O bicho da seda e a borboleta

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Moradas ou Castelo interior é mais do que um livro da Santa e Doutora da Igreja, Teresa de Jesus. Com este símbolo do Castelo retrata-nos traços do mistério da relação do homem com Deus. Porque o homem é capaz de Deus, as portas que Santa Teresa nos ajuda a abrir franqueiam-nos a possibilidade de entrar dentro do nosso Castelo Interior e aí construir uma verdadeira história de amizade «com Quem sabemos nos ama».

Todos somos chamados a este diálogo com o Dono deste Castelo, um diálogo a que chamamos oração. Esta construção simbólica teresiana, esta parábola que vamos saborear é um roteiro de uma viagem pelo nosso interior, onde Deus se passeia, pois conhece os cantos do nosso Castelo mais do que nós próprios. Ele ajuda-nos a dar este passeio pelo nosso interior pelo cultivo da vida espiritual, pois estamos, como discípulos de Cristo, o mestre da interioridade, a crescer e a amadurecer o nosso diálogo amoroso com Deus Pai, tal como Ele o viveu e nos ensina.

A linguagem simbólica de Santa Teresa é muito rica, dispensa a narração explícita e abre-nos àquilo que é o símbolo que diz sem dizer, que diz de forma a entrevermos sentidos e significados escondidos. Deixa ao nosso cuidado, conforme a nossa capacidade de “escuta” conhecer o caminho que ela percorreu; e ao conhecermos a sua viagem interior, ficamos confrontados com a nossa própria viagem, pessoal e intransmissível, e com a nossa própria história que não para de se escrever: nascemos para ter asas e voar até ao infinito, porque o Infinito nos abre as suas portas. Nas Quintas Moradas deste Castelo, Santa Teresa apresenta-nos uma outra parábola – a do Bicho da Seda – onde resume todo o itinerário do Castelo: Partilhamos pedaços dessa passagem: «Já tereis ouvido falar das maravilhas de Deus no modo de criar a seda. Realmente só Ele era capaz de semelhante invenção. Tudo começa num ovo, semelhante a pequenos grãos de pimenta (que eu nunca vi, mas disseram-me; por isso, se alguma coisa for incorreta, a culpa não é minha). Com o calor, ao começarem a rebentar as folhas nas amoreiras, o ovo começa a viver; enquanto este alimento de que se sustentam as larvas não aparece, o ovo está como morto. Estas larvas vão-se alimentando com folhas de amoreira até que, já grandes e postas nuns ramitos, aí vão, com as suas boquitas, tirando de si mesmas fios de seda e fazendo uns casulos muito apertados aonde se encerram. Ali morre este verme, que é gordo e feio, e do mesmo casulo sai uma borboletinha branca muito bonita. (…) Mas voltemos ao que estava a dizer. Este verme começa a ter vida quando, com o calor do Espírito Santo, se começa a aproveitar do auxílio geral que Deus a todos nos dá, e quando começa a aproveitar-se dos remédios que deixou na Sua Igreja, como por exemplo a confissão frequente, as boas leituras (…) começa a viver e vai-se alimentando disso e de boas meditações até ficar crescida. Depois de este verme crescer começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde irá morrer. Gostaria de dar a entender aqui que esta casa é Cristo.» (5M 2, 2-6).

Diz-nos Santa Teresa, com esta imagem, que a nossa vocação à relação com Deus passa por Cristo. O cristão cresce em Cristo, configura-se com Ele até à plena união, até poder dizer como S. Paulo: «para mim viver é Cristo». Os dons e as graças que recebemos no Batismo, vividos em chave de inabitação trinitária, conduzem-nos à plenitude, à verdadeira união que dá frutos no serviço aos outros.

Esta parábola, descrita nas Quintas Moradas, diz-nos que esta quinta de sete etapas é um momento onde precisamos de trabalhar muito para unir a nossa vontade à vontade de Deus, mediante o exercício do amor, tanto a Deus como aos irmãos. Então, e porque nestas moradas se trata da transformação por amor, Santa Teresa oferece-nos esta parábola para explicar que, conforme o bicho da seda «morre» para dar lugar à borboleta, assim também o orante das Quintas Moradas, ao introduzir-se na morada que é Cristo, morre nele o homem velho para renascer o homem novo transformado e transfigurado.

Nos princípios deste caminho, quando a pessoa se encontra nas Segundas Moradas, tinha descoberto que Deus a estava a chamar para um diálogo, para uma relação de amizade; contudo, ainda não estava disciplinada nos compromissos que fizera com Deus: sobre o tempo que lhe dava na oração e no exercício das virtudes, sente que desanima rapidamente, pois a nossa natureza resiste e quer apegar-se às consolações mais básicas, sente-se presa ao terreno e ainda não voa como a borboleta mas sente-se a rastejar como a lagarta. Mas, a pouco e pouco, e se perseverar, sem desânimos, começa a aparecer em nós uma atitude de maior escuta, disciplina, determinação da vontade, que nos dão bases para fazer caminho.

O orante das Moradas onde encontramos esta parábola, já percebeu que, ao adentrar-se cada vez mais na profundidade do amor de Deus e ganhando consciência de que no seu centro habita a Trindade, participa cada vez mais da intimidade com Ele.

É neste processo laborioso, de morada em morada, que vai morrendo o homem velho, como «morre» o bicho da seda, para se transformar em borboleta, num processo de conversão, de metamorfose, até consolidar a relação de amizade com Cristo, passando a aceitar o convite para O seguir, como seu Senhor e Mestre.

O processo inicia-se quando começa a tecer o seu casulo, ou seja, quando se encerra, se esconde em Cristo, meditando a Palavra, dedicando um tempo diário à oração, vivendo uma vida nova, baseada nos critérios do Evangelho. Aqui, a pessoa é chamada a renunciar à própria vontade para se abrir ao amor, à maneira de Jesus, que ama e perdoa sem limites. O bicho da seda que quer ser borboleta, e voar para Deus, não pode estar apegado a nada na terra, ou seja, para voar, precisa de adquirir um dom precioso e específico de todo o ser humano: a liberdade. Deve praticar as virtudes da humildade, da obediência, do desprendimento, do amor e o exercício contínuo da oração. Por outras palavras, viver uma vida virtuosa. O bicho da seda não sabe como se dá a transformação mas sabe que é no tempo de Deus, que não pode ser acelerado ou forçado. Só quando morrer para o «mundo», no que ele significa de apegos, ou seja, quando já não lhe interessem os amores menores e passageiros, e se abre a um amor maior; então aí ganha asas e nasce a pequena e branca borboleta.

Assim, neste processo de transformação, quando o cristão une a sua vontade à de Deus, qual borboleta leve e ágil que voa sem encontrar repouso, já não encontra repouso em nada terreno, mas apenas em Deus. Mas, atenção, embora viva de um modo novo, unido a Deus, isso não significa que os seus trabalhos tenham cessado, porque agora tem outros novos: participa no sofrimento da Cruz, ou seja, embora viva em paz, dói-lhe muito que Deus seja ofendido e que veja tantas criaturas humanas como ela errantes e em sofrimento porque não se poem a fazer caminho, não têm horizonte de esperança e crescimento diante de si. Diz-nos Teresa: «Oh, como Deus é grande! Ainda há poucos anos, ou talvez dias, esta alma não pensava senão em si. Quem a terá metido em tão penosos cuidados? Mesmo que queiramos contar os muitos anos de meditação, não poderemos sentir o que esta alma tão penosamente sente agora. Oh, valha-me Deus, então não bastará que eu, durante muitos dias e anos, medite no terrível mal que é ofender a Deus, pense que muitos dos que se condenam são Seus filhos e meus irmãos, considere os perigos de pecar em que vivemos e na vantagem de sair desta miserável vida?» (5M 2, 10).

Esta parábola mostra-nos assim a condição do ser humano à face da terra: passar de verme rastejante, como a lagarta, para uma linda borboleta, que ganhou asas e voa ao encontro de Deus e a partir de Deus ama com uma amor purificado e qualificado os que lhe são próximos: a família, os amigos, a comunidade. Esta passagem de um estado a outro dá-se pelos desejos intensos de crescer, de percorrer um itinerário de conversão, de passagem do egocentrismo à generosidade, numa doação a Deus e aos outros, que num cristão são movimentos inseparáveis: quantos mais nos damos a Deus, mais os que nos são próximos beneficiam dessa doação.

Isabela Neves

Moradas ou Castelo interior é mais do que um livro da Santa e Doutora da Igreja, Teresa de Jesus. Com este símbolo do Castelo retrata-nos traços do mistério da relação do homem com Deus. Porque o homem é capaz de Deus, as portas que Santa Teresa nos ajuda a abrir franqueiam-nos a possibilidade de entrar dentro do nosso Castelo Interior e aí construir uma verdadeira história de amizade «com Quem sabemos nos ama».

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