Nos 50 anos do dia que abril abriu, propõe-se uma reflexão sobre a liberdade quando, também entre nós, se começa a propor a revisão da história, o cancelamento sistemático da liberdade, e se nega a pluralidade de convicções. Ora, como haveremos de situar-nos neste contexto se «foi para a liberdade que Ele nos libertou» (Gal 5,1)?
A liberdade está ameaçada pela propagação do movimento do cancelamento. A comemoração dos 50 anos da revolução de abril traz-nos à memória concidadãos nossos e acontecimentos extraordinários que rebentaram com as cadeias de uma ditadura. A memória desta viragem na comunidade nacional merece todo o realce nos mais diversos âmbitos da sociedade. Todos somos devedores aos homens e mulheres que lutaram pela nossa liberdade. Também a Igreja deve muito aos protagonistas de abril, porque antes vivia a sua fé condicionada ou mesmo amordaçada pelo regime vigente. Como em quase todos os âmbitos da sociedade, também a Igreja integrou, ora o grupo dos protagonistas de abril, ora o grupo dos antagonistas deste movimento libertador. E hoje mantém-se em todos os segmentos da sociedade esta dupla tendência: há quem continue a lutar pela liberdade e há quem estaria mais confortável com a restrição de liberdades (sobretudo dos outros) e a imposição tentadora do pensamento único, de um sistema super-organizado onde tudo já estivesse programado até às realidades escatológicas.
Mas a liberdade, e sobretudo a liberdade de consciência, de pensamento e de expressão do mesmo, é das causas mais nobres, distintivas e dignificadoras da pessoa. Estas causas nunca estão definitivamente adquiridas, são luta de todos os dias.
Quando se deu a revolução de abril era ainda uma criança inconsciente. Dei-me conta que tudo se agitava à nossa volta, que havia algo de profundamente novo no ar, no rosto das pessoas, nas atitudes, na esperança e na alegria, mas também havia alguma apreensão… notava tudo isto, mas não alcançava o seu significado mais profundo. Hoje, volvidos estes 50 anos, compreendo como faz todo o sentido manter viva a memória e a luta pelos ideais da liberdade de pensamento, expressão e criatividade.
Uma, entre tantas outras, das ameaças atuais à liberdade encontra-se concentrada no chamado «movimento woke». Até há quem lhe chame «a religião woke» (cf. Jean François Braunstein, Ed. Guerra e Paz, 2023), com as suas crenças e rituais. O termo «woke» deriva da cultura popular negra americana. Foi re-significado e assumido por muitos outros grupos, que se apresentam como «guerreiros da justiça social», maioritariamente da classe estudantil, sobretudo nas universidades dos Estados Unidos. Elegem inimigos por todos os lados e fazem tudo para lutarem, até com meios agressivos, ao que eles chamam a «cultura dominante». O wokismo tornou-se uma política de cancelamento sistemático da liberdade assente na razão, na pluralidade, no respeito pelas diferenças. O wokismo quer impor, vem já a impor de forma irracional e agressiva, um conjunto de princípios norteadores na vida em sociedade baseados em preconceitos sem aderência à realidade. Não admitem minimamente o pluralismo de convicções, de crenças, de organizações sociais e familiares, que rotulam rapidamente de tradicionais, tradicionalistas, ultramontanos, racistas, de supremacistas a combater, a cancelar. Têm um conceito de liberdade muito estranho, extremista e apenas unilateral. Só existe a sua liberdade e só eles a merecem. Extremam a chamada ideologia de género a variantes nunca vistas. Não há na sua visão nem homens nem mulheres, mas apenas o transgénero com uma variante que pode mudar cada dia. Querem revisitar toda a história dos povos e nações e reescrevê-la com os seus critérios assentes na mais pura subjetividade, longe do mínimo bom senso e do exercício da razão mais básica.
Na nossa sociedade portuguesa, nalgumas movimentações sociais e políticas já se identifica claramente estas tentações do cancelamento de quem no exercício da sua liberdade manifesta uma determinada postura seja conotada mais com a direita ou a esquerda, o tradicionalismo ou progressismo, a crença ou o ateísmo… Precisamos de estar muito atentos a estas movimentações e com liberdade e razoabilidade, com os instrumentos legais e morais dos avanços civilizacionais, e não deixar que regresse a mordaça, a ameaça ou a intimidação, apenas por acreditar, pensar e decidir de forma livremente diferente.
A liberdade é um bem demasiado preciso para ser aprisionado pela negação da verdade, da razão e da ciência. Por isso, volvidos 50 anos do 25 de abril, não deixemos apagar o sonho e a esperança que esses dias abriram no nosso horizonte.
O cidadão que professa a fé em Cristo encontra a sua fonte de inspiração e exercício da sua liberdade em Jesus de Nazaré, o Homem livre e libertador. «Foi para a liberdade que Ele nos libertou», testemunha S. Paulo (Gal 5,1). A chamada história da salvação é uma história de libertação, de libertações sucessivas, que nos ajuda a ler as escravidões dos nossos dias e a lutar contra elas. Esta história de libertação continua. Portanto, não deixemos que nós nem nenhum ser humano à face da terra regresse à cegueira, à incapacidade de escutar o outro, às polarizações do nós e eles, à escravidão da autorreferencialidade, seja de que ideologia for. Na verdade, encontramos em Jesus a força para lutarmos pela liberdade e foi essa força que alimentou a luta de muitos concidadãos nossos há 50 anos. Onde houver um homem ou uma mulher a lutar pela sua liberdade, assente na verdade do respeito por si mesmo e pelos outros, encontrará em cada seguidor de Cristo um aliado, partilhe da sua fé ou não.
O exercício da sinodalidade, de escuta e diálogo, que o Papa Francisco pediu a toda a Igreja é um excelente meio para alcançar a liberdade onde todos têm lugar, onde não é preciso cancelar, estigmatizar e ou rotular o outro para que eu tenha lugar. Há lugar para todos.