«A cultura europeia brotou do encontro entre a razão e a fé cristã. Hoje, a pretensão de neutralidade impede-nos de reconhecer quem somos. Temos de nos reencontrar com o que forjou a nossa civilização» era a manchete do artigo de opinião de António Pedro Barreiro, publicado no Jornal Observador[1].
Acerca deste equilíbrio, qual ave em pleno voo sem uma asa, já os Romanos tinham o «In medio virtus» – «No meio está a virtude».
Tomando estas premissas numa época em que parece ser ‘racional’, ‘técnica’, desenvolverei o diálogo entre a ‘Ciência’ e a ‘Fé’ em relação ao Génesis – às origens – do ser humano e do mundo.
A Bíblia, Palavra de Deus para os Cristãos, tem as suas raízes nas questões filosóficas da Humanidade.
Desde há dois mil anos[2], os leitores encontram aí respostas às inquietudes e ânsias dos seus tempos. O mundo atual não escapa a essa regra o que leva as pessoas a questionarem-nos, questionarem-se e a questionarem Deus.
Ler a Bíblia nunca foi fácil. O apóstolo Filipe, vendo um alto funcionário egípcio debruçar-se sobre as visões do profeta Isaías, pergunta-lhe: – «Compreendes verdadeiramente aquilo que lês? E o estrangeiro responde: – Como posso compreender se ninguém me explica?» (Actos 8, 30).
O livro do Génesis é o primeiro livro da Bíblia, mas não foi o primeiro a ser escrito. Aliás, todo ele é um retalho de tradições de várias épocas.
Donde vem todo este material?
O povo hebreu vivia numa região onde se cruzavam muitos povos e civilizações. Este facto originou um inegável intercâmbio cultural entre eles. Os impérios que dominaram a Mesopotâmia e o Egipto, assim como as civilizações da Fenícia e de Canaã, são a fonte literária e histórica do Génesis e do Antigo Testamento em geral. Por isso, neste livro encontramos abundantes elementos dessas culturas: Suméria, Babilónia e de Ugarit, especialmente os poemas da Criação, Enuma-Elish e Atrahasis. O poema de Gilgamesh está também presente.
Os livros da Bíblia Hebraica não tinham qualquer título. Eram chamados, simplesmente, pela primeira ou primeiras palavras (ainda hoje é assim em alguns documentos escritos pelos Papas). Os autores da tradução da Bíblia Hebraica para o grego (Bíblia dos Setenta) acharam por bem dar aos livros um título de acordo com o seu conteúdo. Como este livro trata do princípio de tudo, chamaram-lhe Génesis, isto é, Livro das Origens.
Todos os povos se perguntaram alguma vez: Donde viemos? Qual foi a nossa origem? Quem foi o fundador do nosso povo? Qual o nosso destino?
O povo de Israel, na sua reflexão interna ou no confronto com outros povos, religiões e culturas, colocou a si próprio estas e outras questões semelhantes e deixou-nos as suas respostas neste livro. O Génesis é, pois, o livro das grandes interrogações e das grandes respostas, não só do povo de Deus, mas de toda a humanidade.
Essas narrativas não são históricas; são, antes de tudo, reflexões do povo sobre as suas origens e a origem das coisas. Seu interesse não é dar uma explicação científica ou histórica sobre o passado, mas contar o passado para explicar a realidade que se vive no presente.
Podemos dividir o Génesis em duas grandes partes:
- À primeira parte podemos chamá-la de «as origens» (capítulos 1-11): relata as origens do mundo, da vida e dos diversos povos; apresenta o valor que devemos dar à obra de Deus: a natureza, a vida e a pessoa humana, tudo obra de Deus;
- A segunda parte (capítulos 12-50) trata da história dos patriarcas e matriarcas, personagens importantes do mundo bíblico. Esta parte pode ser subdividida em três blocos: (1) Abraão e Sara (12-25); (2) Jacob e seus filhos (26-36); e (3) José e seus irmãos (37-50).
O livro do Génesis precisou de, sensivelmente, quinhentos anos de composição para o conhecermos como está. Foi elaborado em três momentos importantes: (1) durante o reinado do rei Salomão (971-931 a. C.); (2) durante o período entre 800-700 a. C. – tempo dos profetas; e (3) durante o período do Exílio (cativeiro) na Babilónia e do pós-exílio (585-400 a. C.) – período entre a deportação dos judeus da Palestina para a Babilónia, efetuada pelo rei Nabucodonosor II, e a libertação, em 538 a.C., pelo rei persa Ciro. Em 520 a. C. inicia-se a reconstrução do Templo e de 445 a 443 a. C. reconstroem-se as muralhas de Jerusalém. É neste último período que recebeu os últimos acréscimos e retoques.
As histórias e narrativas das famílias, dos clãs e das tribos, gradualmente essas “histórias particulares”, foram sendo reelaboradas, agrupadas e costuradas, formando o livro que temos na Bíblia. Por isso, encontramos no livro algumas repetições, além do contorno que receberam dos últimos redatores, que são os sacerdotes ligados ao Templo de Jerusalém, no período pós-exílio.
O Génesis, assim como outros livros bíblicos, não foi escrito na época em que as coisas aconteceram. A literatura bíblica não é jornalismo que divulga os fatos quase ao mesmo tempo em que acontecem, nem propriamente História no sentido moderno, com provação científica. Os autores do Génesis não tiveram intenção de descrever como tinha surgido a Humanidade (nem eles, provavelmente, saberiam) mas apenas comunicar a re(ve)lação: Deus chamou-nos no Princípio e chama-nos continuamente a uma vida de amor e de harmonia com todas as coisas criadas. Aconselho a ler a Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco.
Ciência ou Bíblia?
Ciência (Ciência = Instrução = Filosofia = Conhecimento = Razão) ou Bíblia (Bíblia = Religião = Fé = Crença religiosa) é uma pergunta que não faz sentido. Deveremos substituir a conjugação “ou” pela conjugação “e”, e, em vez do ponto de interrogação, deveremos colocar apenas um ponto final: Ciência e Bíblia.
Ciência e Bíblia apresentam discursos diferentes, mas não se contradizem; pelo contrário, complementam-se. Uma diz quando e como foi (Big-Bang, Evolução…), outra diz porquê e para quê: Deus criou-nos porque nos ama e para sermos felizes, convivendo em harmonia entre toda a Criação[3].
Se pretendermos conhecer algo a fundo, com seriedade, com verdade, não podemos analisá-lo só a partir de um ponto de vista; temos de o estudar sob diversas perspectivas. Assim é com a Origem. Mas há que fazer as perguntas certas a cada domínio do conhecimento; por exemplo, não podemos esperar que a Bíblia dê lições de Química ou que a Matemática dê aulas de História.
Na Carta Encíclica Fides et Ratio escrita pelo Papa João Paulo II, em 1998, aos Bispos da Igreja Católica sobre as relações entre Fé e Razão, escreveu logo no início: «A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do Homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio».
Quadro comparativo
Sobre a génese do mundo e do ser humano, vejamos neste quadro a perspetiva científica, histórica e bíblica.
Como se pode aferir por este quadro comparativo, Ciência, História e Bíblia não se contradizem, mas, pelo contrário, complementam-se.
O Pe. Vítor Pereira, pároco em Trás-os-Montes, no seu artigo de opinião no Jornal ‘A Voz de Trás-os-Montes’ do dia 10 de abril de 2024, diz o seguinte[4]:
«O positivismo, o racionalismo e o materialismo impuseram-se nos últimos séculos e tornaram-se intelectualmente dominantes, depreciando os postulados e as crenças da fé. Ambas têm muito a ganhar quando se aproximam e dialogam, partindo de uma base humilde: ninguém sabe a verdade toda e há várias formas de chegar a verdade. Até se costuma dizer que pela fé chegamos a quem criou o mundo, pela ciência chegamos ao como se criou e evoluiu o mundo. Deus não é demonstrável pelo método científico, mas isso não quer dizer que Deus não exista e que a inteligência não capte a existência de Deus».
Desafios
Antes de dar por concluída a minha incursão pelas esferas da Ciência e da Fé, deixo três desafios que se podem considerar estímulos ao intelecto:
- para descontrair, convido quem me lê a ver a animação «A evolução do Homer | Abertura Os Simpsons Português BR»[5];
- Elementos simbólicos nas narrativas da Criação e interpretação
- «Adão» – tanto se refere a adamá (solo vermelho) como a dam (sangue); podemos traduzir Adão por tirado do húmus (da terra, da argila, do solo), o que significa o seu enraizamento corporal no universo material; de acordo com o texto bíblico, é o sopro de vida, que Deus lhe insufla nas narinas, que o converte numa pessoa viva, capaz de se relacionar;
- «Eva» – emhebraico significa vivente. O nome Eva – vida, mãe dos viventes, lugar da vida, maternidade – quer exprimir a função materna da mulher;
- «O homem e a mulher ficam a ser uma só pessoa» – o homem e a mulher, embora diferentes, são feitos um para o outro, são complementares. Deste modo, a sexualidade humana está ligada à obra do Criador e ao seu projeto de felicidade para a humanidade;
- «Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança» – o homem e a mulher foram criados por Deus e que há neles algo de divino. Somos parecidos com Deus: capazes de amar, criar [co(n)criadores], cuidar da natureza e dos outros;
- «Dar nome» –Deus quis colocar a natureza ao serviço do ser humano. A responsabilidade sobre a natureza pertence à humanidade, cabe-lhe usar os seus recursos de forma justa e equilibrada;
- «Sete» – é um número sagrado porque significa totalidade, plenitude e perfeição; na narrativa da Criação, tudo foi feito em seis dias e no sétimo dia a obra tinha atingido a plenitude;
- «Jardim do Éden» – as origens remotas do povo da Bíblia situam-se na Mesopotâmia, uma região fértil entre os rios Tigre e Eufrates. Um verdadeiro Paraíso. O Jardim do Éden, Jardim das Delícias ou Paraíso Terrestre, é na tradição das religiões abraâmicas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) o local simbólico da primitiva habitação da humanidade.
- Civilizações/culturas/religiões
Deixo um grande desafio, se preferir, um estímulo a que procure saber como as seguintes civilizações/culturas/religiões “relatam” a Criação:
- Egito Antigo;
- Grécia Antiga;
- Romanos;
- Índia;
- China Antiga;
- Hinduísmo;
- Islamismo;
- Judaísmo;
- Aztecas;
- Maias;
- Incas;
- Celtas;
- Candomblé;
- Índios da América do Norte;
- Suméria;
- Umbanda;
- Países Nórdicos;
- Persia;
- Cultura aborígene australiana
- Outras…
Fontes de pesquisa
- A BÍBLIA – Vários autores. Paulus Editora: Lisboa, 2007.
- ALESSANDRELLO, Anna – A Terra – Origem e Evolução. Editora Replicação: Lisboa, 1993.
- CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Gráfica de Coimbra, 1993.
- COUPER, Heater e HENBEST, Nigel. – Big Bang. A história do Universo. Gradiva Publicações: 1997.
- Descobrir a Terra 7. Manual de Ciências Naturais, 7.º Ano. [Vários autores]. Areal Editores: Maia, 2012.
- EINSTEIN, Albert – Como vejo a Ciência, a Religião e o Mundo. Relógio d’Água, 2005.
- HARARI, Yuval Noah – Sapiens. De Animais a Deuses. História Breve da Humanidade. L & PM Editores: Porto Alegre, 2015.
- HAUKING, Stephen – Breve História do Tempo. Gradiva Publicações, 2019.
- Holloway, Richard – Uma Breve História da Religião. Tradução de Manuel Alberto Vieira. Editorial Presença, 2018.
- História. Manual de História 7.º Ano. Santillana: Lisboa, 2012.
- KELLER, Werner – … e a Bíblia tinha razão. Lelivros: Hamburgo, 1955.
- MCGRATH, Alister – Ciência e Religião: fundamentos para o diálogo. Thomas Nelson Brasil, 2020.
- Papa João Paulo II – A Fé e a Razão. Carta Encíclica Fides et Ratio. Paulinas: Lisboa, 1998.
- PINNA, Lourenzo – A Terra. Asa Editores: Porto, 2000.
- PLANTINGA, Alvin, e DENNETT, Daniel Clement – Ciência e Religião: são compatíveis? Tradução de Davi H. C. Bastos. Editora Ultimato, 2022.
- Quero Saber! 7.º Ano de Escolaridade. Manual de Educação Moral e Religiosa Católica. Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã: Lisboa, 2015.
- Quero Saber. A Revista que desperta a sua mente, n.º 77, Fevereiro de 2017.
- RUTHERFORD, Floyd James Ervin e AHLGREN, Andrew – Ciência para Todos. Gradiva: Lisboa, 1990.
- https://www.vortexmag.net> category > historia.
- Say Yes – Diário de Bordo de catequistas. Etapas 3, 4 e 5. SDEC: Lisboa, 2019.
- YOUCAT. Catecismo jovem da Igreja Católica. Paulus Editora: Lisboa, 2011.
[1] In https://observador.pt/opiniao/diz-me-de-onde-vens/
[2] As datas apresentadas podem variar de autor para autor, sendo, por isso, meramente indicativas.
[3] Convido a ler a Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco.