Professor universitário. Carmelita secular

Um físico e um carmelita entram num bar…

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Um dia, porém, encontraram-se num congresso e foram beber um copo ao fim do dia. Foi o reencontro de dois amigos um pouco diferentes, um carmelita que era físico e um físico que era ateu.

O Rui e o Manuel são amigos desde a faculdade. Com uma paixão comum pela ciência como arte de compreender, partilhavam também uma certa fascinação pelo que, de uma forma muito abrangente, se pode classificar como “espiritual”. Houve até uma vez em que propuseram a uma associação espírita levar instrumentos científicos para uma sessão de comunicação com o além, para ver se detetariam algum sinal eletromagnético anómalo. Evidentemente, a proposta foi recebida com muita cautela e educadamente rejeitada. Após a licenciatura, cada um foi seguindo o seu caminho e, como é habitual na ciência contemporânea, pequenas diferenças nas escolhas iniciais dos temas de investigação acabaram por levá-los a áreas de trabalho cada vez mais distantes. No entanto, mantiveram sempre o contacto, unidos pela alma mater e pela paixão científica.
Ora, acontece que a certa altura o Rui se aproximou da Igreja Católica, enquanto o Manuel se enraizou cada vez mais numa visão agnóstica do mundo. Isso não trouxe qualquer problema à sua amizade. Quando a conversa tendia para os temas religiosos, o Rui nunca se chocava com nenhuma objeção do Manuel, e o Manuel também não perdia a paciência com o amigo recém caído nas malhas da superstição. Não é que não houvesse luta interior em cada um deles, que havia, mas a tolerância da verdadeira amizade é sempre mais forte. Na verdade, o Rui ficava sempre a perguntar-se se não estaria a ser demasiado tíbio na defesa da fé e a aceitar demasiado facilmente as objeções do amigo. O Manuel, por seu lado, debatia-se sempre com a incredulidade de ver um amigo inteligente a dizer coisas da Idade Média. Com este estado de espírito mútuo, as discussões religiosas eram mais uma espécie de combate de boxe simulado, com cada um a dar à vez o flanco ao murro do adversário, sabendo de antemão que esse murro seria desferido de forma a não magoar…
Passaram mais uns anos e o Rui e o Manuel acabaram por perder o contacto, com exceção dos enfaticamente efémeros votos de boas festas. Durante esse tempo, o Rui acabou por se tornar carmelita descalço secular, enquanto o Manuel se aproximou cada vez mais do ateísmo sério, daquele baseado na fé de que Deus não existe. Um dia, porém, encontraram-se num congresso e foram beber um copo ao fim do dia. Foi o reencontro de dois amigos um pouco diferentes, um carmelita que era físico e um físico que era ateu.
– Manel, nem acredito, que saudades, pá! Como estás? E a tua família? E o que andas a fazer?
– Rui amigo, está tudo bem connosco, felizmente. Olha, eu cá continuo no meu trabalho de física de partículas, à procura da matéria escura …
– Ahah, um trabalho muito dark! Nós também estamos bem, Graças a Deus! E acho que já tínhamos falado disto há uns anos, comecei a fazer coisas mais aplicadas. Agora ando a aplicar a ótica à agricultura.
Mas o Rui sentiu de imediato que aquele “Graças a Deus” despertou um sentimento de incómodo no Manuel. Pressentiu que o agnóstico bonacheirão de outrora tinha evoluído para outro tipo de agnóstico, talvez zangado ou ressentido…e o incómodo invadiu-o também.
– “Graças a Deus”? – reagiu logo o Manel. – Estás a falar a sério? Essa expressão não existia nas nossas conversas. Vejo que evoluíste para um católico mais tradicional.
– Ah, bem, se calhar tens razão, humm, pois…não temos falado muito, é a primeira vez em tantos anos que tenho a sensação que não conheces nem percebes o que penso…é estranho… – o Rui estava visivelmente atrapalhado e sem saber bem o que dizer.
– Pois, mas hás de convir que “Graças a Deus” é uma expressão contraditória com a realidade! – ripostou de imediato o Manel, no que parecia mostrar já alguma animosidade. – Como podes agradecer ao teu deus a tua boa vida, como se fosse um presente por bom comportamento, quando o mesmo teu deus deixa que aconteça tanto sofrimento à tua volta? Compreendes que o que fazes não é diferente do que fazia o homem primitivo, que oferecia sacrifícios às divindades em troca de proteção? Como consegues vegetar nessa irracionalidade?
O Rui ficou quase KO. As coisas estavam a acontecer demasiado rápido. Só percebeu que foi convocado para uma luta de boxe pelo amigo, tal como faziam antes, mas que a luta já não era simulada e que em vez de cumprimentar o oponente levou logo um furioso gancho de direita! Cambaleou, mas recuperou junto ao canto do ringue.
– Espera, tem calma! Não podes concluir que um católico é irracional só porque é católico! Conheces certamente católicos inteligentes e podias, ao menos, dar o benefício da dúvida!
O Manuel hesitou por uma fração de segundo, mas continuou logo ao ataque:
– Estás a falar dos argumentos racionais de Aristóteles e depois de São Tomás de Aquino e discípulos? Do argumento cosmológico? Que todas as coisas têm uma causa e que a cadeia de causas tem de acabar numa causa não causada? O motor imóvel? Quanto a mim, isso é perda de tempo. Para mim não há motivo nenhum para escolher entre uma cadeia infinita de causas ou uma cadeia de causas que tem o seu início numa causa que não é causada. Aliás, o segundo caso é que é estranho, pois é preciso introduzir uma exceção ao princípio de que tudo tem uma causa. São Tomás de Aquino concluiu que tem de haver uma causa não causada, como se fosse autoevidente, mas na verdade estava simplesmente a seguir a necessidade da “ordenzinha” humana. E tu sabes que muitas vezes não se consegue ver essa “ordenzinha” humana nos fenómenos físicos, como por exemplo na mecânica quântica! Portanto, porque é que essa ordenzinha há de ser obedecida pelo Universo como um todo?
– Bolas, que violência – estava a pensar para consigo o Rui. – Então, mas o Manuel andou a estudar São Tomás de Aquino? E eu, que me considero católico, pareço saber menos do assunto que ele!!
Assim se chegou ao fim do primeiro round deste combate imaginário. O Rui foi mesmo salvo pelo gongue, pois já estava no tapete e prestes a capitular.
– Bem, vejo que temos muito que falar. Se calhar é melhor sentarmo-nos calmamente com uma cerveja fresquinha!
O Manel desarmou por momentos e desencrespou-se a sua expressão.
– Claro, como nos velhos tempos! Façamos como Niels Bohr !
Enquanto esperavam pela cerveja e foram até à mesa, o Rui começou a sentir uma vontade incontrolável de ripostar na mesma moeda, de não se acanhar.
– Confesso que não sou especialista no argumento cosmológico, mas hás de conceder-me o seguinte ponto: o simples facto de considerares haver uma escolha (não trivial, eu sei) entre estas duas possibilidades (que são: a – uma cadeia infinita de causas; e b – uma cadeia finita de causas com uma causa incausada, que é Deus), mostra, pelo menos, que a questão de Deus não é uma simples superstição de homens primitivos e que é a própria razão que nos conduz ao problema da existência de Deus!
– Bem, está bem, até sou capaz de conceder isso… – o Manuel recuava pela primeira vez no ringue, para logo atacar de novo: – mas a experiência (método experimental, meu velho!) não fornece evidências de que exista um deus bom!
Apesar deste contra-ataque, o Rui estava motivado com a primeira investida e decidiu atacar por onde o Manuel menos esperava:
– Não sou dessa opinião, mas acho que há uma discussão prévia a essa. Digo-te sinceramente o que penso: penso que na tua obsessão de negares a existência de Deus és contraditório com a tua crença na ciência racional. E mais: forjaste para ti um deus que me parece menos provável que o meu!
O Manuel ficou aturdido, incrédulo, entre o gozo e a curiosidade.
– O quê? O que é que estás para aí a dizer? Acho que tu é que tens a obsessão de defender o teu deus, de tal forma que estás já a aplicar as técnicas da desinformação. Mas não vale a pena, estamos aqui só nós os dois, não há público! Como é que eu podia ser anti-científico??
O Rui tentou então explicar um argumento em que vinha a pensar nos últimos tempos, passo por passo.
– A origem da vida, por exemplo…
– Ah, não, também és criacionista??
– Não é isso…concordas comigo que a ciência atual não faz ideia de como se originou a vida?
– Não, não concordo. Como sabes, já nos anos 50 as experiências de Urey e Miller mostraram que em condições próximas da atmosfera primordial da terra, é possível criar moléculas orgânicas, como os aminoácidos, a partir de uma mistura de gases simples: metano, o hidrogénio, o amoníaco e o vapor de água . E os aminoácidos são os blocos constituintes das proteínas!
– Mas, Manel, dizer que percebemos a origem da vida porque percebemos a génese dos aminoácidos é como dizer que uma casa se vai construir espontaneamente porque há areia e pedras no chão!
– Não, é um processo gradual, mas eventualmente descobriremos todos os passos. Por exemplo, ainda há pouco tempo li um artigo em que se observou a formação espontânea de proteínas a partir de aminoácidos . Um passo mais!
– A mesma observação, Manel! Em vez de teres areia e pedras passaste a ter aglomerados de areia! E repara que passaram 70 anos e não se avançou quase nada!
– Não estás a ser justo! Sabemos muito mais coisas! Sabemos que existem reações muito simples, plausíveis na Terra primitiva, que poderão ter levado à criação de açúcares e das bases dos ácidos nucleicos; que membranas como as que se encontram nas células se formam espontaneamente a partir de lípidos; e que estas membranas permitem gerar energia de uma forma simples pelo processo da quimiosmose!
– Certo, concedo tudo isso, embora haja muitas objeções à potencialidade real de algumas dessas reações, de poderem também gerar compostos que se opõem à formação dos produtos desejados e de muitas vezes se ler nos artigos científicos que um dos reagentes poderia vir de um cometa… mas passemos à frente disso tudo. Esse nem é o ponto essencial…
– Qual é o ponto então? – interrompeu o Manuel, que já estava a ficar visivelmente agastado.
– O ponto é que para a física e a bioquímica, a matéria é burra, Manel. As moléculas andam agitadas, de um lado para o outro, a colidir entre si como carrinhos de choque conduzidos por loucos furiosos e, eventualmente, ligam-se para formar moléculas maiores, se isso corresponder a um estado energético mais baixo. A construção de um edifício tão complexo como uma célula, em que há muitos níveis hierárquicos de moléculas sucessivamente mais complexas, que ainda por cima funcionam em relação umas com as outras (o que quer dizer que teriam de ser criadas ao mesmo tempo), é algo que não se compreende como poderá ter emergido a partir de choques aleatórios entre moléculas simples. Certamente há uma probabilidade para isso ter acontecido, mas de certeza que é estupidamente baixa!
– É como eu disse, o que não sabemos hoje, saberemos amanhã! – ripostou o Manel.
– E é aqui que eu digo que estás a faltar ao espírito científico!
– O quê??
– Sim, tu sabes de probabilidades, tu sabes de estrutura química, tu sabes de física. E de tudo o que tu sabes, nada consegue explicar a formação inicial de uma célula, quanto mais de um organismo pluricelular! Tu sabes que nunca houve observação experimental de uma transição de matéria não-viva para matéria viva . E no entanto…
– E no entanto? – o Manuel já não aguentava o suspense, porque ainda não tinha percebido para onde o Rui queria levar a conversa.
– E no entanto, continuas agarrado à tua máxima “o que não sabemos hoje, saberemos amanhã” da mesma forma irracional que identificaste no meu “Graças a Deus” de há pouco! Por amor ao método científico devias dizer antes todo o trabalho realizado até agora não pode excluir a hipótese de um princípio inteligente que dirige a vida na Terra.
– Portanto, a origem da vida é a prova de Deus? É o teu ponto?
– Não. O meu ponto é que nesta questão específica da origem da vida, a ciência ainda não conseguiu excluir (e provavelmente nunca conseguirá) a hipótese da existência de um princípio inteligente, a que chamamos Deus. Como vês, sou menos dogmático que tu! Usar cegamente a autoridade científica para rejeitar a crença em Deus, como sendo uma superstição primitiva, é que é um exemplo de dogmatismo onde menos seria de esperar encontrá-lo!
– Já nem sei o que dizer. Afinal sou dogmático por acreditar no conhecimento científico… – o Manuel já só estava a dizer aquilo para não se ficar, mas tinha compreendido a ideia do Rui, e estava arrependido por nunca ter pensado nestes assuntos de forma justa e honesta. – Mas olha lá, porque é que disseste que eu forjei para mim um deus … ou sei lá o quê?
– Repara, se tu acreditas piamente que as tuas colisões de moléculas deram origem à vida, então acreditas no deus “acaso”. Tu tens uma fé inabalável que a vida surgiu por acaso, que houve uma sequência de acontecimentos altamente improváveis, em que as tais moléculas burras se encontraram para formar estruturas vivas que, ainda por cima, e por acaso, se conseguem replicar. É muita fé, realmente. Mas pronto, podes ter razão! Pode ter sido assim! Pode ter sido de outra forma. Mas não digas é que o teu deus “acaso” é mais plausível que o meu bom Deus! Porque não é, de acordo com tudo o que sabemos.
O Manuel fez finalmente uma pausa para assimilar aquela conversa toda.
– Bem, tenho de pensar melhor nestas coisas… para já é melhor concordarmos que discordamos. Não estás chateado com esta discussão, pois não, Rui?
– Claro que não Manuel, a razão e a fé são amigas! Bora lá, mais uma cerveja e vais contar-me as últimas da matéria escura!

Um dia, porém, encontraram-se num congresso e foram beber um copo ao fim do dia. Foi o reencontro de dois amigos um pouco diferentes, um carmelita que era físico e um físico que era ateu.

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