A minha partilha neste espaço carmelitano tem estado marcada pela imagem do ‘pássaro solitário’ de São João da Cruz. Ela é usada quando o poeta começa a explorar o desposório espiritual entre Deus e a alma do orante, onde começa uma contemplação altíssima guiada pela ação divina: «geralmente coloca-se no ponto mais alto» (CB 14 e 15, 24). O último texto que aqui apresentei abordava esta etapa da vida espiritual vista pelos seus olhos de místico. Pois bem, averiguarei, agora razão pela qual João da Cruz relaciona as características desta ave com o Espírito Santo. Feliz e providente coincidência, porque ainda anteontem celebrávamos o envio do Paráclito.
De entre as cinco propriedades deste ‘pássaro’ a segunda é que «tem sempre o bico voltado para o lado do vento» (ib.). Para explicar a imagem poética, o prosista de Fontiveros diz que também o orante, chegado a estas alturas do Amor, se volta sempre para donde lhe vem «o espírito do amor, que é Deus» (ib). Sabemos que João da Cruz descreve as três pessoas divinas como Amado, Amante e Amor, ao jeito agostiniano, no poema «Romance sobre o Evangelho ‘In principio erat Verbum’», podemos, assim, afirmar, sem desmesura, que «espírito de amor» é mais uma das inúmeras imagens que o doutor místico usa, e cria, para falar da terceira pessoa da Santíssima Trindade.
São, de facto, muitas as imagens que João da Cruz usa para descrever a ação do Espírito Santo, na pessoa que se reconhece amada por Deus, e que inicia um caminho de aproximação a Ele e, por isso mesmo, um dinamismo de transformação. Sem embargo, porque João fala mais da ação do Espírito Santo do que das suas propriedades, os especialistas neste místico dizem que nele não existe uma pneumatologia rigorosa, mas antes uma pneumatopatia: em vez de uma exposição teológica, dizem, São João da Cruz faz mais um discurso sobre a ação patética do Espírito Santo, ou seja, quanto ao modo como Ele se faz presente como Amor de Deus no orante, como força transformadora, que prepara para a união de Amor com Deus ou matrimónio espiritual, em linguagem sanjoanista.
Apresenta o místico poeta na epopeia da alma para Deus exposta em Cântico Espiritual, Noite Escura e Chama de Amor Viva, que mais tarde prosa, apresenta os efeitos práticos e operativos da presença do Paráclito no orante que, com o “coração já ferido pelo amor de Deus” (ib. 1,1), procura responder-Lhe. Nestas obras é notável a kenosis de Deus, que sai de Si e Se humilha para ser conhecido pelo objeto do Seu Amor. Não bastando a Encarnação e a Morte de Seu Filho, ainda entrega ao homem o Seu Espírito para o conduzir a Si, num movimento anabático e livre.
No que à «vida no Espírito» diz respeito, podemos afirmar que o nosso autor depende da perspetiva dos escritores bíblicos João e Paulo, a quem cita com frequência. Esta «vida» começa com a regeneração pela água e pelo Espírito (Jo 3,5; 4,14; 3S 26,7; 1N 4,7, etc.) e continua como luta entre a lógica de Deus e a lógica do mundo (Rm 8,13-14; 3S 2,16; ChB 2,34; CB 3,10; 35,5), onde o orante é ajudado pelas primícias do Espírito Santo, que ora nele e o motiva a sair de si próprio (Rm 8,23; C 1,14); o Paráclito auxilia-o na sua debilidade, derramando no seu coração o amor divino (Rm 5,5; 8,26; C, pról.,1; CB 38,3); e capacitando-o a clamar com verdade: Abbá! (Gal 4,4-6; CB 39,4). Sem o auxílio divino o homem não é capaz de entrar na profundidade do mistério de Deus (1 Cor 2,14; 12,10; 2S 19,11; 26,11), pois só o Espírito Santo (nos) ensina como mestre interior (2S 29,1-9), com a efusão das virtudes teologais (1 Cor 13,1; 3S 30,4; CB 13,12). De facto, este divino mestre introduz, pouco a pouco, o orante na «hora de Cristo» (Jo 16,7; 2S 11,7), a fim de o submergir na vida intratrinitária (Jo 14,23; ChB pról., 2; 1,15).
João da Cruz, embora não o prose na sua completude, parte de um caminho cristão coerente e corajoso, por si mesmo experienciado, e por si testemunhado naqueles a quem dirigiu. O caminho para o matrimónio espiritual começa com o sacramento do Baptismo: «quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus» (Jo 3,5; cf. 2S 5,5-6). Pelo sacramento surge no cristão a certeza da presença do Espírito de Deus, ou da inabitação: «o Verbo, o Filho de Deus, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, está escondido, essencial e presencialmente, no ser mais íntimo da alma» (CB 1,6). Esta certeza da presença e do Amor de Deus «provoca no amante um gemido permanente, porque, ao não amar nada senão a Ele, em nada se apoia e encontra alívio» (ib. 1,14). Conhecendo-se ferido de Amor, o orante busca Aquele que assim o feriu. Fica claro que é o Espírito quem põe o orante em saída de si próprio para buscar o Amado que, paradoxalmente, está presente e ausente. O Paráclito trabalha no orante para Cristo (ChB 3,46), guiando aquele para o «abraço insondável da Sua doçura» (ib. 1,15).
Nesta busca seguem-se os momentos da purificação, que João descreve como noites escuras. A primeira delas é ativa, porque predomina a ação do orante, que procura libertar-se de todas as amarras que não o deixam orientar-se para Deus. Apesar do autor atribuir poucas ações ao Espírito Santo nestas fases iniciais, cabe afirmar que Ele está sempre presente e, que como fica dito acima, o Espírito de Deus auxilia sempre o orante na sua debilidade, derramando o divino Amor no seu coração como motivação para prosseguir o caminho.
Na noite escura passiva podemos comprovar que o Santo atribui quase toda a ação ao Paráclito e que o orante apenas age abrindo-se à Sua ação. O Espírito Santo é o agente da purificação do entendimento, da memória e da vontade. Sem este «mestre interior» (2S 2,29) o homem não pode sequer entender a revelação divina (Jo 14,25-26) e aderir a ela com a resposta da fé (2S 19,5.6.7.9.10.11). Este mestre é também quem recorda a obra salvífica (Jo 14,25-26) e motiva a virtude da esperança (3S 2,8). A vontade é outra das faculdades do orante instruídas pelo Espírito, que assim gera e alimenta nele a virtude da caridade (ib. 16,1). Segue-se a purificação passiva do espírito, onde a presença do Espírito Santo é transversal, embora dissimulada sob imagens como: «amor de contemplação», «fogo», «luz», «noite» e «fogo amargo» (2N 10 e ss.). Esta noite é obra do Espírito Santo, «chama de amor», que purifica a alma do orante de tudo o que ainda impede a perfeita união com Deus, dispondo-a para a transformação final de amor em Deus (Ch B 1,19.21; 2,25).
Ao procurar a presença do Práclito nas estrofes dedicadas ao desposório espiritual no Cântico Espiritual (CB 13-25) podemos inferir que todas as graças deste estado são dons d’Ele à alma que se prepara para o matrimónio espiritual. Neste momento da vida espiritual o Santo enumera algumas experiências sobrenaturais da autoria do Espírito (ib. 13,4-6), as quais intensificam a tensão entre a ‘carne’ e o ‘espírito’. No entanto, agora a Sua obra mais significativa é introduzir a alma na contemplação de Deus Trindade (ib. 13,11). Chegada aqui, a alma experimenta a transformação que o Espírito realiza nela, ao desenvolver todas as suas capacidades e virtudes, sem que aplicar qualquer esforço.
Estes são os frutos do Espírito Santo que prepara a alma para a união permanente com Deus (ib. 17,8.10; 18,6; ChB 3,25-26). Deste divino agente a alma recebe o Amor e devolve-o como íntimo diálogo de plena confiança: «nestas visitas que Deus lhe faz, é levada com grande eficácia e vigor a dirigir a Deus aquelas emanações ou emissões de louvor, amor e reverência, etc., […] juntamente com grandes desejos de trabalhar e padecer por Ele» (CB 25,7).
O Espírito é aqui a força e a habilitação da alma, para amar com igualdade de Amor a Deus (ib. 38,3): «dá-se a si mesma de forma total e verdadeira, dando tudo o que Ele lhe tinha dado para ganhar o amor, ou seja, dá o que recebe» (ChB 3,79). Só pela ação do Santo Espírito pode o orante amar a Deus em igualdade de Amor, ao responder com os dons recebidos e amadurecidos pelo Paráclito. O homem criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26) chega, depois deste processo espiritual, à meta que é a transformação do homem velho no homem novo (Gal 4,6), capaz de participar na condição divina de Deus, participação não essencial, mas lograda pela unidade de Amor. Em a Chama de amor viva, João afirma categoricamente que a imersão da alma do orante na vida trinitária se explica apenas como participação na aspiração do Deus Amor: «a alma ama a Deus não por causa de si própria, mas por Ele. É um primor admirável, porque ama no Espírito Santo, como se amam o Pai e o Filho» (ChB 3,82).
Acontecida a união de Amor, da forma mais perfeita possível nesta vida, submetida a limites e contingências, resta apenas a aspiração à vida beatífica em Deus: «O Espírito e a esposa dizem: ‘Vem!’» (Ap 22,17). Nesta antecipação da vida glorificada é também o Espírito quem gera no orante a ânsia do encontro final com o Amado (ChB 2,21; 3,10.11.26). É Ele quem provoca o anelo pelo romper da tela que ainda separa a esposa, a alma, do Esposo. Exprime bem este anseio o poema «Vivo sem viver em mim»: «Tudo aumenta o meu penar / Por não ver-Te como quero / E morro porque não morro» (Est. 5).
São João da Cruz ao cantar a epopeia da alma em caminho para Deus, cria uma miríade de nomes para o Espírito Santo. É o Espírito Santo o principal agente neste processo que o próprio poeta e prosista compara com a ação da chama na madeira: «este fogo divino preocupa-se mais em enxugar e preparar a madeira da alma do que abrasá-la. Mas, com o passar do tempo, quando este fogo vai aquecendo a alma, é normal sentir mais frequentemente esta ardência e este calor de amor» (2N 13,5). O Espírito Santo é a «Chama de Amor» (ChB 1,3) que se apega à alma e a vai transformando, como a madeira verde, húmida e cheia de impurezas que é atirada ao fogo e, pouco a pouco, se torna em brasa incandescente que se confunde com o próprio fogo. Assim a alma contaminada pelas paixões do mundo é tocada pelo amor divino e, pouco a pouco, inflamada no Amor de Deus, que «a consome e transforma em amor suave» (ib.) até que ela ame a Deus com o Amor que é o próprio Espírito Santo.