Enquanto o bem não vence e o mal não se desvanece, perante «a terceira guerra mundial em pedaços», cabe-nos a tarefa de, pessoal e comunitariamente, desenvolvermos um olhar e uma ação proféticos. E se acaso, sermos capazes de denunciar as forças que nos induzem à inação.
Estando a finalizar um ano em que os esforços da Humanidade ainda não alcançaram a paz e a justiça e em que damos conta de mais guerras, incrementando-se e complexificando-se, quase a cada dia, o cenário de que fala o Papa Francisco na sua encíclica Fratelli Tutti, de uma «terceira guerra mundial em pedaços», gerando a morte de seres humanos em diversas partes do mundo, aumentando a instabilidade económica e social, o sentimento de insegurança e inúmeros refugiados em vários países, a nossa consciência individual e coletiva tem de gritar que, enquanto Humanidade, estamos a falhar o nosso propósito comum de construir uma fraternidade universal. Também enquanto país, a nossa situação social é preocupante, quando olhamos para os dados sobre a pobreza e a desigualdade[1] e descobrimos que Portugal foi considerado pelo Eurostat o quarto país mais desigual da União Europeia, situando-se a seguir à Bulgária, Lituânia e Letónia. A Grécia já tem um coeficiente de risco de pobreza inferior ao de Portugal[2].
Como cristãos que tomam consciência do mal em ação no mundo, não podemos simplesmente dar conta do que acontece, do que está em movimento. Necessitamos de, pedindo a luz do Espírito Santo, encontrar em nós, pessoal e comunitariamente, um olhar e uma ação proféticos. O mundo necessita de nós e desse olhar profético que denuncia e anuncia. O mundo necessita da capacidade de observar, pensar e encontrar chaves de leitura profunda para alcançar a origem dos desafios que se nos apresentam. Em quase todos os casos, o mal em ação no mundo está fortemente ligado ao egoísmo e a uma visão fechada acerca do nosso destino comum. Para reconhecer esses dinamismos em cada um de nós requer-se a abertura do coração, o rasgar das nossas estruturas de pensamento habitual, a vontade de conhecer essa realidade que, pela sua complexidade, nos transcende e exige o despojamento dos nossos conceitos e preconceitos para a acolher no seu imenso e inquietante questionamento. Será a nossa visão controlada e adormecida pela informação que é posta a circular na comunicação social com um propósito nem sempre claro? Seremos manipulados para nos sentirmos incapazes de atuar, de protestar, de nos indignarmos, de nos organizarmos? Uma visão e uma ação crítica sobre o nosso próprio posicionamento é essencial para promover qualquer mudança.
O olhar orante do Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti, apresenta-nos um quadro muito completo dos desafios que o mal em ação no mundo despoleta a cada momento, denunciando sem medo aquilo que ofende a nossa dignidade enquanto pessoas e enquanto irmãos uns dos outros: uma Humanidade sem um projeto para todos, onde os mais vulneráveis são descartados, onde os países e as pessoas mais pobres veem os seus sonhos constantemente adiados e desfeitos por uma globalização económica que não olha a meios para atingir os fins do progresso apenas para alguns, onde as guerras, a escravatura e a exploração do ser humano continuam a absorver milhões de vítimas em todo o mundo, em particular as mulheres e as crianças, onde a «ilusão da comunicação» e uma «informação sem sabedoria» continuam a promover a insegurança, o conflito, o medo e o isolamento cultural, social e psicológico, legitimando uma «agressividade despudorada», facilitando a «sujeição e a auto-depreciação», levando à perda da «consciência histórica» e abrindo portas à violação da dignidade humana nas situações de fronteira geográfica, social e cultural. É para esta mesma Humanidade, a começar por nós próprios, que necessitamos de abrir as portas do perdão e da esperança. A nossa intervenção cultural e social é hoje tão necessária quanto em épocas anteriores porque os anseios de uma Humanidade mais justa, solidária, pacífica, respeitadora da natureza e desenvolvida ainda não foram alcançados.
Edith Stein, no seu poema Tabernaculum Dei cum Hominibus afirma, olhando para este mundo marcado pela contradição: «Lá fora desencadeiam-se tormentas e lutas horrorosas». No entanto, diz ela:
«…não Te separaste da terra
Com ela Te desposaste para todos os tempos
Desde que baixaste das alturas do Céu»
E
«nenhum espírito criado pode compreender
o que a Tua presença, cheia de graça,
opera de maravilhas para a eternidade
nos corações convertidos em templos para ti;
Aqui |no sacrário| operas fora da vista de todo o mundo
o que um dia farás quando renovares a face da Terra.
(…)
Sustentas Tu o mundo na Tua mão
e às suas tormentas puseste medida e meta».
De modo similar, a mensagem do Papa Francisco, na Abertura da Porta Santa, a 24 de dezembro deste ano, reafirma que «a esperança não está morta, a esperança está viva e envolve a nossa vida para sempre». Portanto, a esperança não é um momento, é uma promessa em realização permanente.
O movimento central da esperança é esse lugar do encontro entre Deus e a Humanidade no presépio de Belém, metáfora misteriosa da Eucaristia, que é o símbolo e a fonte, para cada um de nós, do encontro fraterno com os nossos irmãos e irmãs que estão numa situação de sofrimento, seja ele qual for. Não temos direito à Paz que emana do presépio e à consolação da Eucaristia enquanto a nossa misericórdia não superar a nossa indiferença. Este Menino-Deus que vem ao nosso encontro, que atravessa a eternidade para entrar na nossa história e habitar no meio da Humanidade, que não tem repugnância de nós por causa dos nossos pecados, nem nos abandona nas nossas misérias, solidões e sofrimentos é o mesmo que se comprometeu e nos compromete. Não O podemos seguir se não houver o livre consentimento da nossa vontade à Sua presença e à Sua Palavra. Como aconteceu com a cura do paralítico junto à piscina de Betzatá (João 5, 1-17), o Amor de Deus não nos liberta sem a nossa concordância, isto é, sem um ato claro de acolhimento e conversão da nossa vontade livre.
E porque, como afirma o Papa Francisco na sua mensagem natalícia, «a esperança que nasce nesta noite não tolera a indolência dos sedentários e a preguiça dos que se acomodaram no seu próprio conforto», nem «admite a falsa prudência dos que não se arriscam por medo de se comprometerem», sendo «incompatível com a vida tranquila dos que não levantam a voz contra o mal e contra as injustiças cometidas diretamente sobre os mais pobres», somos chamados a sair «apressadamente» do nosso conforto, a ter um coração «leve e desperto, pronto para o encontro» de modo a «traduzir a esperança nas situações da nossa vida», exercendo a nossa responsabilidade, fazendo o que está ao nosso alcance com criatividade para levar a Luz de Cristo às situações que dela necessitam. A conversão ao espírito de Cristo promove a renovação espiritual autêntica e só ela nos implica e pode envolver a Humanidade numa eficaz transformação do mundo. Somos convocados neste Jubileu da Esperança a ir ao encontro das situações onde «a vida está ferida», as «expectativas traídas», os «sonhos desfeitos», onde «os fracassos despedaçam o coração». Fomos e somos enviados àqueles que se sentem cansados, amargurados e consumidos pelo sofrimento, de modo a que a Luz de Cristo possa, em 2025, brilhar mais neste mundo que tanto dela necessita.
[1] Ver este artigo A pobreza e a desigualdade estão a aumentar? | Fundação Francisco Manuel dos Santos
[2] Ver este artigo Quais são os países mais desiguais e as regiões mais pobres da Europa? | Euronews