Em tempos de indiferença e de iliteracia do sagrado escreve-se a propósito do álbum Seven Psalms que Paul Simon editou em maio último, e nos legou como um hino de Vésperas.
O cantor Paul Simon, judeu de 81 anos, tem mais de sessenta de carreira na música pop internacional, no conjunto da qual, de onde em onde, foram irrompendo subtis gemidos inspirados pelo Espírito Santo. A expressão pode não ser inteiramente categórica, mas eles lá estão e não são negociáveis. (Confiro que as minhas fichas o não inscrevem como cantautor católico, tão-só como crente; ou como crente à sua maneira, dir-se-á em clave ecuménica de manga larga… Mas isso não invalida que algo de bom e santo não irrompa em algumas das suas canções que ao longo da sua carreira de décadas ele nos tem cantado.)
Em finais de maio deste ano de 2023 Paul Simon ofereceu-nos Seven Psalms. Dada a sua idade longeva, alguns temem que seja álbum de despedida, em jeito de testamento (espiritual) – na verdade, o que mais temem é que a sua última palavra cantada seja um legado que se refira e ajoelhe diante de Deus. Podemos, ainda assim, assumi-lo como um álbum meditativo sobre transcendência, espiritualidade e finitude que, surpreendendo embora a muitos, não surpreendeu aqueles que, atentos ou afinados, o ouviram, e ouvem, em canções como genuínos latidos bíblicos da alma para Deus, tais como Mrs Robinson (1968); Bridge Over Troubled Water (1970); Jesus Is The Answer (1974); God Bless The Absentee (1980); The Rhythm Of The Saints (1990); Questions For The Angels (2011).
Aproximando-se do entardecer, Simon, lega-nos em Seven Psalms um sonoro e delicado testamento espiritual – assim o assumo. E a sua genialidade de poeta maior em muito contribui para vincar a força daqueles textos e, sobretudo, o sereno encanto do remurmurulhar da voz de Deus no seu e em nossos corações. Ou, dos que aceitam (poder) ouvi-lo.
Não sei se inteiramente ele assim o assume, mas é como do lado de cá se vê e se ouve. Pelo menos, eu. Creio, aliás, que o gesto foi além de pensado, impelido. Pensado, porque o próprio foi assumindo as dificuldades de estar em palco – está quase completamente surdo; e impelido porque, confessa ele, tendo abandonado a canseira das digressões, e só pisando, episodicamente, os palcos, em uma noite de meados de janeiro de 2019, acordou, e assim depois em outras sucessivas noites, e tendo ainda «a mente clara», durante semanas, não parou de escrever, como se mão invisível lhe apresentasse caneta e papel. Se era sonho se era vigília nem ele inteiramente o saberá; o certo é que escreveu sete poemas, ou salmos, ou hinos, como um só louvor. E dele nos fez partícipes.
O álbum é curto: trinta e três inteiros minutos, distribuídos por sete canções, interligadas ente si, sem cortes, isto é, como se de uma só canção se tratara. Trinta e três, e sete, são números que nos espirituais, peregrinos de outras andanças para além das terrenas, fazem vibrar ressonâncias únicas; tal como os nomes PAUL + SIMON, mesmo num judeu, despertam cordas que atiram para a firmeza de colunas que sobre a terra sustentam o sublime.
No dizer do autor, aqueles sete salmos, ou sussurros, emergiram não apenas para serem ditos, mas, sobretudo, cantados, como os de David; sim, cantados – mesmo que pela voz cansada de um bardo avizinhando-se-nos coberto pelo pó de mil caminhos –, mais que apenas declamados por pegoreiro exíguo; ou, talvez, apenas por almas singelas e louçãs, recém chamadas da letargia do sono para a Hora de Laudes, ou também por aqueloutras vespertinas avezinhas fugintes das inquietas águas refluíntes do dia, para o descanso que só a porta da Hora de Completas completamente abre. De facto, não à toa o álbum começa e acaba com o chamamento de um sino, lembrando a polifonia singela de um ciclo litúrgico abrindo-se e fechando-se sobre diurno pó da jorna orante.
A única faixa deste álbum, afinal tão vizinha – e porque não, gémea? – dos Salmos de David, abre com The Lord, e fecha com Wait. E no meio ficam os outros cinco temas – todos com o seu quê de autobiográfico. E aqui não inteiramente explorados.
Ao começar-se a escutar The Lord, impossível não pensar na Páscoa – a de Cristo e na pessoal, de cada um de nós – quando, logo ao primeiro dos versos, se lê: «Tenho pensado na grande migração»; de facto, no coração do crente com referenciais cristãos maior ânsia não há do que a de migrar para o «prado verde», aquele que só se alcança em pós a passagem – a Páscoa – desta terra de peregrinos para essoutra, a definitiva, de eternos prados verdejantes e refrescantes águas. Aliás, ao longo da vida, ou talvez melhor, mais profundamente na vizinhança do seu entardecer, poucas considerações existem, além desta, que nos façam erguer da cama a meio da noite, para meditar por semanas a fio!…
Ainda que esforçando-se por se firmar, o poema continua indefinido (quem, pois, hoje ou ontem, na esconcez de seus dias, pode falar com propriedade da inefabilidade de Deus?), embora tocante, tanto no seu refrão, como no restante:
«O Senhor é meu engenheiro
O Senhor é a terra em que eu ando
O Senhor é o rosto na atmosfera
O caminho em que eu escorrego e deslizo.»
Particular chamada de atenção para os versos «O Senhor é o meu engenheiro [de som?]» (The Lord) e «O Senhor é o meu produtor musical» (The Sacred Harp) porque, entendendo a perspectiva do cantor, e por antonomásia a da criatura em relação ao Criador, só a boa interligação entre aqueles dois auxiliares de um músico, e o cantor, pode ajudar a oferecer ao público uma mensagem clara, apoiada nas «cordas vibrantes» «que David tocou para fazer seus / Salmos de louvor». Em boa verdade, aqui, o bardo, qual salmista na liturgia católica, ergue-se e posta-se como voz entre Deus e a assembleia, para proclamar uma Mensagem que não é sua, visto que «Deus é a música que escuto / no vale profundo e nos cenários». Se Deus, cujo agir ali se subentende no labor do engenheiro [de som] e no do produtor, é quem pode garantir a eficácia da Mensagem, não restem, porém, dúvidas que à liberdade e responsabilidade do (ouvir e do cantar do) intérprete – e, de resto, nas de cada um de nós – cabe a tarefa de cantar, ou dizer, mas preferentemente, cantar, aquilo que não é seu, mas que ele colheu nas profundas solidões doutros lugares e dali deve trazer para a flor do dia e dos palcos, e dar aos pobres mais pobres como doce pão.
Sim, julgo, estarmos perante um testamento espiritual de Paul Simon. (Não sei se ele autoriza o dito, mas mais uma vez aqui fica dito!) Os seus seguidores e apreciadores rezam, porém, para que este não seja a sua última gabela de trigo, digo, de canções, que nos dá. O certo é que quem semeia em lágrimas – e quantas não terá ele chorado ao longo da carreira? – recolhe com alegria; – a expressão é de um dos salmos de David, e parece ser também, um dos horizontes destes nostálgicos salmos de Simon. Aliás, se de todo em todo aqueles hinos não transbordam alegria – o que ali só poderia ser entendido como delírio –, o certo é que não se isentam de confiança na mão do Senhor. A não ser assim, como entender o salmo ou hino quarto – o eixo da liturgia que o álbum nos propõe! – Your Forgiveness?
Na liturgia católica – da qual Paul Simon jamais se reivindica –, o pedido de perdão está sempre no princípio da celebração, o que claramente aqui não sucede, pois irrompe no meio do álbum. Mas óbvio é que tal acaba fazendo sentido, porque o meio é o eixo sobre o qual a roda da vida, e o corpo e a alma e o coração e a inteligência e o espírito, e a voz e a música, giram, como que dizendo que «ao menino de ontem [que] se foi» nada é possível sem perdão, porque tudo é feito ou dito, sempre «Esperando que os portões não se fechem / Antes do seu perdão» para «o último da fila».
Todo o místico despreza o tempo e anseia pelo rompimento da tela do doce encontro. O tempo é, entenda-se, o espaço que fica entre o cansaço das passadas e a respiração ofegante que, inevitavelmente, separa os versos das canções de uma jornada.
Todo o místico, Simon também, é um raminho frágil sobre um qualquer rio estranho donde pendem as nossas harpas, violas e cavaquinhos. Um dia antes do juízo, o raminho soçobrará quebrando-se sob uma qualquer tempestade de um qualquer agreste inverno. Uma só coisa será então de esperar, com inteligência e oração: que levadas à suprema audiência, o júri saiba trautear as nossas canções porque, afinal, jamais elas se compuseram para deleite pessoal, ou para apenas serem ouvidas ao longo dos trilhos de musgo antigo, por onde serpenteiam os nossos cansados passos.
Lendo e ouvindo Seven Psalms percebe-se – ou ao menos isso intui quem inquinado está pela fé na eternidade – que todo o homem, ou mulher, se confrontará com o seu momento de verdade: «a vida é um meteorito»; aliás, ninguém aqui é daqui, todos somos migrantes a caminho das águas refrescantes do céu! Sim, o galho parte-se. E, inevitavelmente, a «hora de regressar a casa», esse céu quase tão formoso como um lar (!), se nos achega. De facto, para uns, a Páscoa é tremenda, para outros, graciosa tela que se rompe, e concede o que, desde sempre, nos está prometido: uma mesa de pão doce e farto, um terno convívio em torno a uma taça, o abraço quente do Pai aos seus filhos e filhas.
O último disco de Paul Simon não é fácil de escutar.
Porém, tal como os salmos de David são fontes que brotam e borbulham da demorada experiência de veneráveis orantes, e hoje, para que nos refresquem, os não podemos rezar sem que hajam passado pelo cadinho do coração de Cristo, assim os de Simon devem ser escutados mil vezes, antes que dos nossos corações brote um litúrgico, digo, um comunitário, «Amen»!
Num tempo em que, como fumo, os corações dos nossos jovens quase se elidiram da serena paisagem dos templos católicos, e assim nos desampararam em pleno inverno – a JMJ será apenas ledo engano –, haveremos de notar, que nos ouvidos das nossas almas ainda teimam arder alguns vigorosos testemunhos ou luzinhas da presença de Deus! Contudo, o que eu vejo e considero, e para o qual não encontro explicação, é que a reverberação do divino não se calou, nem se cala ou calará, perante a aridez que nos assedia; e que tal como os insectos se atraem e se enchusmam em torno às fulgentes nocturnas lâmpadas, assim os nossos jovens se sentem impelidos em reunir- se nos campos de futebol da Académica, Barça e Ajax para entoar salmos e aleluias ao comando do som dos Coldplay!
Haja esperança enquanto a centelha arrisca a noite; enquanto um qualquer vetusto profeta com uma viola presa ao pescoço, ardendo, abre fendas na indiferença das muralhes de Jericó.