Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem

Pássaro solitário

Partilhar:
Pin Share

Aqui se expõe a comparação que São João da Cruz faz entre a alma e uma estranha, e para sempre desconhecida, ave — O Pássaro Solitário.

O melro azul é um pássaro um pouco mais pequeno que o preto. Caracteriza-se por ser solitário com um canto assobiado muito próprio e belo. Apenas pode ser observado entre as fragas ou, então, em edifícios altos e abandonados, e sempre à distância. O macho da espécie tem uma penugem azul mortiça, sendo, por vezes, difícil definir a sua cor. Só pode ser encontrado com companhia nas épocas de reprodução, quando a sua cor se transforma num azul muito mais definível e vibrante. Acha-se um pouco por toda a Península Ibérica durante todo o ano.

Apesar desta apresentação, este texto não versa sobre ornitologia, mas sobre espiritualidade, e esta com o cunho do grande doutor místico São João da Cruz. O místico abulense sendo um enamorado de Deus era também um profundo admirador da natureza, criação d’Aquele a Quem amava profundamente. Por isso mesmo, algumas das imagens que usava para explicar a relação do orante com Deus eram tomadas da natureza.

No comentário às canções 14 e 15 do seu Cântico Espiritual o poeta santo, patrono dos poetas espanhóis, introduz a imagem do pássaro solitário para nos explicar o que narra nestas estrofes. Antes de mais admiremos a maravilhosa formosura da sua poesia:

“¡Mi amado, las montañas,
los valles solitarios nemorosos,
las ínsulas extrañas,
los ríos sonorosos,
el silbo de los aires amorosos;
la noche sosegada,
en par de los levantes de la aurora,
la música callada,
la soledad sonora,
la cena que recrea y enamora;”

Quanto à forma, o poema é uma lira clássica: estrofes de cinco versos com 7, 11, 7, 7, 11 sílabas métricas. Este tipo de poema é próprio da tradição erudita da língua castelhana; e é usado, com frequência, para falar das experiências de amor. Este último pedaço de informação não nos acrescenta muito em relação ao sentido espiritual do poema, mas diz-nos que São João da Cruz detém um exímio domínio da sua língua materna, o que faz dele um poeta dos grandes, senão o maior, da língua castelhana.

O Cântico Espiritual é um poema que nos narra o processo espiritual de busca e encontro com Deus, que conduz à união de amor com Ele. Ali, a alma que se descobre ferida de amor sai à procura d’Aquele que assim a feriu. Na canção 11 começa a narração deste encontro entre a amada e o Amado, entre o orante, ou a sua alma, e Deus:

“Descubre tu presencia,
y máteme tu vista y hermosura;
mira que la dolência
de amor que no se cura
sino con la presencia y la figura”.

Depois deste primeiro encontro, o poeta dá início à descrição do desposório espiritual. As estrofes 14 e 15, por sua vez, falam-nos do momento anterior à união de amor: “el silvo de los aires amorosos” que conduz à “noche sosegada”. Esta noite, porém, já não é a noite da purificação do espírito ou dos sentidos, é antes um momento inefável e fronteiriço entre a noite e o dia que chega com a aurora. Ao surgirem as primeiras luzes do dia surge também a tal ave misteriosa: um pássaro que levanta um voo de “música callada”, de “soledad sonora”. Nestas duas expressões o santo poeta recorre ao oxímoro para nos descrever a estranheza desse estado inefável, que é e não é ao mesmo tempo. De facto, o orante ainda não possui a comunhão total com o seu Amado, mas, como é óbvio, tem já parte n’Ele.

Segundo a aclaração do místico, estas duas estrofes referem-se ao pássaro solitário, imagem que ele toma do salmo 102 (101), versículo 8; e descreve-o com cinco características muito particulares: 1) procura os pontos mais altos; 2) tem sempre o bico orientado de acordo com a origem do vento; 3) é solitário; 4) tem um canto muito suave; e 5) não tem uma cor determinada (cfr. Cântico Espiritual, comentário das canções 14 e 15, n. 24). Tal como o salmista, São João da Cruz não identifica este pássaro. No entanto, pelas características que nos dá pode dizer-se que se trata de um pássaro muito semelhante ao melro azul. E se se consultar tratados de ornitologia da Idade Média também podemos descobrir que, entre os mais variados nomes que se dão ao melro azul, lhe é dado o de pássaro solitário.

Nunca poderemos saber com certeza se João da Cruz tem em mente o melro azul quando usa esta imagem para nos falar da vida espiritual. Na verdade, ao longo dos séculos foram apontadas várias hipóteses para identificar esta ave saojoanista; de entre elas destaco uma outra: a fénix. Esta é uma ave lendária, com plumagem de fogo que se consome a si própria para renascer das suas próprias cinzas. Em vários tratados de espiritualidade ela é identificada com Cristo que, na cruz, renasce dos restos do corpo humano morto, em favor da sua entrega por todos os homens e mulheres. Outras vezes é identificada com a alma do orante, que no seu caminho de conversão permanente vai renascendo para a vida em Cristo, até à identificação total com Ele. Podemos ainda dizer que a tradição de identificar a alma com uma ave é já bastante antiga, pois se encontram registos de tal identificação já no antigo Egipto e em várias culturas desde então. É, pois, um tema recorrente dos místicos, apesar da religião que professem.

Seja qual for a imagem que São João da Cruz tivesse em mente à hora de explicar as estrofes 14 e 15 do Cântico Espiritual, podemos assumi-lo como um enamorado de Deus e, por isso, todas as imagens, seja qual for a sua procedência, são usadas para nos falar do caminho que o orante faz para Ele, até à plena união de amor. Como me parece que fica evidenciado, é próprio dos místicos criar uma linguagem nova para falar das experiências inefáveis de Deus, com o objetivo de fazer entrar os seus ouvintes ou leitores “más adentro en la espesura” do Mistério Absoluto, que para João é o Deus Pai de Jesus Cristo.

O pássaro solitário sanjoanista é, pois, um meio para descrever o estado em que se encontra a alma entrada na contemplação do Amado, que é: “uma infusão secreta, pacífica e amorosa de Deus que, se lho permitirem, inflama a alma em espírito de amor” (1 N 10,6). Ao chegar ao estado do desposório espiritual (1) a alma do orante, tal como o pássaro solitário, procura a solidão (3) para encontrar-se com o seu Amado, respondendo com louvores e amor (4), através da ação Espírito Santo (2), não se apegando a nada mais do que a Deus (5).

Carlos Vieira

Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem

Partilhar:

Artigos

Relacionados

Minha Mãe, a Virgem Maria

O profeta Elias é considerado o pai espiritual da Ordem Carmelita, muito embora a Ordem só tenha sido formalmente fundada no século XII. Os primeiros eremitas que habitaram no Monte Carmelo, na Terra Santa, além de terem como principal referência a Virgem Maria, também se inspiraram na vida e no espírito do profeta Elias. Tem por isso a nossa Ordem a sua origem nuns eremitas que habitavam, junto à fonte, como nos narram vários documentos.

read more