiência espiritual necessária para que nos desprendamos de tudo aquilo que não é Deus. Continua o Santo a aprofundar o símbolo, dizendo:

“Apesar de lhes ser ateado o fogo, não arderiam se não houvesse imperfeições para purificar; elas são a matéria em que se ateia ali o fogo e, uma vez consumidas, nada mais há para arder. O mesmo acontece agora: acabadas as imperfeições, a alma deixa de penar e começa a gozar” (2N 10, 5).

A opção pela vida espiritual, como as principais opções de nossa vida, fazemo-las porque intuímos um bem maior que nos espera, de ordem espiritual, que integra (não anula) as outras dimensões da nossa existência.

Esta noite escura conta apenas com a luz da fé, que é escura, para o entendimento, por causa da sua excessiva luminosidade. A meta também é escura, dado que Deus também sempre é noite durante esta vida. Já Deus advertira Moisés: “Mas tu não poderás ver a minha face, pois o homem não pode contemplar-me e continuar a viver” (Ex 33,20).

Para alcançar a união perfeita – para que o ser humano veja os raios da luminosidade da face de Deus – é imprescindível atravessar esta noite do espírito, pois as trevas tão dolorosas que ferem a alma enamorada devem-se ao excesso de luz que nela investem. É, pois, dura de atravessar esta tão ditosa e feliz noite; tem os seus períodos de crescimento, de sofrimento e de purificação, mas por fim vem a união, não apenas como meta dada de uma vez só, mas saboreada já gradualmente nesta vida, tanto quanto a nossa natureza é capaz de a acolher.

Nos momentos mais difíceis da vida lembremo-nos que fomos traçados para grandes voos, para grandes metas: a da união divina, porque ela faz parte da nossa essência e vocação mais profundas. O Espírito Santo que opera em nós é a garantia da realização desta vocação, e Cristo, o homem novo, realizou como criatura humana esta vocação à união de amor com Deus destinada a toda a criatura. Deixemos que o fogo do Espírito invista sobre o madeiro a fim de o purificar e incandescer dos dons e graças que Deus distribui generosamente àqueles que lhas pedem.

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