Provavelmente as palavras serão insuficientes para exprimir a torrente de graça de que fomos testemunhas durante estes dias e não se pode prever nem monitorizar o impacto imediato, e a longo prazo, das palavras, dos gestos e das inquietações que tamanho turbilhão de acontecimentos produziu e vai produzir nas nossas consciências e nas nossas vidas. Mas um desses impactos é, sem dúvida, a esperança que foi gerada no seio da alegria carregada de simplicidade, expressa no rosto de tanta gente, nas comunidades, nas ruas e nos transportes públicos por onde passaram estes jovens vindos de todas as partes do mundo.
No seu primeiro discurso, dirigido ao corpo diplomático e às altas individualidades que têm nas suas mãos os destinos dos países e da história, o Papa tocou em assuntos prementes para uma Europa não só envelhecida em idade, mas sem esperança.
A questão da esperança é essencial nas culturas humanas porque sabemos que vamos morrer e nos questionamos sobre qual vai ser a herança que deixamos às novas gerações. Citando Camões ao falar do Cabo da Roca – «Aqui onde a terra se acaba e o mar começa» –, o Papa Francisco apresenta o maior desafio da humanidade: transformar as fronteiras em espaços de encontro, de abraço, de acolhimento e não em espaços de morte, de isolamento, de exclusão. Este é o dilema da Europa face à crise dos refugiados e de imigração: ou acolhe e integra com dignidade e respeito as pessoas com a sua própria cultura, ou fecha as fronteiras com arame farpado e deixa morrer no mar os que fogem desesperadamente das guerras, da fome e de toda a espécie de perseguições aqueles que olham para a Europa como o último reduto de humanismo e de salvaguarda dos direitos humanos.
As palavras proféticas de inquietação e de encorajamento que o Papa trouxe às Jornadas Mundiais da Juventude são para todos nós. Destacam-se três desafios de mudança para a nossa cultura do conforto, utilitarista e comodista.
O primeiro passo é de mudança mental: deixarmos de pensar como “anciãos” que já pouco esperam da vida, olhando para o futuro com baixas expectativas, como se o mundo já não tivesse conserto, e passarmos a sonhar e a criar juntos caminhos de paz e de fraternidade, ouvindo o grande gesto de fraternidade dos jovens nas ruas de Lisboa, acolhendo a sua esperança e o sinal de que é preciso muito pouco para sermos felizes e para encontrar caminhos de comunhão e partilha. Ao questionar o corpo diplomático e os responsáveis políticos e da sociedade civil, em Lisboa, (onde em 2007, se firmou o Tratado de Lisboa, no culminar da terceira presidência portuguesa da união europeia, onde se deu o alargamento da codecisão a novas áreas legislativas), com a metáfora da navegação – «Que rota segues, Ocidente?» – o Papa afirma a necessidade de políticos hábeis e criativos, à imagem dos pais fundadores da união europeia, que «sonhavam grande». Esta Europa necessita urgentemente de olhar para o oceano como «origem de vida» e não como um cemitério que põe a nu a nossa indiferença perante o sofrimento e a morte de uma imensidão de seres humanos. É urgente banir os «arames farpados» das nossas vidas e proteger as vidas por nascer e as vidas com que nos cruzamos e necessitam de viver. Precisamos de ser «uma Europa capaz de reencontrar o seu ânimo jovem».
Um segundo passo é de resistência e resiliência: não termos medo de lutar para contrariar esta «cultura do descarte da vida» que usa tudo e deita fora, a qual afeta diretamente cada um dos vivos, em particular quando já não forem «produtivos» (tema que foi objeto de reflexão na Via Sacra). Esta é aquela que já o Papa João Paulo II apelidava de «cultura de morte» e que tem marcado de forma muito clara dinâmicas legislativas «sofisticadas» em toda a Europa, com as quais se facilita o aborto e a eutanásia, oferecendo às dificuldades da vida «o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas que na realidade é mais amarga que as águas do mar», exprimindo com evidência o desespero, a desistência de uma Europa e de um Ocidente sem expectativas para o futuro. Infelizmente, é também esta a sensação que trespassa muitas das manifestações de protesto e descontentamento de que se alimentam os populismos: uma classe política que não sonha o bem comum e que, por consequência, não consegue ter a criatividade para o alcançar. Não ter medo é, em primeiro lugar, lançar-se na aventura de promover a dignidade no trabalho, a criação de condições de acesso à cultura e ao conhecimento a todas as pessoas, independentemente da sua proveniência social e cultural, é não ficar indiferente face a qualquer forma de injustiça e de abuso e não desistir quando parece que já nada mais se consegue fazer. Aqui reside a criatividade: no acreditar que não há impossíveis quando se trata de promover a humanidade dentro e fora de nós. Não ter medo é tornar-se «surfista da paz», é ser corajoso nos cenários de maior conflitualidade para acreditar que nos oceanos «tempestuosos» só os que traçam rotas de paz serão capazes de dar ao mundo um futuro, onde os percursos de diálogo e de inclusão substituam a inimizade pela concórdia.
O terceiro passo é de uma ação comprometida e consequente: incluir. Somos desafiados a ter pensamentos e comportamentos inclusivos porque a exclusão é origem de muitas guerras, de muito sofrimento, e empobrece a vida e a cultura humanas. Só seremos verdadeiramente capazes de incluir quando reconhecermos no outro a mesma humanidade e a mesma dignidade que há em nós, dando-lhe a mesma oportunidade de ser visto e ouvido. O Papa Francisco tem sabido dar esta visibilidade aos excluídos em diversos momentos do seu pontificado e aqui, nas JMJ, fê-lo por diversas vezes, em particular quando, na oração do terço, em Fátima, colocou uma jovem deficiente a coordenar um dos mistérios. Deu-lhe visibilidade e deu-lhe voz, mostrando como temos de ir muito mais longe nos processos de inclusão em toda a sociedade, como temos de pensar e agir de formas inteiramente novas, dando visibilidade ao imperfeito em nós, reconhecendo a beleza de cada ser humano, independentemente da sua aparência ou capacidades. A expressão que fez repetir aos jovens e que repetiu por diversas vezes: «todos, todos, todos» é um enorme desafio numa Europa que ainda é só para alguns, onde há excluídos, sobretudo pela pobreza e pela deficiência, e numa Terra onde os vulneráveis são descartados pela escassez de recursos e de comunhão. O Papa valorizou, com ênfase, a missão de Lisboa como cidade cosmopolita, cidade da esperança e do futuro, onde, por exemplo, no bairro da Mouraria, convivem pacificamente 60 nacionalidades diferentes, demonstrando concretamente como é possível a paz, a concórdia e a fraternidade entre pessoas de diferentes culturas, línguas e tradições. O quarto passo é o de uma Igreja sem portas: o acolhimento eclesial tem de ser universal. A Igreja tem a missão do acolhimento na sua raiz, à imagem de Jesus, o Verbo de Deus, que acolhe em si a humanidade e de Maria, que acolhe o Verbo de Deus para o entregar à humanidade. A Igreja é, assim, desafiada a criar novas formas de inclusão porque o amor de Deus é para todos e tem de chegar a todos. Este desafio remete-nos para o Evangelho de Mateus 11, 5-6: «Os cegos vêm e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres. E bem-aventurado aquele que não encontrar em mim ocasião de escândalo». Um tão claro desafio é aquele que hoje o Papa entrega à Igreja: não somos uma Igreja de pessoas perfeitas, somos uma Igreja a caminho. Na verdade somos uma Igreja formada de cegos, de surdos, de coxos e de leprosos, isto é, de pessoas imperfeitas que se deixam curar por Jesus Cristo e pela sua mensagem, e que, experimentando a sua misericórdia e a alegria da salvação são impelidos a levá-la aos outros, a partilhá-la na simplicidade, sem imposições, mas com a certeza de que Jesus é a Boa Nova que tem de ser anunciada a todos os pobres do mundo, a começar em cada um de nós, que somos, simultaneamente e na medida da nossa condição, chamados a sermos coerentes com essa Boa Nova e fiéis ao compromisso que assumimos no Batismo. É a fidelidade a esse compromisso que pode mudar o mundo: o nosso mundo pessoal e a comunidade onde nos encontramos. E é nesses «canteiros de esperança» que a novidade da fraternidade acontece e podem germinar as sementes da paz.