Mai 21, 2024 | Desafios, Sabedoria da Cruz

Carmelo de Aveiro

A Páscoa da Sabedoria

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Vamos entrar outra vez na ala do meu claustro de onde contemplo a Cruz. Desta vez para falar da “Páscoa da Sabedoria”.

Falar de Páscoa implica sempre falar de um dinamismo de caminho muito especial, porque trata-se sempre de passar de passar de um estado a outro. A passagem é sempre sinal de um antigo e um novo e de um movimento intermédio que serve de ponte entre os dois. Este movimento é algo que com frequência nos escapa apesar de estar subjacente a tudo o que fazemos. Tudo exige docilidade e flexibilidade para nos deixarmos afectar pela energia própria de cada coisa, o movimento íntimo que a constitui e que é por parte dela participação em Deus Criador. O próprio Deus amor é Páscoa constante, porque é Amor em comunicação.

Para termos uma imagem do que estamos a dizer, tenhamos presente Maria Madalena quando foi junto do sepulcro e não viu o corpo do Senhor, ficando à porta a chorar. Depois viu Jesus Ressuscitado, mas pensou que era o jardineiro e disse-lhe: “se foste tu que o levaste diz-me onde o puseste?” Jesus chamou-a pelo seu nome e ela reconheceu que era Jesus. O estar apegada ao Jesus que humanamente conhecia impedia-a de reconhecer o Jesus ressuscitado que agora tinha diante de si. Faltava a páscoa da fé, que é luz que ilumina o dinamismo do amor e faz conhecer e comungar do movimento vital de Deus.

Falarmos de Páscoa da Sabedoria é penetrar no mistério da acção de Deus e conhecer como nos Espírito, a Sabedoria se faz páscoa em nós. Vou apenas falar dum movimento do Amor de Deus que na minha vida se tornou Páscoa da Sabedoria, um movimento que o Espírito Santo me ensinou a chamar passagem “da Cruz ao Verbo”.

Na realidade, ao contrário do que nos possa parecer, a cruz não tem nada de estático: a cruz é fonte; a cruz é porta; a cruz é ponte. Palavras que nos permitem penetrar no dinamismo de salvação e vida nova que ela nos oferece.

Vamos então abrir o nosso livro da vida e aproximar-nos da Páscoa da Sabedoria, desde a passagem “da Cruz ao Verbo”.

Ao percorrer o caminho da sabedoria da cruz tive por companheira uma presença. Uma presença constante, que se impôs a minha morte com muita suavidade e firmeza, uma presença que me infundia a esperança de uma vida nova. A presença da Palavra de Deus. A Palavra de Deus foi se tornando o ar que respirava, o alimento que comia para poder continuar o caminho e a água que ia matando a minha sede. Estava muito longe de conhecer o poder e a força criadora que a Palavra de Deus encerra, mas de facto experimentei-a “viva e eficaz”, mais penetrante que uma espada de dois gumes e capaz de ressuscitar os mortos.  Eu era a prova disso.

Mas falarmos da Palavra de Deus requer que recuemos ao momento da Criação em que Deus pronunciou a Sua Palavra. Aí vemos que “Deus disse e assim se fez”. A Palavra realiza o que diz e se dita por Deus com mais empenho temos de nos abrir ao seu cumprimento em plenitude. É neste contexto que Maria responde ao Anjo: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”, o que quer dizer que Ela acreditava na força da Palavra.

De facto, quando não temos nenhum outro apoio, não apresentamos nenhuma resistência, nem buscamos nada fora de Deus, a fé vai-nos fazer conhecer o grande mistério de amor que é: o Pai colocar na terra árida da nossa existência o seu Verbo, tal como O colocou numa manjedoura em Belém. A nossa existência torna-se espaço de “nova encarnação”, porque não nascemos da carne nem do sangue, mas da vontade de Deus e da sua plenitude recebemos graça sobre graça.

Com a fidelidade à oração e em cada manhã me por à escuta do que Deus me queria dizer a mim, através da Sua Palavra, despertando a minha fé para ver como Ele a realizava na minha vida, fui descobrindo que a Palavra tinha um dinamismo próprio. O dinamismo da encarnação do Verbo.

Andava a falar com o Espírito Santo deste mistério quando Ele me fez encontrar Isaías 55, o texto que, para mim, revela o dinamismo perfeito da Encarnação da Palavra e nos converte, a nós, em lugares de nova encarnação, em morada do Verbo. O texto diz assim:

«Assim como a chuva e a neve descem do céu,
e não voltam mais para lá,
senão depois de empapar a terra,
de a fecundar e fazer germinar,
para que dê semente ao semeador e pão para comer,
o mesmo sucede à palavra que sai da minha boca:
não voltará para mim vazia,
sem ter realizado a minha vontade
e sem cumprir a sua missão.» (Is 55, 10-11)

É um texto do Antigo Testamento com elementos comuns ao da Anunciação do evangelista Lucas. A palavra é de facto chuva de graça que desce de Deus, fecunda, rega e faz germinar o Verbo em nós, tornando-O o pão que sacia a nossa fome, isto é, o Homem Novo da nossa existência. O Verbo Eterno feito carne na nossa carne.

E Deus confirma a garantia do cumprimento da sua Palavra, ou se quisermos, da fidelidade à Sua promessa. A Palavra não voltará a mim sem dar fruto, sem cumprir a minha vontade, sem realizar a missão para a qual a enviei.

 Estes três requisitos são um desafio à nossa fé e ao mesmo tempo a exigência para que Deus cumpra o que nos diz. Mais ainda, são uma manifestação do amor de Deus a nossa vida. É o acto amoroso de Deus a amar-nos e a recriar-nos no Verbo, a fazer-nos entrar nas Suas entranhas  maternas e a fazer-nos “carne da sua carne”, quero dizer, a fazer-nos comungar do seu Ser divino e a viver a Sua mesma vida.     

Este dom do Espírito à minha vida, que foi Isaías 55, levou-me a descobrir o vínculo de união que me une ao Verbo, a clarificar a minha atitude diante da Palavra de Deus e a tomar consciência de mim como Palavra dita por Deus. Palavra que o Pai pronunciava no segredo da minha alma e se realiza no concreto da vida. Palavra que não era uma palavra qualquer, mas o Verbo Eterno e por isso eu participava no mistério de Cristo.

Depois disto aceitei viver o grande desafio que é eu mesma ser Palavra de Deus, quero dizer: acolher-me de Deus como Palavra que Ele pronuncia sobre mim, vivendo na fé o mistério da minha participação em Cristo e realizando a minha única vocação – ser Cristo, com Cristo e em Cristo. É um estar no Verbo, no Seio Trinitário, e um ser Cristo pela participação no Seu mistério. E isto porque «é o Pai que estando em mim faz as obras».

Também o Papa Francisco nos diz que a Páscoa é o grande desafio que é feito a cada um de nós. Ele convida-nos a deixar-nos guiar pelas mulheres do evangelho para fazer-nos a nossa passagem, das trevas da noite à luz da ressurreição, da Cruz ao Verbo.

«Quando já a noite ia clareando e irrompiam, silenciosas, as primeiras luzes da aurora, aquelas mulheres foram ao sepulcro para ungir o corpo de Jesus. E lá vivem uma experiência que as turvou: primeiro, descobrem que o sepulcro está vazio; depois, veem duas figuras em trajes resplandecentes que lhes dizem que Jesus ressuscitou; imediatamente, correm a anunciá-lo aos outros discípulos (cf. Lc 24, 1-10). Veem, escutam, anunciam: com estas três ações, entremos também nós na Páscoa do Senhor.

As mulheres veem. O primeiro anúncio da Ressurreição é feito, não sob uma fórmula a decifrar, mas sob um sinal que se deve contemplar. Num cemitério, junto dum túmulo, onde tudo deveria estar em ordem e sossego, as mulheres «encontraram removida a pedra da porta do sepulcro e, entrando, não acharam o corpo do Senhor Jesus» (24, 2-3). Por outras palavras, a Páscoa começa invertendo os nossos esquemas. Chega com o dom duma esperança surpreendente. Mas não é fácil acolhê-la. Às vezes (temos de o admitir!) esta esperança não encontra espaço no nosso coração. Em nós, como nas mulheres do Evangelho, prevalecem interrogações e dúvidas, e a primeira reação face ao sinal imprevisto é o medo, é voltar «o rosto para o chão» (cf. 24, 4-5).

Com muita frequência, contemplamos a vida e a realidade com os olhos voltados para baixo; Mas, nesta noite, o Senhor quer dar-nos olhos diferentes, iluminados pela esperança de que o medo, o sofrimento e a morte não terão a última palavra sobre nós. Graças à Páscoa de Jesus, podemos dar o salto do nada para a vida, «e a morte não poderá mais defraudar-nos da nossa existência» (K. Rahner, O que significa a Páscoa, Brescia 2021, 28): esta foi abraçada, inteiramente e para sempre, pelo amor sem limites de Deus. Abramo-nos à esperança de Deus!

Em segundo lugar, as mulheres escutam. Depois de terem visto o sepulcro vazio, dois homens em trajes resplandecentes disseram-lhes: «Porque buscais o Vivente entre os mortos? Não está aqui; ressuscitou!» (24, 5-6). Faz-nos bem ouvir e repetir estas palavras: não está aqui! Sempre que pretendemos ter entendido tudo acerca de Deus, podê-Lo arrumar nos nossos esquemas, repitamos a nós mesmos: não está aqui!

Ouçamos, também nós, a pergunta dirigida às mulheres: «Porque buscais o Vivente entre os mortos?» Não podemos fazer Páscoa, se continuamos a morar na morte; se permanecemos prisioneiros do passado; se na vida não temos a coragem de nos deixar perdoar por Deus – que perdoa tudo -, a coragem de mudar, de romper com as obras do mal, a coragem de nos decidirmos por Jesus e pelo seu amor; Não nos demoremos ao redor dos túmulos, mas vamos redescobri-Lo a Ele, o Vivente! E não tenhamos medo de O procurar também no rosto dos irmãos, na história de quem espera e de quem sonha, na dor de quem chora e sofre: Deus está lá!

Por fim as mulheres anunciam. Que anunciam elas? A alegria da Ressurreição. A Páscoa não acontece para consolar intimamente quem chora a morte de Jesus, mas para abrir de par em par os corações ao anúncio extraordinário da vitória de Deus sobre o mal e a morte. Por isso, a luz da Ressurreição não quer delongar as mulheres no êxtase dum gozo pessoal, não tolera comportamentos sedentários, mas gera discípulos missionários que «voltam do sepulcro» (24, 9) e levam a todos o Evangelho do Ressuscitado. Apenas tinham o coração ardente para transmitir a notícia, o anúncio: “O Senhor ressuscitou!”

Diz-nos o Papa: a nossa esperança chama-se Jesus. Ele entrou no túmulo do nosso pecado, chegou ao ponto mais distante onde andávamos perdidos, percorreu os passos emaranhados dos nossos medos, carregou o peso das nossas opressões e, dos abismos mais escuros da nossa morte, despertou-nos para a vida transformando o nosso luto em dança. Façamos Páscoa com Cristo! Ele está vivo e ainda hoje passa, transforma e liberta. Com Ele, o mal já não tem poder, o fracasso não pode impedir-nos de recomeçar, a morte torna-se passagem para o início duma nova vida. Porque com Jesus, o Ressuscitado, nenhuma noite é infinita; e mesmo na escuridão mais densa, nesta escuridão brilha a estrela da manhã.»

Rezemos juntos o desafio de nos abrirmos à Páscoa da Sabedoria:
Senhor,
Tu és o dom da Páscoa,
o dom da Tua Páscoa,
e nesta Páscoa Tu dizes-me:
“Ressuscitei por ti”.
Com estas palavras ofereces-me
 a Tua vida de Ressuscitado,
convidas-me a acolher o Teu mistério
e a aspirar às coisas do alto.
És meu
Porque vens ao meu encontro
Com a Tua palavra
E me aqueces o coração.
És todo para mim
Porque me convidas a dar-Te a minha vida
Para que vivas em mim,
Porque Tu és o Eterno vivente,
Aquele que na Encarnação se fez Deus-Comigo
E que na Ressurreição me conquistou
A vida eterna.
Ó Divino Crucificado-Ressuscitado
Por meu amor,
Eis-me aqui para viver a vida nova
Que me ofereces,
Para seguir o caminho na luz
Que me apresentas.
Eis-me aqui para viver a Páscoa da sabedoria!

Vamos entrar outra vez na ala do meu claustro de onde contemplo a Cruz. Desta vez para falar da “Páscoa da Sabedoria”.

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