Fev 27, 2024 | Desafios, Entre fé e ciência

Médico – Carmelita Secular

O impacto da religião na medicina

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Ao longo dos meus textos anteriores abordei a relação entre ciência e religião, refletindo sobre a forma como a sociedade tem tendência a ver uma e outra como opostas ou conflituantes, e procurando desmistificar essa ideia.

Esta visão de que ciência e religião não são opostas é também defendida pelo Papa Francisco, que várias vezes o demonstrou em escritos, homilias e discursos. Na verdade, não é só o Papa Francisco que mostra que elas se complementam. A própria ciência se tem debruçado sobre o assunto e demonstrado que fé e religião têm impacto na saúde das pessoas que a vivem.

Em 2012, o Dr. Singh afirmava que a espiritualidade desempenha um importante papel na saúde física, emocional e social das pessoas. E que, apesar da medicina moderna ter procurado separar a cura física da cura espiritual, os pacientes preferem ser abordados como a pessoa (inteira) que sofre e não como o indivíduo que tem um órgão disfuncional[1]. Esta necessidade de se ser visto como alguém e não uma doença, alguém que sonha, que padece e que necessita de apoio quer técnico, quer social, quer espiritual, tem ganho cada vez mais importância na medicina.

De acordo com a sua pesquisa, o Dr. Singh verificou que diversos autores identificaram que as pessoas que tinham fortes raízes espirituais experimentavam menores sintomas depressivos, ansiosos ou dolorosos e uma melhor qualidade de vida. Mesmo em termos de escolhas de vida, estas pessoas estavam relacionadas com melhores escolhas, como menor consumo de tabaco e álcool. E muitos pacientes reportavam que a espiritualidade os ajudava a lidar com a doença que enfrentavam[2].

No livro “Hostility Towards Hospitality: Spirituality and Professional Socialization within Medicine”, os autores verificaram que as pessoas com mais ligação religiosa ou espiritual não só tinham melhores resultados em saúde, em especial ao nível da qualidade de vida, mas também maior satisfação com a prestação de cuidados que recebiam. E que os doentes que recebiam menor atenção às suas necessidades espirituais por parte da equipa de saúde, tinham despesas em saúde superiores (de mais de 2000 dólares) na última semana de vida[3].

A medicina tem tido, porém, dificuldade em lidar com este aspeto da vida dos seus doentes. Os autores do livro pensam que isso se deve a vários fatores. Primeiro, porque os hospitais são, muitas vezes, instituições voltadas para a tecnologia e a cura e não para uma prestação de cuidados humanizados. Depois, porque os profissionais de saúde conceptualizam-se mais como cientistas e gestores de saúde, do que profissionais capazes de estar atentos à pessoa como um todo. E porque, muitas vezes, os profissionais de saúde consideram que lidar com o medo, a finitude e a morte são temas subjetivos, que são mais bem trabalhados por religiosos[4].

Em 2018, o Papa Francisco, numa audiência aos participantes de um seminário de ética na gestão dos serviços de saúde, organizado pela Pontifícia Academia para a Vida, afirmou que “cuidar dos nossos irmãos abre o nosso coração para acolher um dom maravilhoso” e propôs três palavras para reflexão: milagre, cuidado e confiança. O milagre acontece quando o profissional de saúde encontra no doente, de quem cuida, um irmão, “o recetor das prestações de imenso valor de sua dignidade como ser humano, como filho de Deus”. Sobre o cuidado, o Papa Francisco frisou que “cuidar dos doentes não é simplesmente a aplicação asséptica de medicamentos ou terapias apropriadas, mas (…) que o verbo latim “curare” quer dizer atender, preocupar-se, cuidar, ser responsável pelo outro, pelo irmão.” E, por fim, sobre a confiança, acrescentou que é fundamental que o doente confie em si e na sua cura, mas também que confie nos profissionais de saúde. E conclui que “a relação com o doente exige respeito na sua autonomia e grande disponibilidade, atenção, compreensão, cumplicidade e diálogo, para ser expressão de um compromisso assumido como serviço[5].

Em 2023, numa audiência com os representantes do Hospital Francesco Miulli, o Papa Francisco “destacou dois aspetos desta obra: colocar a pessoa no centro e promover a pesquisa científica.” O Papa salientou ainda que, com a fidelidade ao compromisso de colocar a pessoa no centro, o hospital passou por um crescimento contínuo, evidenciado pela atualização constante, tanto dos tratamentos, como das estruturas, conseguindo prestar o serviço mais completo possível aos pacientes[6].

Felizmente, os profissionais de saúde estão cada vez mais despertos para a necessidade de humanizar os serviços de saúde, de colocar os doentes no centro da atividade assistencial de saúde e de promover uma integração de todas as dimensões da pessoa humana nas instituições de saúde. Já há vários anos que hospitais e outras estruturas de saúde procuram implementar serviços e práticas de humanização na prestação de cuidados de saúde. Já em 2019, entre nós, a então Ministra da Saúde, Dra. Marta Temido, afirmou que “humanizar os cuidados é tomar consciência que são as pessoas, os doentes, os familiares que encerram a centralidade da atividade da saúde” e que “humanizar os cuidados é (…) a expressão dos valores humanos em contexto de relação quotidiana entre os profissionais de saúde (…) e destes com os utentes[7].

Integrar, na prestação de cuidados de saúde, todas as dimensões que constituem a pessoa que deles necessita, é o caminho para uma saúde melhor, para uma qualidade de vida melhor e para um maior respeito e consideração pelos mais vulneráveis e doentes.

 


[1] A. S. Singh DK, “Spirituality and religion in modern medicine.,” Indian J Psychol Med., vol. 34(4), pp. 399-402, 2012 Oct.

[2] A. S. Singh DK, “Spirituality and religion in modern medicine”.

[3] M. e. B. T. Balboni, “Hostility Towards Hospitality: Spirituality and Professional Socialization within Medicine,” Oxford University Press, 12 outubro 2018. [Online]. Available: https://bioethics.hms.harvard.edu/journal/spirituality-medicine. [Acedido em 24 fevereiro 2024].

[4] M. e. B. T. Balboni, “Hostility Towards Hospitality”.

[5] Vatican News, “Papa. Cuidar dos nossos irmãos doentes abre o nosso coração,” Vatican News, 01 outubro 2018. [Online]. Available: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-10/etica-saude-papa-francisco.html. [Acedido em 24 fevereiro 2024].

[6] Canção Nova, “Saúde centrada na pessoa, com apoio da tecnologia, indica Papa,” Vatican News, 18 dezembro 2023. [Online]. Available: https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/discursos/saude-centrada-na-pessoa-com-apoio-da-tecnologia-indica-papa/. [Acedido em 24 fevereiro 2024].

[7] Serviço Nacional de Saúde, “Humanização Hospitalar,” Serviço Nacional de Saúde, 04 setembro 2019. [Online]. Available: https://www.sns.gov.pt/noticias/2019/09/04/humanizacao-hospitalar/. [Acedido em 24 fevereiro 2024].

Ao longo dos meus textos anteriores abordei a relação entre ciência e religião, refletindo sobre a forma como a sociedade tem tendência a ver uma e outra como opostas ou conflituantes, e procurando desmistificar essa ideia.

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