Há pouco tempo uma amiga comentava que por vezes se interroga sobre o porquê de tanta análise e perspetiva sobre a espiritualidade católica se, no fundo, já está tudo escrito – e há muito tempo! Fiquei um bocado surpreso com a observação e só pude concordar. Realmente, está tudo escrito. Podemos ir à Fonte – e está lá tudo. E podemos ir aos nossos Santos, a quem Deus concedeu um carisma especial para nos iluminar neste vale de sombras – e está lá tudo, explicado por cada um deles à sua maneira, no seu contexto, no seu tempo. Não há novidade neste mundo depois de Cristo. Cristo veio restaurar o nosso olhar em Deus. Desde então, milhões de homens e mulheres têm tentado incessantemente viver no Amor de Deus através de Cristo, de Maria e da iluminação do Espírito Santo.
Mas a forma como cada um o faz depende do seu contexto. Se é verdade que a Liturgia e o Catecismo da Igreja Católica constituem os pilares firmes que suportam os fiéis – e portanto uma “linguagem” comum de referência – , também é verdade que o trabalho da conversão interna é único e largamente solitário. Portanto, processa-se através de uma linguagem única, inexprimível e intraduzível, porque a partir de um certo nível (ou profundidade), cada caminho é único. Na vivência espiritual existem assim dois níveis: aquele que se vive essencialmente em comunidade e que se expressa na linguagem comum; e aquele que se vive na profundidade da alma, numa linguagem única, não falada, criada por Deus, especificamente para cada um dos seus filhos (o “Rui-ês”, o “Ana-ês”,…).
A arquitetura da criação (que nós não podemos compreender) parece basear-se no paradoxo: por exemplo, os detalhes da vida material (que não importam muito, pois “és pó da terra”) são, afinal de contas, tudo o que temos para viver a história da nossa salvação (e portanto acabam realmente por desempenhar um papel importante). Assim, cada história de salvação está ligada ao contexto material da pessoa, de forma a que, no fim, ela se liberte desse mesmo contexto material e viva livre em Deus e para Deus. E é por isto que continuamos a escrever sobre espiritualidade: porque é preciso perceber como a viver em cada momento histórico e em cada contexto pessoal. No fim, no topo do Monte Carmelo, não fará diferença por que caminho chegámos (as etapas do caminho são únicas, tal como explica São João da Cruz, mas cada um percorre-as de forma sempre diferente, num diálogo único com Deus). Mas enquanto caminhamos até ao cume por esse caminho que é único, e está a ser criado hoje, precisamos de reinterpretar o mapa que herdámos dos que nos antecederam. Porque nos trocam constantemente o Norte! Precisamos de reavaliar os pontos de referência, ver onde estão e rodar o mapa de acordo com o novo Norte. O mapa é o mesmo – sempre foi -, mas a forma de olhar para ele é que vai mudando. Se não tivermos cuidado, e sem nos darmos conta, ainda voltamos ao sopé do monte Carmelo! Ainda acabamos no fosso do Castelo!
Na nossa querida Ordem Carmelita, herdámos a orientação do mapa que foi dada por São João da Cruz e por Santa Teresa de Jesus (deveria dizer “as orientações”? É que não são assim tão parecidas, mas isso fica para outro dia). Ao longo da passagem de testemunho houve várias “atualizações” da sua leitura, talvez as mais importantes pelas Santas Isabel da Trindade e Teresinha do Menino Jesus. E mais recentemente, numa linguagem já muito próxima da nossa – e daí o seu apelo e fascínio – Santa Teresa Benedita da Cruz. Um bom exemplo dessa proximidade é este pequeno excerto dos “Ensaios sobre a mulher”:
E quando chega a noite, e perceberes em retrospetiva como tudo foi fragmentado e que muito do que foi planeado ficou por fazer, quando tantas coisas suscitam vergonha e arrependimento, então toma tudo tal como é, coloca-o nas mãos de Deus e oferece-Lho. Assim poderás descansar n’Ele, realmente descansar, e começar o novo dia como uma nova vida.
Neste texto sente-se já a “doença contemporânea”: a pressão das múltiplas tarefas, os planos e a fragmentação do indivíduo…e depois o conselho sobre como viver tudo isto em Deus. No texto anterior a este excerto, Edith Stein dá recomendações sobre como sobreviver neste mundo atarefado:
É meio-dia. Voltamos para casa exaustos, despedaçados (…) E agora, onde está a frescura matinal da alma? (…) E ainda há tanto que fazer até a noite. Não deveríamos lançar-nos imediatamente ao trabalho? Não, não antes da calma se estabelecer pelo menos por um momento. (…) A melhor maneira, quando possível, é abandonar todos os cuidados por um curto período de tempo em frente ao tabernáculo. (…) E quando nenhum descanso externo é possível, quando não há lugar para onde se retirar, se os deveres urgentes não permitem uma hora de silêncio, então a alma deve, pelo menos por um momento, isolar-se interiormente de todas as outras coisas e refugiar-se no Senhor. Ele está realmente presente e pode dar-nos num único momento aquilo de que precisamos.
Parece que foi escrito hoje. Mas na verdade foi escrito nos anos trinta do sećulo passado, há cerca de noventa anos!
Os tempos mudaram e todos os sintomas descritos por Edith Stein se aprofundaram quase até ao absurdo. Não é que sejam mais difíceis (basta pensar no martírio dos primeiros cristãos e nas perseguições que ainda hoje existem), mas – lá está -, são diferentes. Hoje é difícil concentrarmo-nos em qualquer coisa porque os meios tecnológicos multiplicaram muitas vezes a velocidade da troca de informação e mercadorias, dos contactos, das viagens, das decisões…E essa vantagem de produtividade não foi colocada ao serviço do homem, que assim deveria ter mais tempo livre. Ao contrário: de uma forma geral, estamos todos mais assoberbados e angustiados com as tarefas com que temos de lidar.
O que podemos então fazer para ganhar intimidade com Deus, no meio do barulho? Santa Teresa ensinou-nos que a oração é um ato de amor e que as palavras não são precisas. Mas para isso é preciso que todo o nosso ser esteja concentrado em amar a Deus. Simone Weil, uma filósofa e mística “não-oficial” contemporânea de Edith Stein, considerava que a atenção é a chave da oração:
Apenas a parte mais elevada da atenção entra em contacto com Deus quando a oração é intensa e pura o suficiente para que um tal contacto se estabeleça; mas toda a atenção está voltada para Deus. Mesmo no meio das tarefas mais exigentes é possível parar uns segundos e concentrar a atenção em Deus. Isto não implica qualquer sensação reparadora (“consolação espiritual”), pois essa depende apenas de Deus e, como é sabido, não é o importante. O importante é virarmo-nos para Deus. Este movimento só se torna natural quando o repetimos incessantemente (“orai sem cessar”). É por isso que é importante manter uma rotina de oração. Essa rotina deve ser constituída por períodos fixos, mas também pelo hábito de voltar a atenção para Deus nos tempos mortos, nas pausas em que normalmente atafulhamos o cérebro com tagarelice mental. Assim, a revisitação espiritual contemporânea deverá debruçar-se sobre a sobrevivência da fé no meio do turbilhão e da fragmentação em que vivemos. Nos próximos textos tentarei partilhar mais alguns pensamentos sobre este tema.