Fev 15, 2022 | A caminho das vésperas

Advogado

Não querer ser mais um no rebanho

Partilhar:
Pin Share

Os últimos anos trouxeram-nos novos hábitos, quanto à ocupação do tempo. As empresas da tecnologia jogaram forte no entretenimento. São os jogos dos smartphones, as séries da Netflix e de outras plataformas de streaming, as redes sociais, as aplicações de comunicação e mesmo a navegação aleatória ou recreativa na internet.

Os últimos anos trouxeram-nos novos hábitos, quanto à ocupação do tempo. As empresas da tecnologia jogaram forte no entretenimento. São os jogos dos smartphones, as séries da Netflix e de outras plataformas de streaming, as redes sociais, as aplicações de comunicação e mesmo a navegação aleatória ou recreativa na internet.

Com isso, julgo que se vão perdendo hábitos de leitura dos livros, sobretudo dos livros físicos. Dos que contam histórias e estimulam a mente.

Como se sabe, as referidas tecnologias usam técnicas subversivas de viciação, através de estímulos psicológicos ao consumo rápido, a que nem as séries escapam. Tudo é criteriosamente montado para que o consumidor fique preso a écrans, seja de telemóveis, tablets, computadores ou aparelhos de televisão.

A questão que se coloca é, assim, a de saber que tipo de transformações isso pode trazer aos humanos. A de perceber como a inteligência tecnológica, ou artificial, modela comportamentos, nivela a mente humana, padroniza gostos e escolhas, torna, no fundo, o nosso cérebro mais preguiçoso e permissivo. Sobretudo, quando disrompem o modo como ele estava preparado e treinado para elaborar raciocínios de um jeito mais subjetivo e individualizado.

Com isto não quero negar, antes pelo contrário, o potencial das novas tecnologias para a Humanidade, que permitiram avanços inacreditáveis há alguns anos, nomeadamente nos domínios da saúde, do ensino, da qualidade de vida e da aproximação das pessoas. E mesmo na literatura, com as novas possibilidades recurso ao hipertexto, novos formatos de edição, de divulgação e de interação entre autores e leitores. Mas apenas refletir no modo como novos hábitos e rotinas nos poderão perturbar a essência humana, que nos tornou seres únicos, criativos e irrepetíveis.

Não sou especialista na matéria, mas, como autor de ficção, tenho boas razões para suspeitar que a literatura acrescenta um valor inestimável à condição humana, permitindo aos autores criarem novas atmosferas, novas realidades, que são entretecidas por construções gramaticais que enriquecem a língua, e cujas vozes arquitetam os seus universos narrativos. A efabulação, a partir da realidade, prossegue essa vital necessidade humana de se ver ao espelho através de histórias narradas ou contadas. A obra de ficção constrói um mundo possível que dialoga com nossa realidade, contribuindo para a compreensão crítica do mundo.

Assim, da parte dos leitores, a riqueza da literatura advém da possibilidade de gerar abstração, tempo suficiente para a reflexão, permitindo a formação de um pensamento crítico mais elaborado e fundamental à autodeterminação e à liberdade do ser humano.

Na verdade, como atrás sugeri, tenho para mim que a sujeição massiva e aditiva a produtos tecnológicos estandardizados ou sujeitos ao impulso do momento, a dados e metadados, confluem para uma sociedade mais padronizada, mais permeável ao consumismo acrítico, e mesmo para a políticas e políticos demagógicos e populistas.    

E, com isso, a liberdade individual fica mais comprometida, por falta de tempo para uma reflexão conscienciosa e ponderada sobre factos, acontecimentos, personalidades, propostas políticas, éticas ou religiosas. A tendência do rebanho escondida atrás dos referidos estímulos rápidos, dissimulados e acríticos conduzem todas as ovelhas para o pasto que entidades invisíveis lhe querem dar.

No universo atrativo dos écrans dos computadores, tablets e smartphones, em que as redes sociais, os chats, as homepages, as visitas ilimitadas aos sites, os downloads, os blogs, os e-mails e as séries ganham destaque, a leitura literária pode ficar confinada a um grupo limitado de leitores, se não houver uma maior consciência coletiva para a necessidade de ler.

O problema tende a tornar-se mais agudo nas novas gerações, que já nascem e crescem neste novo paradigma e o interpretam como a normalidade da vida humana.

É assim importante que os sistemas educativos das democracias promovam, para além da literacia tecnológica, também a literacia literária. Que cada família não a esqueça na formação das suas crianças, e que cada um encontre a dose certa no consumo das várias ofertas de entretenimento. E que rejeite ser apenas mais uma ovelha no rebanho.

Partilhar:

Artigos

Relacionados