Fev 1, 2022 | A luz obscura

Professor universitário. Carmelita secular

A fé justifica a razão, mas a razão não justifica a fé

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Caros amigos e amigas, irmãos e irmãs em Cristo,

É com muita alegria que partilho convosco estas linhas da “Luz Obscura”. Encontrei esta expressão, na sua forma mais sintética, em Edith Stein. No entanto, não seria correto atribuir-lhe a originalidade desta descrição. Com efeito, esta formulação paradoxal da fé encontra-se, de forma mais ou menos implícita, ao longo da Sagrada Escritura e também nos escritos de vários santos, com destaque para o nosso São João da Cruz. Logo no princípio da sua obra magistral, Ser Finito e Ser Eterno, Edith Stein esforça-se por justificar as bases de uma filosofia cristã. Já se tinha convertido há muitos anos, mas claramente continuava a amar a filosofia. Por isso, queria justificar uma filosofia cristã. Esta apoiar-se-ia sobre as verdades reveladas e construiria a partir daí um edifício lógico baseado na metodologia filosófica. No entanto, como escreveu Edith Stein…

(…) a fé é uma luz obscura. Dá-nos algo a compreender, mas apenas para apontar para o que permanece incompreensível. Uma vez que o fundo último de todo o ser é insondável, tudo o que é considerado sob este ângulo cai sob a luz obscura da fé e do mistério, e tudo o que é compreensível parece assentar sobre um pano de fundo incompreensível.

Assim, a filosofia cristã teria de dar um salto de fé: aceitar como fundamento uma verdade que não é acessível à razão. Por exemplo, quando Descartes tentou construir a filosofia a partir da única certeza que conseguiu identificar, “Penso, logo existo”, estava a assumir um fundamento que era a mais irredutível (e única) das certezas mas, mesmo assim, ainda compreensível à razão. Mas se esse fundamento for antes “Deus existe, criou o mundo e ama-nos”, já não é compreensível pela razão, mas apenas intuído pela fé.

Também na vida espiritual é preciso dar este salto. É possível passar muitos anos num limbo “de boas intenções” porque não há convicção nem coragem para dar este salto de fé. Estamos tão imbuídos do exercício da razão, que corremos o risco de nunca chegar a compreender que ser cristão é colocar uma verdade não palpável – uma luz obscura – no centro da vida. O problema é claro: é que essa luz desaparece quando observada pela razão, que se julga a única e verdadeira luz. Por isso há uma tensão constante entre fé e razão. Enquanto a razão não se submeter à fé, não haverá paz nem progresso espiritual. Mas este é precisamente o ponto: a razão nunca se vai submeter, porque as verdades de fé não lhe são acessíveis.

Há, pelo menos, dois pontos insanáveis perante a razão: a origem do mal e o silêncio de Deus. E, na verdade, nenhuma teodiceia nos convence completamente. Por isso a razão volta recorrentemente a estes temas, numa tortura permanente para tentar perceber o que, tudo indica, não se pode perceber. Começa assim um círculo vicioso, em que a fé vivida sem convicção desemboca numa crise espiritual de acusações a Deus que, depois de parcialmente resolvida por exaustão, leva de novo a uma vivência morna da fé. É o compromisso tíbio entre fé e razão, em que a fé é racionalizada para que possa ser entendida, e em que a luz obscura é substituída, tanto quanto possível, pela luz visível da razão.

Todo este processo é amplificado pelo facto de sermos frequentemente dominados por preocupações e múltiplos afazeres, em que o uso da razão é privilegiado. Neste estado tendemos a afastar-nos cada vez mais da luz obscura que nos liga a Deus, de tal forma ficamos encandeados pela luz do mundo. Portanto, o resultado mais provável do compromisso tíbio entre fé e razão é o desaparecimento gradual da fé.

Resulta daqui que o caminho para Deus exige, a partir de certa altura, avançar apesar da voz da razão. Mais: ignorar a razão! A razão é muito boa para nos guiar neste mundo. E não há contradição nenhuma entre fé e razão no domínio da ciência material. Mas nos caminhos de Deus a razão é, na maior parte das vezes, um entrave. É preciso, portanto, uma resolução muito firme, de seguir a luz obscura e não os holofotes da razão; de fazer um esforço constante para voltar ao terreno da fé, para ver o mundo com os olhos da fé, para recentrar o ser na certeza que não se sente, na luz que não se vê, mas que se sabe – não se sabe porquê – que está lá.

A conversão nunca é completa enquanto a razão não for contida pela convicção interior que vem da fé. Este é o momento em que a alma cruza os portões do Castelo: quando decide que se vai agarrar com todas as forças à luz obscura que lhe diz que Deus existe e a ama. Não sabe mais nada que isso (e mesmo disso não tem certeza palpável). Mas não largará a sua convicção, mesmo perante todas as evidências racionais em sentido contrário. E este é o passo difícil que todos temos de dar: escolher a luz obscura da fé em detrimento da luz brilhante da razão. E não olhar mais para trás, para o impasse racional que nos trava há anos. Deus dá-nos a fé na proporção exata, o suficiente para nos sustentar na luta, mas não tão abundantemente que não tenhamos de lutar com todas as nossas forças. E temos de lutar com todas as nossas forças para não olhar para trás.

Esse passo definitivo só se pode dar com verdadeira humildade. A humildade de aceitar não compreender. A humildade de se entregar. A humildade de confiar. A humildade de abraçar o mistério e tomar a decisão firme de viver nele. Isto não quer dizer ignorar o que não se compreende. Quer dizer viver com o que não se compreende, aceitando-o como parte da vida misteriosa em Deus. Porque, como dizia Santa Teresa na introdução ao cap. 17 do Caminho de Perfeição,…o verdadeiro humilde há de ir contente pelo caminho por onde o levar o Senhor.

O caminho para Deus exige, a partir de certa altura, avançar apesar da voz da razão (…) é preciso, portanto, uma resolução muito firme, de seguir a luz obscura e não os holofotes da razão

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