Se o amor é tomado como livre, como é que podemos tomá-lo, simultaneamente, como obediente? É esta a pergunta que guia este pequeno texto.
A maioria de nós quando pensa em “amor”, pensa nas palavras de S. Paulo em 1 Coríntios 13:4-7 “O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Provavelmente, um dos capítulos (mais belos) mais citados da Bíblia (especialmente em cerimónias solenes como casamentos). A partir desta leitura é fácil (e óbvio) associar “amor” a conceitos como “liberdade”, “bondade” e “generosidade”, mas na atualidade ”amor” e “obediência” aparecem como conceitos opostos. Se o amor é tomado como livre, como é que podemos tomá-lo simultaneamente como obediente? É esta a pergunta que guia este pequeno texto.
Primeiro, temos de distinguir a “obediência” como comummente a utilizamos e a “obediência” no nosso amor a Deus. “Obediência” tem uma conotação negativa, não só no uso que lhe damos, mas mesmo no seu significado descritivo em dicionários. O dicionário online Infopédia da Porto Editora faz a seguinte listagem dos significados de “obediência”: 1. ato ou efeito de obedecer; acatamento 2. submissão a uma autoridade, sujeição 3. dependência em relação a determinada autoridade 4. vassalagem, preito 5. igreja, mosteiro ou propriedade dependente de uma ordem religiosa”. O único significado que podemos descartar como não tendo qualquer tipo de conotação é o 5.
Submissão, vassalagem, sujeição aparecem-nos como antónimos da liberdade individual, uma conquista recente para nós portugueses e ainda uma conquista por conquistar em muitos países. Estes termos também evidenciam uma assimetria de poder, entre alguém que se deve submeter ou sujeitar a outrem (o termo medieval vassalo, de vassalagem implica um acordo entre alguém que era economicamente e politicamente inferior e outrem que lhe era superior) e que se responsabilizará por ela de algum modo. O amor livre não se parece corresponder com isto. Recordemo-nos do escândalo nas redes sociais quando se leu a Carta de S. Paulo aos Efésios 5 versículo – 22: “Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como ao Senhor”. Não é o meu objetivo indagar aqui sobre a possível interpretação desta leitura ou o seu significado, mas antes sublinhar como S. Paulo associa aqui amor e obediência. Na verdade, no versículo 21 está escrito: “Sujeitem-se uns aos outros, por temor a Cristo”, referindo-se aos homens e às mulheres. S.Paulo ainda acrescenta no v.25: “Maridos, ame cada um a sua mulher, assim como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela”. Ora, eu não acredito que este versículo “desculpe” (que torne totalmente nítido o que se queria dizer) o que foi escrito no versículo 22, mas dá-nos uma ideia do que é falamos quando falamos de “amor obediente”.
“Amor obediente” não é uma frase que ouçamos todos os dias, e quando a ouvimos é muito provável que a associemos a um caso trágico e não de amor. Aqui, o que gostaria de distinguir é o “amor obediente” que temos a Deus. Esta obediência não me é imposta à força, nem eu sou obrigada a segui-la. Eu escolho confiar em Deus, escolho seguir os seus mandamentos, escolho escutar a sua palavra. Só consigo ser obediente a Deus, se me for dada a oportunidade de escolher sê-lo. Deus Dá-me a oportunidade de segui-lo e obedecer aos seus mandamentos, mas não me obriga a fazê-lo. Só sou obediente, porque confio em Deus. No outro dia recebi uma mensagem num dos grupos de WhatsApp a que pertenço que ressoou bastante em mim e que vai do seguinte modo: “Não sei aonde Deus me leva, mas sei que Ele me conduz” – Santa Edith Stein. Eu obedeço a Deus e sou obediente no meu amor, porque confio nele. Neste sentido, um “amor obediente” é um amor que confia, é um amor que apesar de poder vacilar continua presente e não se deixa falecer. Um amor a que nos chama Deus.
Esta é uma possível análise, mas enquanto mulher não posso deixar de sentir a dor de tantas outras mulheres que olham para a obediência como um pilar do amor que têm para com os outros, especialmente os seus companheiros. Uma obediência que pede a supressão da vontade individual, e da qual não pode duvidar e que elimina a sua própria liberdade. Infelizmente, o amor obediente de que ouvimos falar não é o amor obediente a Deus, mas um amor que não é amor, que pretende ignorar a liberdade individual e anular o indivíduo. Enquanto mulheres é bastante fácil entrarmos nesta espiral. Dedicamos tanto tempo a alguém que nos esquecemos daquilo que queremos ou mesmo de quem somos. Submissão, sujeição, acatamento são termos que ganham significados muito diferentes quando somos mulheres. Há pessoas (incluindo as próprias mulheres) que pensam que esse é o lugar natural da mulher. Uma criatura sujeita às vontades do homem, sem direito a ter a sua própria vontade. Leituras como a dos Efésios 5 v.22 ainda são muito sensíveis de se ler, porque efetivamente muitas mulheres sujeitam-se aos seus maridos e não por amor, mas sim por medo. Sem isso implicar a confiança que nós depositamos em Deus. O “amor obediente” que temos em Deus é compatível com a liberdade que Ele nos Oferece. Nós podemos vacilar na nossa fé, ter dúvidas, mas isso não implica que Deus nos abandone. O outro “amor obediente” não tem em conta a liberdade. Ignora as vontades do outro, não pretende amá-lo mas sim dominá-lo.
No final deste texto é difícil concluir se é possível amar e ser-se obediente ao mesmo tempo. Por um lado, parece ser possível, através da confiança e liberdade que Deus nos dá para o fazermos. Só Lhe obedecemos, se assim o quisermos. Mas por outro lado, um “amor obediente”, que não a Deus, parece-nos impossível. Condições históricas, sócio-económicas e culturais influenciam a forma como certas pessoas, especialmente mulheres, experienciam o amor. Tornando este não numa união de liberdade e confiança, mas antes num depósito de dominação e de relações assimétricas. Acabei por não dar uma resposta, mas antes, por levantar ainda mais perguntas. O que acaba por ser profícuo, visto que este tema não é simples e ainda necessita de muita discussão.
No meio disto tudo uma coisa é certa, termos como “sujeição” ou “submissão” devem ser interpretados e utilizados com muita minúcia, especialmente quando estes são dirigidos a um grupo de pessoas que sempre viveu, de alguma forma, a integração destes na sua vida.