Jun 7, 2022 | Espiritualidade

Carmelita Descalço

A coreografia de Frei João d’Ascensão

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No niegue cosa que tenga, aunque la haya menester.

São João da Cruz

            As nossas vidas são marcadas por ritmos. Esses ritmos são pautados por diversos fatores: a idade, os estados anímicos e espirituais, os distintos acontecimentos que preenchem o quadro da nossa vida, a fé que cada um professa ou os valores em que acredita. A meu ver, os ritmos que vibram nas nossas vidas sugerem-nos coreografias. A dança pode ser uma metáfora interessante para situar os passos da nossa vida.

Cada um dança a música que lhe dão, parafraseando o sábio povo. E há, de facto, tantas formas de dançar. Percorrendo os vários séculos da história até aos nossos dias ou as várias regiões do globo, podemos deliciar-nos com variadíssimas formas de mover o corpo, elevando-nos o espírito em sublimes formas artísticas.

Creio que a vida cristã, em particular, propõe uma coreografia ternária de vida. Jesus Cristo, o Filho de Deus feito carne, com a sua vida e pela dádiva de Si deixou-nos o exemplo de como se vive a vida e, sobretudo, de como se dá a vida. Nós, os cristãos, assim acreditamos. Refiro-me a uma coreografia ternária pois considero que o estilo de dança dos cristãos se resume a três movimentos: centrar, recentrar e concentrar.

Mas antes dos passos, devemos perguntar-nos: com que música dançam os cristãos? As narrativas evangélicas não nos informam se Jesus dançava ou não, embora estou em crer que terá dançado já que a dança fazia parte da cultura judaica. Além disso, terá cantado, sejam os salmos ou os cantos do povo hebreu. Por isso, é bem possível que Jesus tenha dançado e, quem sabe, dançasse muito bem.

Para ilustrar a importância da dança na fé cristã, a tradição primitiva da espiritualidade sintetizava a comunhão de amor que habita no seio da Santíssima Trindade pela metáfora da perichoresis, ou seja, da coreografia e da dança. Segundo os veneráveis Padres da Igreja, Deus dança!

Sem me querer desviar da questão, a música que os cristãos dançam é a música do próprio Cristo. Jesus é melodia transcendente e imanente, porque é simultaneamente divino e humano. Muitos poetas e místicos se referiram a Deus e à experiência cristã recorrendo a imagens musicais. Recordo João da Cruz que cantava num dos seus versos do Cântico Espiritual «la música callada, / la soledad sonora» (canção 15).

O Verbo de Deus, pela sua incarnação, comunicou-nos o som de Deus. Isto para mim é fascinante. Pelo supremo ato de amor do Verbum caro factum est podemos auscultar o reverberar do coração de Deus. A mesma brisa que outrora Elias sondou, é-nos agora comunicada, de viva-voz, por Cristo Jesus.

Desta forma, se Deus é amor, então a música que se escuta no seio da Trindade é também ela amor. Por isso, a música dos cristãos é o amor. Amar torna-se não só um verbo, mas também um locus estético e ético original da espiritualidade cristã.

Visto isto, podemos responder à questão colocada acima: a música que os cristãos dançam é a música do amor. O amor torna-se verdadeiramente pulsação e harmonia sinfónica nos corações de todos os discípulos de Cristo. E, como já disse, a coreografia cristã é ternária, sintetizada nestes três passos: centrar, recentrar e concentrar.

Estes três verbos pintam muito bem o retrato de Cristo, que sempre centrou o seu coração em Deus, recentrou os seus desejos e concentrou as suas forças no anúncio do Reino até dar a sua vida no Calvário. Tal como o Mestre, assim terão de ser os discípulos. Mas não nos esqueçamos que esta forma de vida só é possível se escutarmos atentamente o murmúrio amoroso de Deus.

Creio que estes três movimentos interiores sintetizam as três virtudes teologais. De facto, quem vive centrado vive pela fé; quem recentra o seu olhar em Deus sabe bem em quem põe a sua esperança; quem concentra as suas forças em fazer o bem vive pela caridade e no amor.

Poderia convocar à colação tantos exemplos de homens e mulheres que ao longo dos tempos sintetizaram na sua vida esta forma de ser e de estar. Coloco-me em companhia de alguém cuja vida me tem encantado ultimamente: Frei João d’Ascensão.

Escrevo estas palavras contemplando, desde a minha cela conventual, a torre da Igreja do Carmo em Braga e a estátua da Virgem do Carmo que a coroa. Sou, agora, vizinho do Fradinho do Carmo. Tive a graça de estar presente na inauguração da sua estátua erigida diante desta igreja. João d’Ascensão tornou-se local de passagem e pousada para paragens demoradas motivadas pela curiosidade ou pela necessidade de chorar ou dar graças.

Da sua estátua ficam-me gravadas as suas mãos e os seus pés. As mãos e os pés do Venerável revelam-nos a sua dança, a sua coreografia. A sua vida é exemplo ímpar daqueles que sabem dançar ao ritmo cristão, ao som da melodia de Deus. A sua vida centrou-se somente em Deus, na sua dádiva de vida no Carmelo Descalço e no cumprimento da Regra, orando sem cessar nem desfalecer. João amava a Deus sobre todas as coisas, mesmo nos tempos récios que viveu aquando da expulsão das ordens religiosas do reino de Portugal. Apesar de todas as contrariedades, o seu coração sabia centrar-se no único Absoluto, no único Necessário.

Os testemunhos da época recordam-nos o seu amor pela Eucaristia e a piedade com que celebrava este sacramento. A Missa é o memorial da oferta de Cristo na cruz para salvação de toda a Humanidade. Alguém que ame a Eucaristia, ama profundamente a Deus. O Santo Fradinho do Carmo, com o seu coração centrado em Deus, tornou a sua existência verdadeiramente eucarística.

Este carmelita descalço soube recentrar a sua vida, purificando os seus apetites e desejos, para assemelhar o seu coração ao de Cristo. Mediante tantas tentações e ofertas aprazíveis soube negar e negar-se por amor a Deus, em fidelidade à sua vocação. Quando os conventos são fechados e os religiosos são expulsos, João d’Ascensão poderia ter auferido de um salário estatal e incardinar-se nalguma das várias dioceses por onde passou e se volveu famoso. Ao invés, manteve sempre o hábito carmelita e nunca se rendeu a tais propostas. Uma vida recentrada é, como vemos, uma vida fiel.

Apesar disso, descalço no meio de tantas intempéries, Frei João continuou a confessar, a celebrar Missa, a guiar as almas para Deus, apaixonando-as por Cristo porque a sua única riqueza, de facto, não estava na terra nem era de cá, mas do Céu.

Um coração centrado e uma vida recentrada são capazes de concentrar as suas forças em fazer o bem. E nisso o Fradinho é digníssimo exemplo. A sua caridade ficou sobejamente conhecida e é recordada pelos testemunhos escritos e populares. Mas um coração assim, concentrado no bem do próximo, é um coração que fez a experiência de ser amado e de ser acolhido. Quando regressa a Braga, na última fase da sua vida, Frei João foi acolhido por várias pessoas que deram guarida e teto àquele peregrino descalço: o cónego José Maria d’Oliveira e Silva, frei Custódio de Jesus Vieira Lopes e, por fim, a boa família da Quinta do Armão.

Desprovido de comunidade conventual e de quaisquer rendas, para além da generosidade de seus amigos, viveu também de esmolas. Foi pobre e viveu a pobreza. Mas o mais curioso, para mim, é que este venerável homem cumpriu perfeitamente o dito de luz e amor de São João da Cruz citado na epígrafe deste texto. Apesar de necessitado, sempre se compadeceu dos pobres que via a eito pelas ruas da cidade de Braga, e a ninguém, nem mesmo à pobreza envergonhada, negava esmola generosa: seja nas migalhas em dinheiro, seja na paz e na serenidade que oferecia desde o seu coração inflamado. Dava o que tinha, mesmo que lhe fizesse falta. Era um coração generoso que concentrava a sua energia em anunciar o amor a partir de gestos concretos: a oração contínua e intensa, o atendimento das pessoas que o procuravam, os responsos pelas almas do Purgatório, as horas passadas diante do sacrário, pedindo por tantos e pela Igreja, à qual se manteve sempre fiel, mesmo entre cismas e divisões aquando da instauração do regime liberal.

Frei João d’Ascensão sempre se manteve fiel à vocação carmelita e à Igreja. Mesmo quando ficou desprovido de claustro, o seu coração compreendeu que as ruas e as margens da sociedade eram o seu novo claustro. Das pedras da rua que pisava e dos corações pobres com quem se encontrava soube acrescer o seu saltério e as contas do seu rosário. Desta forma augurou uma forma de ser carmelita descalço questionadora e muito atual. No claustro das periferias, onde cada pessoa lhe recordava o rosto de Cristo, foi profeta do amor, oferecendo sempre esmola para o corpo e, sobretudo, para o espírito.

Assim, a mão direita da estátua segura a Escritura encostada ao seu peito onde arde a chama viva do amor de Deus, reflexo do homem orante que foi. A mão esquerda, estendida tão generosamente, acolhe e oferece aquilo que tem e aquilo que não tem. Os pés do Fradinho que pisam as pontes das tantas cidades que percorreu ao longo da sua vida recordam-me que o cristão está sempre a caminho e disponível para peregrinar, sobretudo para percorrer a peregrinação interior da conversão e da salvação.

Não sei se Frei João d’Ascensão alguma vez dançou. Como minhoto, certamente terá dançado, pelo menos nas eiras, no fim das colheitas e das vindimas, e nas festas em São Romão de Neiva. No convento, o seu espírito cheio de Deus e inflamado no Seu amor certamente que dançaria e rejubilaria na contemplação dos mistérios da redenção, a exemplo de Teresa de Jesus e de João da Cruz: quem ama, dança e sabe dançar bem porque tem os ouvidos apurados para escutar o sussurrar de um Deus que centra, recentra e concentra o seu coração nas suas criaturas. Que o exemplo da sua coreografia de fé, esperança e caridade nos estimule e inspire a vivermos a nossa vida com criatividade e radicalidade. E que esse seu ritmo ternário da vida, ele que foi poeta silencioso e compositor do amor de Deus, nos inquiete e nos sirva de modelo. Invoquemos, por isso, sobre nós e sobre a Igreja que se encontra em caminho sinodal, a bênção do Santo Fradinho do Carmo, para que aprendamos a caminhar juntos, renovando-nos em união com o Senhor, numa coreografia ternária de comunhão, participação e missão.

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