Quando o dom da fé me é infundido imerecidamente e inexplicavelmente em tenra idade e Jesus se faz presente ao longo de toda a vida para me amar incondicionalmente, sustentar, educar, purificar, guiar, desafiar, fazer crescer… e, de repente, somos mãe de uma adolescente a quem o dom da fé deixa de fazer sentido… o tapete é retirado de debaixo dos pés e a dor lancinante instala-se… a dor da escolha da rejeição do que é O mais precioso ao meu coração… O melhor testamento que posso deixar a um(a) filho/a, é rejeitado.
Lanço-me em busca de respostas, procuro perceber. Procuro respeitar e escutar e lentamente começo a dar graças pela prova tão dura que me leva a mais uma purificação, à fé, à esperança, à oração intensa de intercessão, ao alargamento do coração, à confiança acrescida em Jesus.
Acreditar ou não acreditar em Deus apresenta-se como um processo complexo. Provocou-me particularmente para um amadurecimento deste ponto de vista a referência a Tomás Halík, realizada por Carlos Fiolhais, Professor de Física da Universidade de Coimbra: «A crença enriquece-se com a descrença, assim como a descrença se enriquece com a crença. (…) Uma pessoa poderá ser, em graus variáveis, de indivíduo para indivíduo e no mesmo indivíduo com o decurso do tempo, simultaneamente crente e descrente. Quer dizer que não há crentes e não crentes, há simplesmente pessoas»[1].
Afigura-se assim a abertura ao diálogo que amadurece, à escuta, ao abraço entre o crente e o descrente. Deus é um mistério que nos impele à procura. Quando nos deparamos dentro de nós próprios com certezas sobre Deus, talvez seja o momento de continuar a procura para que vivamos a religião de forma mais pura e com uma espiritualidade provada, profunda, esclarecida, centrada em Quem tão ternamente nos habita.
Escrevo hoje, Domingo de Páscoa, e recordo-me das palavras de São João da Cruz: «A dificuldade de entender as palavras de Deus como convinha era tão grande, que até os próprios discípulos que tinham andando com Ele, se enganaram. (…) Embora as palavras e as revelações sejam de Deus, não nos devemos fiar delas, pois com toda a facilidade nos podemos enganar na nossa maneira de as interpretar. Elas são abismo e profundidade de espírito»[2]. Tanto os nossos sentidos, as nossas potencias, nos podem enganar e deixar cegos, como estavam os discípulos de Emaús[3]!
Perante o ateísmo – a recusa de Deus – podemos perguntar-nos… Perguntar ao outro qual a ideia de Deus que é alvo de recusa. Escutar os argumentos pode então levar-nos a uma purificação da ideia de Deus ou mesmo a um desapego da procura de O entendermos. Na verdade, não precisamos de O entender, embora o não entender, em termos humanos possa ser desconcertante face à nossa necessidade de completude, de controlo, de respostas rápidas e fáceis.
«Meu Deus, meu Deus, porque em abandonaste?» (Mateus 27, 46) – que grito lancinante Jesus lança da Cruz, no meio da dor! Ele vive em si todas as nossas dores, acolhe em Si todo o sofrimento físico, espiritual, psicológico. Naquele momento abdica de tudo e une-se também aos que vivem e podem experimentar a dor de não sentir Deus, a dor do afastamento deste abismo de amor, a dor da noite escura, da renúncia a tudo, do despojamento completo. Neste grito, Jesus inclui assim, os gritos dos que não acreditam em Deus.
Tanto me ensinas neste teu grito, meu Jesus!!!
Esta “morte” da fé pela qual por vezes passamos, pode conduzir-nos a uma busca da Verdade… muito à semelhança do caminho feito por Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein), entre tantos outros… Será esta busca uma forma de fé? Edith Stein procura a Verdade que «ilumine definitivamente o mistério do homem, do mundo e da vida»[4], sem cair na tentação de colocar no lugar de Deus um ser humano que se julga omnipotente… Abre-se assim o caminho para a Páscoa…
Jesus convida-me a abrir o meu coração, como Ele o faz, a toda a dúvida, tanto a dos outros, com a minha. Reforço assim a minha opção por, na minha oração, no grupo de oração, na comunidade, na catequese da infância e adolescência, abrir ainda mais a porta ao diálogo e dar espaço para que cada um partilhe as suas dúvidas e também as suas ternas demonstrações de fé. Abre-se assim a porta para uma fé mais esclarecida, mais fundamentada, mais forte perante as tempestades que acontecem na nossa alma e que a Igreja enfrenta.
O meu coração de mãe encontrou resposta e descanso na oração de intercessão por quem rejeita Deus, por quem rejeita a fé ou se esqueceu deste dom. Tantas vezes me lembro da longa caminhada de oração de Santa Mónica[5] pelo seu filho. Tantas vezes suplico a Maria, a mestra da intercessão junto do Filho, que se junte à minha oração.
Sou chamada a uma atitude de escuta, acolhimento e de coerência de vida perante quem não acredita. Sou chamada a deixar que os gestos se tornem Evangelho vivo e a confiar no Espírito, na Misericórdia. A deixar que Ele atue no tempo que for mais propício, mesmo que eu não o perceba. Sou chamada a orar pelos que não oram, a adorar pelos que não adoram, a comungar pelos que não comungam. Sou chamada a fazer da pequenina cela do meu coração um templo vivo e humilde, onde coloco no Coração de Jesus, todas as almas, sem exceção, para que se deixem envolver pelo amor da Santíssima Trindade.
Jesus, suplico-Te, aumenta a minha fé de tal modo que abarque quem a não tem! Que eu acolha o dom da fé com humildade e gratidão! Suplico-Te, concede o dom da fé a quem a não tem ou a rejeita!
[1] Prefácio ao livro Halík T. – Grün, A. (2017). O Abandono de Deus – Quando a crença e a descrença se abraçam. Prior Velho: Edições Paulinas.
[2] JOÃO DA CRUZ, São (2005). Obras Completas (2 Subida do Monte Carmelo 19,9-10). Coimbra: Edições Carmelo.
[3] Lucas 24, 13-34.
[4] Vaz, Mário. (1998). Edith Stein: uma síntese dramática do séc. XX. Paço de Arcos: Edições Carmelo.
[5] https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-08/santa-monica-mulher-de-oracao-a-imitar.html