Gilberto e Jorge, pai e filho. Um católico, o outro ateu, ou pelo menos agnóstico. Gilberto preocupa-se, naturalmente, que o filho seja ateu. O Jorge sabe que o pai se preocupa, e isso preocupa-o, mas não vê como poderá fazer alguma coisa acerca disso. Hoje vão numa longa viagem de carro. Já é noite e a conversa acabou por tender (uma vez mais) para a religião.
Gilberto e Jorge, pai e filho. Um católico, o outro ateu, ou pelo menos agnóstico. Gilberto preocupa-se, naturalmente, que o filho seja ateu. O Jorge sabe que o pai se preocupa, e isso preocupa-o, mas não vê como poderá fazer alguma coisa acerca disso. Foi à catequese até ao terceiro volume e depois recusou-se a continuar, com uma violência tão grande, que o pai Gilberto e a mãe Francisca não tiveram coragem de contrariar. Isto não se passou sem grande dilema de consciência por parte dos progenitores. Mas o pároco local, o Pe. Castanho, sossegou-os e lembrou-os de Santo Agostinho e Santa Mónica: “Nunca deixem de rezar pela sua conversão! Deus ouve sempre!“. A verdade é que o Jorge manteve sempre um interesse intelectual pela religião, mesmo agora, que já é um jovem adulto. Os pais gostam de pensar que aquele interesse, apesar de racional e científico, é uma semente de esperança. O Jorge compreende em grande parte os dilemas e as questões da Igreja, e até ouve muitas vezes o Papa Francisco, embora o encare como mais um líder mundial. Por isso, o Gilberto e o Jorge conseguem falar sobre religião com respeito mútuo e, mais importante ainda, com conhecimento da posição do outro, porque além do conhecimento que o Jorge tem da realidade católica, o Gilberto também já foi ateu e nunca se esqueceu que o foi.
Hoje vão numa longa viagem de carro. Já é noite e a conversa acabou por tender (uma vez mais) para a religião.
– Pois é, pai, como estava a dizer no outro dia (mas depois não acabámos a conversa), entre muitos outros problemas, tenho a sensação de que a Igreja não está a comunicar bem. A forma como tenta comunicar com os não-crentes tende a afastá-los ainda mais – disse o Jorge, com uma atitude parecida à de um adepto de futebol que sente simpatia por outra equipa e até gostaria que esta fizesse uns “pontitos”.
O Gilberto também tinha as suas ideias sobre o assunto, mas ficou curioso. Realmente, nada como saber diretamente de um ateu o que sente relativamente à atitude evangelizadora da Igreja. Ele próprio passou por uma fase de um certo ateísmo, mas depois de regressar à barca de Pedro, percebeu que nunca foi um ateu de verdade. Também sentia que o Jorge não era um ateu de verdade – e punha nisso toda a sua esperança –, mas de qualquer forma, aquela introdução à conversa deixou-o intrigado.
– Porque é que dizes isso?
– Porque os argumentos da Igreja partem, geralmente, de uma posição em que já é preciso ter alguma fé.
– Como assim? – perguntou o Jorge ainda mais intrigado.
– Por exemplo, é muito comum que um católico tente explicar a sua fé a partir de alguma variação de “Deus é Amor“, como o clássico “Jesus é teu amigo”; ou que diga que Jesus morreu por nós na Cruz, e que não pode haver maior amor que esse; ou, ainda, que a perfeição do mundo é a prova de um Deus sublime…
– Bem, tudo isso é verdade para um católico… – replicou embatucado o Gilberto, revendo-se, em parte, naquela descrição.
– Pois – replicou logo o Jorge –, mas pensa bem: geralmente, um ateu é ateu porque não vê grandes motivos de otimismo no mundo. E opta pela derrota da esperança. É difícil um ateu ser sensível a argumentos que quase são ofensivos da sua visão do mundo. Sim, porque o otimismo irritante dos católicos é mesmo isso para os não-crentes: irritante. Resulta daqui que este tipo de argumentos que citei apenas os vão exasperar e afastar mais. Compreendes o meu ponto? Que achas?
O Gilberto, no fundo concordava. Nunca o tinha formalizado dessa forma, mas aquela descrição ia de encontro a alguma desorientação que sentia neste campo.
– Acho que compreendo o que queres dizer, sim. Para dizer a verdade, eu raramente chego a esse ponto a que te referes, ou seja, eu raramente me envolvo em conversas, com amigos ou colegas, até que se proporcione falar das minhas razões para ser católico…
– Ai sim!? – exclamou logo o Jorge, um pouco espantado com aquela confissão. – Pensei que eras mais ativo nesse campo…
– Pois, não, a verdade é que não sou – continuou o Gilberto ainda mais constrangido. – Acho que me escudo demasiado na ideia de que o modo de viver de um católico é a melhor evangelização…
– Aah… estou a ver… e já deu muitos frutos, essa estratégia? – perguntou ironicamente o Jorge.
– Não… nenhuns… pelo menos que eu perceba – confessou, ainda mais envergonhado, o Gilberto. – Na verdade, nem na nossa família.
Com isto, foi como se o Gilberto expusesse uma ferida aberta. Sem saber bem como reagir, preso em sentimentos contraditórios, o Jorge sentiu a necessidade de, por um lado consolar o pai, mas, por outro, de afirmar a sua independência intelectual:
– Oh, pai, isso consome-te, não é? Desculpa. Bem, na verdade gostaria de pedir desculpa, mas não há que pedir desculpa, acho eu. As coisas são assim. Não vejo o que vês, não sinto o que sentes, não percebo como podes sentir aquilo que dizer sentir. De quem é a culpa? Tua, minha, de Deus?
– Não acho que haja culpa, meu filho. Porque é que as coisas são assim? É um mistério. Mas, dentro desse mistério, acredito que Deus nos ouve, como ouviu a Santa Mónica. Por isso, sabes que continuo a rezar pela tua conversão. E acredito que um dia verás o que eu vejo, sentirás o que eu sinto e perceberás o que sinto.
Carinhosamente, o Jorge colocou a mão no ombro do pai.
– Obrigado, pai. Também acho que seria mais feliz se conseguisse acreditar…
Emocionados, e com um nó na garganta, mantiveram-se em silêncio por uns minutos, enquanto deslizavam pela noite estrelada. Afinal, se algum deles tentasse falar naquela altura, era provável que começasse a soluçar…
Quando já era seguro voltar a falar, o Jorge quis voltar a um ponto que lhe tinha surgido na mente há uns minutos atrás:
– Estava a pensar nessa questão da conversão, como me parece tão arbitrária…
– Ah, sim? Explica melhor – respondeu logo o pai, antecipando novas dificuldades teológicas.
– Sim, claro. Pensa em São Paulo, que perseguia cristãos e que, do nada, teve a sorte de ser convertido por Jesus “himself“!
– “Sorte”? Estás a dar-me esperanças!
– Estou a colocar-me na pele de um cristão, ok? Segue-me então: Paulo, aliás Saulo, era um tipo mauzinho e foi bafejado pela graça da conversão sem a pedir. Portanto, foi uma escolha de Deus claramente arbitrária. E há muitos outros exemplos. Olha, por exemplo, acabei de ler, por curiosidade, um livrinho pequeno, intitulado “Deus existe, eu encontrei-o“, de …
– André Frossard!
– Ah! Conheces? – O Jorge retira então o livro da mochila e começa a folheá-lo, à procura das partes que mais o impressionaram. – Então deves lembrar-te que ele tinha 20 anos, era totalmente cético, ateu e de extrema-esquerda (filho do primeiro secretário-geral do partido comunista francês). Um dia vai dar um passeio com o seu amigo Willemin, que era católico. Este aproveita para ir rezar numa igreja, mas demora-se um pouco. André decide entrar e procurá-lo, pois estava “cansado de esperar pelo fim das incompreensíveis devoções” do amigo. É então que, ao olhar para a segunda vela que ardia à esquerda da cruz, “se desencadeia, bruscamente, a série de prodígios cuja inexorável violência vai desmantelar num instante o ser absurdo que eu sou e fazer surgir à luz, ofuscada, a criança que nunca fui“.
– Sim, lembro-me bem desse livro – reforçou o Gilberto, em tom nostálgico. – Ao princípio é um bocado chato, porque ele insiste em caracterizar com demasiado detalhe a sua vida, a sua origem, a sua família, os seus ideais socialistas… só depois percebi que ele o faz propositadamente para demonstrar sem margem de dúvida que ele seria a pessoa mais improvável para acontecer tal conversão. E também o faz para mostrar a sua sanidade mental e como o seu relato é credível. Aliás, André Frossard teve depois uma vida notável, fez parte da resistência francesa, foi preso pela Gestapo, recebeu a Legião de Honra, foi eleito para a Academia Francesa e recebeu a Grande Cruz da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, pelas mãos de João Paulo II.
– Pessoalmente, acho que estava sob o efeito de algum alucinogénico, ainda que inalado inconscientemente – atalhou o Jorge, provocando alguma deceção no pai –, mas não há dúvida que a descrição dele é muito impressionante.
– Ora lê lá umas partes, que já não me lembro – pediu o Gilberto.
– Aqui vai: “Primeiro, são-me sugeridas as seguintes palavras: vida espiritual. Não me são ditas, não as formo eu próprio, ouço-as como se fossem pronunciadas perto de mim em voz baixa por uma pessoa que veria o que eu não vejo ainda.” E um pouco mais à frente: “Não digo que o céu se abre; ele não se abre, ele lança-se, eleva-se subitamente, fulguração silenciosa, desta insuspeita capela na qual se encontrava misteriosamente incluído“. E depois…”O pintor a quem seria dado vislumbrar cores desconhecidas, pintá-las-ia com o quê?“… e aqui: “É a realidade, é a verdade, vejo-a da margem obscura onde ainda estou retido. Há uma ordem no universo, e no seu cume, para lá do véu de bruma resplandecente, a evidência de Deus, a evidência feita presença e a evidência feita pessoa precisamente daquele que eu teria negado um instante antes, que os cristãos chamam o nosso pai, e de quem aprendo que é sereno, de uma serenidade sem semelhança com qualquer outra, que não é a qualidade passiva que por vezes se designa por esse nome, mas uma serenidade ativa, explosiva, ultrapassando toda a violência, capaz de fazer estilhaçar a pedra mais dura e, mais dura que a pedra, o coração humano“.
– Uau! O que ele sentiu não será exprimível por palavras, mas talvez que as que ele usou sejam as melhores possíveis.
– Sim, mas a questão mantém-se: porquê eles e não outros? Porque é que São Paulo, André Fossard e tantos outros receberam a conversão sem pedir e a maioria dos “comuns mortais” não tem a mesma oportunidade? Eu só vejo uma explicação: estados psicológicos alterados! São tão aleatórios como os processos de conversão!
Gilberto sorriu perante a conclusão do filho e percebeu que tinha acabado de surgir afinal uma oportunidade para tentar explicar as suas convicções mais profundas.
– Eu sei, é difícil (se é que é possível) compreender. Mas olha, voltemos ao princípio da conversa, e deixa-me tentar mostrar aquilo em que acredito. E vou seguir a tua sugestão: não vou invocar argumentos de autoridade teológica nem nenhuma variação de “Deus é Amor“.
– Ok, escuto – replicou o Jorge, quase divertido.
– Para começar, quero até reforçar o que disseste com outro exemplo dessa aparente arbitrariedade. Santa Teresa relata, na sua Vida, inúmeras visões e manifestações extraordinárias. Porque, então, não recebemos todos esses dons? Porquê apenas ela? Ou, pelo menos, porquê apenas algumas almas escolhidas?
– Sim, realmente, porquê? – reforçou de imediato o Jorge.
– Bem, talvez possa tentar uma explicação mais abrangente, que depois incluirá a resposta a esta aparente arbitrariedade. Assim, tenho de ir ao princípio de tudo. E isto poderá também ser a resposta, ou pelo menos, uma resposta possível, ao problema da falta de adequação da argumentação evangelizadora ao mundo real, que foi por onde começámos.
– Muito bem, estou a ficar curioso – apoiou logo o Jorge, que estava visivelmente a ficar mesmo curioso.
– Bem, eu acho que a única forma de dialogar com os ateus é ir até à bifurcação onde as nossas visões do mundo se separam, pois é ai que ainda pode haver um ponto comum.
– Mas há? Eu acho que não há…
– Há sim. O que nos separa, Jorge?
– Isso é fácil: Deus separa-nos: tu achas que existe, eu acho que não – respondeu o Jorge, ligeiramente desiludido pelo início simplista da resposta prometida.
– Mas qualquer uma dessas convicções – existir ou não Deus – é uma resposta ao mistério fundamental da existência. Esse é um mistério que deslumbra crentes e ateus. Repara bem: eu não estou a falar dos átomos, das galáxias e de todos os seus mecanismos, que as leis da física poderão um dia descrever (eu não acredito nisso, mas fica para a próxima). Estou a falar de “existir”. O que é existir? Poderia não existir nada? O que chamamos universo seria então uma grande “nada”? Consegues conceber o que seria isso? E como é que o tecido da existência se monta em cima desse nada que seria a não existência? Pensa bem, concentra todas as tuas energias neste ponto: o que é existir?
– Ok, estou a pensar. Sim, é realmente misterioso. E concordo contigo. Quando pensamos nisto antevemos um mistério tão colossal, que chega a assustar, mas … e depois?
– E depois que é neste mistério que está a bifurcação onde tomamos caminhos diferentes. Os ateus acham que a fonte do mistério da existência é a própria matéria. Ela existe porque existe, e pronto. Nesse sentido, o mistério perde-se. A visão religiosa é que a fonte desse mistério transcende a matéria. Para nós é Deus, e o mistério mantém-se. As duas “soluções” para o problema da existência podem ser válidas. Mas o problema é que vocês perderam a ligação ao mistério e então não nos podem compreender a nós, religiosos, se não fizerem um esforço por se “colocar de joelhos“.
– Sim, alguém disse qualquer coisa como “só se pode estudar religião colocando-se de joelhos“, como quem diz, colocar-se na pele de um religioso e ver o mundo pelo seu prisma – acrescentou o Jorge, mostrando que estava a fazer um esforço por se “colocar de joelhos“.
– Exatamente! – anuíu de imediato o Gilberto, vendo que o Jorge o acompanhava. – Ora, se Deus é a fonte do mistério, se há uma realidade transcendente para lá do que vemos, então temos de acreditar que o mundo material é apenas uma parte da história global, e que aqui, do lado da matéria, temos apenas uma visão imperfeita das coisas. Assim, a nossa lógica humana pode ficar chocada com a crueza do mundo, mas naquilo a que chamamos o “plano de salvação de Deus“, tudo fará sentido.
– Mas, pai, isso é horrível. Estás a descrever um Deus relojoeiro. Tem um relógio afinado nos dois planos, material e transcendente e, para o manter certo, não se importa de triturar humanos no lado material. E isso causa-nos sofrimento, porque não conhecemos o lado de lá!
Gilberto percebeu então que nesta altura só poderia responder com base na Revelação.
– Jorge, lamento, mas aqui vou ter de apelar à Revelação. Mas acho que já posso, não é? Já fizemos algum caminho sem lhe recorrer. Em algum ponto da conversa teria de o fazer… bem, a resposta é que não, a nossa fé é que Deus não é assim. Deus é amor (desculpa, invoquei o que disseste não ser boa ideia evocar…). Um católico entrega-se completamente à Providência Divina, confiando nesse amor, apesar de tudo o que não bate certo com a sua razão. Porque sabe que no fundo, apesar de que assim possa não parecer, tudo é bom e tudo leva a Deus.
– Não consigo acreditar nisso… – respondeu amargamente o Jorge.
– A minha experiência é que a conversão só vem depois da rendição. Tenho amigos mais generosos e incondicionais que muitos católicos que conheço…mas não se rendem…
– A quê? – perguntou o Jorge, algo confuso.
– Não conseguem prescindir da convicção profunda de que a sua razão é que tem razão. É uma forma de orgulho. E é esse orgulho, esse apego a essa convicção, que torna a sua conversão impossível. Uma pessoa só se converte se se entrega a Deus em humildade. E isso implica abandonar as suas convicções profundas, enraizadas na lógica materialista.
– Portanto eu sou orgulhoso e não me rendi?
– Provavelmente… mas estou confiante que um dia te renderás!
p.s.: as personagens deste texto são inspiradas muito livremente na amizade e picardia entre George Bernard Shaw e Gilbert Keith Chesterton, um ateu e o outro católico convertido, que se admiravam, mas também se degladiavam em público, por causa das suas visões religiosas opostas.