Fev 22, 2022 | Cinzas e pão

Tabuinhas que são oração confiada, com o venerável Santinho do Carmo de permeio

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A piedade popular que é, talvez, a menor expressão de oração, encontrou na genuinidade e humildade das tabuinhas pintadas — os ex-votos — uma forma de expressar a gratidão de quem se confiou a um Santo, à Virgem ou a Deus. Embora exista hoje uma clara tendência em substitui-las por fotografias — o que leva a uma significativa perda de informação —, tal movimento prova que se a gratidão ainda existe é porque ainda subsistem momentos em que a confiança inteira se depõe num Santo, na Virgem ou em Deus. É o caso do Carmelita Descalço Frei João d’Acensão, o Santo Fradinho do Carmo. Em Braga.

Não existe graça sem reconhecimento. Quão maior é a graça tanto maior o júbilo e a gratitude do agraciado. — Tenho diante do olhar, é óbvio, o fenómeno religioso enquanto relação do eu e do nós humano com o tu divino. — Poder-me-ão recordar que a ingratidão também medra e muito, mas eu parto do princípio de que Deus é gratuito, logo, portanto, digno de ser agradecido e reconhecido, que mesmo que o não seja, continuará a ser inteira e inesgotável fonte de graça.

O coração humano é, aliás, de uma urdidura tal que bem se pode dizer que todo o crente é irrepetível na relação com Deus; de facto, não terá sido à toa que Jesus alvitrou existirem no céu muitas moradas à espera de cada um dos filhos e filhas do Pai. Ora se é certo que as moradas são muitas, também é certo que o caminho sempre passa por Ele, seja de forma mais directa ou indirecta, mais consciente e oblativa, ou mais farisaica e fingida. Ou menos. Ora se assim é, também é certo que o caminho de cada qual é singular, como singular, ínvia e irrepetível é a história de cada um. Se também é certo existir uma ortodoxia e uma ortopráxis, digamos, um discurso e um protocolo oficiais quanto à relação pessoal e comunitária com a Deus e, no caso da Igreja Católica, ambos são grandemente mediados pelos ministros oficiais, também é certo que no profundo centro de cada um se passam coisas que nem o próprio — quanto mais os alheios! — inteiramente se apercebe; ou, como se diz popularmente: «Deus é um homem rico: dá tudo e não fica pobre»! E assim é. E é por isso que é bom lembrar que — desculpem-se-me as falhas de erudição — «não há dar sem dar». Deus dá, portanto. Continuamente. Quer o filho peça ou não o pão de cada dia, Deus dá, que o seu ser é dar-se. E se isto ou aquilo não sabemos pedir, também Ele o dá; se entende.

A relação do crente com a divindade, tem, regra geral, expressões comuns e tradicionais, mas também muito de pessoal, íntimo e próprio. E porque «quem se vê nelas é que se amanha», é também possível encontrar transversal pedido de bênçãos, graças e milagres. Quão álgidos e diferenciados podem ser esses momentos em que parece não haver mais âncora a que deitar mão! Horas existem que ao humano coração não resta outro caminho senão o de remar e remar e remar, ou esperar e esperar e esperar, e alçar os olhos e as mãos ao céu, e confiar no benévolo sorriso de Deus a troco de uma promessa!

Com mais ou menos confiança, mais cedendo ou não ao medo, nisto somos muito iguais. E se alguém não sabe de ciência certa, mas já em algum lugar sondou a espessura da religiosidade popular, sabe, com certeza, da existência dos ex-votos, esses pequenos sinaizinhos — alguns de elegante recorte artístico, outros mais toscos — que provam que alguém em algum pungente momento se encomendou a Deus, à Virgem Maria, ou à intercessão de um santo, a fim de resolver uma situação grave, e foi depois ouvido.

São os ex-votos, a que por ora me refiro, umas tabuinhas de dimensão variável, mas sempre pequenas — 50cm x 35cm, a mais frequente —, primeiramente de madeira, mas também em chapa e em tela, onde se pediu a um pintor que pintasse a história de determinado pedaço de salvação. As situações ali narradas são imensamente variegadas: aquele momento de risco certo da própria vida, seja por doença prolongada que se agrava ou por imprevisto golpe de má fortuna; ou porque se é surpreendido por sobressalto bélico, uma viagem arriscada ou por uma catástrofe natural; ou quando se urge um suplemento de energia para vadear um obstáculo, tanto inóspita montanha como exame académico; ou para pedir o alcance dum filho, a cura de um neto, a resolução de um caso, tanto de amor como de desamor ou de falsa acusação, ou uma qualquer das milhentas labirínticas situações que nos cercam e podem cercear a vida. Sabe-se que nessas e nessoutras situações era (e é) frequente recorrer-se ao poder de Deus, pedir-lhe, confiadamente, uma graça, e prometer peregrinar a este ou aquele santuário ou a modesta ermida, mais ou menos célebres e concorridos, e levar como pagamento o tal voto. E se ontem, em muitos casos, as ternurentas tabuinhas eram pintadas, inclusive por pintores consagrados, hoje, os votos são, sobretudo, pequenas ofertas de ramos de flores, mas também cera, registos fotográficos, relatórios médicos, cartas, por vezes comida, incenso e também paramentos, dinheiro ou valores.

Os ex-votos não desapareceram, portanto, do nosso chão cultural e do nosso horizonte espiritual. O que aqui, porém, mais quero relevar são os que jazem esquecidos nos escuros recônditos de arrecadações dos nossos templos, ou, com sorte, religiosamente cuidados nalgum museu. Dir-se-ia que o valor destas pinturas de milagres é mormente o etnográfico, mas são-no também quanto à linguística, à estética e à piedade.

No que a nós toca, sei que o Santuário do Menino Jesus de Praga vela alguns dos que apresentei em segundo lugar. E que o nosso convento do Carmo de Braga guarda um pequeno punhado dos primeiros, das tais benditas tabuinhas que, para feliz encanto de alguns, ilustram coloridamente a paisagem religiosa baixominhota da segunda metade do séc. XIX. Eu próprio disso dei nota no livro O Resgate de Frei João d’Ascensão, religioso Carmelita Descalço sepulto em campa rasa no chão daquela igreja conventual, no dia 18 de março de 1861. Secundando ou dando expressão à voz do Pe. José Carlos Vechina, que em Braga vive quase ininterruptamente desde 1971, no final da dita obra dei nota da fogueira iconoclasta que cem anos depois de finado o Santinho, um Irmão — por sinal, artista! — acendeu num recanto do quintal para queimar lixo acumulado durante aquele nefasto interregno que do claustro nos excluiu. Como lixo foram considerados milhares de ex-votos dedicados ao Santo Fradinho do Carmo, Frei João d’Ascensão: muitíssimas cartas e bilhetes, fotografias de tamanhos vários, centenas de peças de cera com figurações de partes do corpo, pequenos caixões, bengalas, mortalhas, muletas artesanais, simples paus, artefactos indiferenciados que narravam uma história maravilhosa. Se é certo que a dita fogueira ardeu por mais de três dias — o que é quase uma eternidade! — ninguém hoje pode asseverar que ali se destruíram alguns dos ex-votos pintados em tabuinhas. Certo é que até nós chegaram nove dessas, de valor desigual, mas igualadas no afecto ao Santo Fradinho que, no último quartel do séc. XIX, no norte de Portugal, e até muito perto de nós, foi aclamado pelas gentes simples e também pelos eruditos, como intercessor santo que alcançava graças, mormente a cura dos seus devotos enfermos.

Rezam várias fontes que até ao virar do séc. XIX e bem além do primeiro quartel do séc. XX, um rio de gente piedosa desaguava junto da sepultura do Fradinho do Carmo. Camilo, por exemplo, foi testemunha privilegiada que engrossou a fileira de romeiros e lhe avolumou o caudal com as suas lágrimas. Na Casa das Estampas daquela igreja acumularam-se a eito e sem critério o tal indiferenciado acervo de ex-votos. Tenho-os eu, como muitos outros, por sinais, sinaizinhos, digo eu, da intercessão miraculosa de Mestre Neiva. Não se pode, porém, ser tão pio e crédulo sem mais, declarando por milagre qualquer sucesso que eles possam indiciar; mas lá que aquela montanha de testemunhos testifica que aqui, ali e além, sucediam maravilhas quando era invocada a intercessão de Frei João d’Ascensão, isso nos parece claro. E que a sua intermediação era muitíssimo invocada, isso é bem claro. E que hoje se está em retoma, também.

Dos nove quadros pictóricos dedicados a Frei João de Neiva, ou Frei João d’Ascensão, ou Frei João d’Ascensão Neiva, ou Mestre Neiva — dois outros ali existem dedicados a Nossa Senhora do Carmo — um deles acha-se inacabado (terá havido pressa em vir trazê-lo ao Carmo?) e todos são de mestre incógnito e de pincel modesto e ingénuo. Se, porém, o valor estético não é para nós o mais importante e, de facto, por si só tais tabuinhas não são valiosas, elas são-no por testemunharem uma vinculação ao Santo Fradinho que, hoje, em nada, a meu ver, é despicienda.

No Advento passado os jovens da Comunidade promoveram a iniciativa do Saquinho do Fradinho — uma recolha de géneros não perecíveis. Os fiéis do Carmo e não só, acorreram, sensíveis, com sacas e saquinhos que depunham na igreja, junto dum quadro com a sua efígie. A mim me coube levá-las dali para junto das suas relíquias que, mais no interior, se encontram rodeadas dos ex-votos. Em certos dias fiz esse percurso mais que uma vez pelo que, olhando-os na sua simplicidade e humildade, me veio ao pensamento quão frequentemente tanto da vida se nos apresenta como problema sem solução, razão pela qual sabe bem encontrar refúgio no silêncio, na oração ou na intercessão de algum amigo forte de Deus. Era o caso. E lembrei ainda, sobretudo ao enfrentar aquelas tabuinhas, que por si só elas são belas orações pintadas ou sinaizinhos de sincera oração confiada, ingénuas pela certa e, inegavelmente, genuínas.

É o caso também, claro.

Frei João

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