Introdução
São João da Cruz, místico Doutor da Igreja, iniciou no século XVI, juntamente com Santa Teresa de Jesus, a reforma da Ordem Carmelita, num tempo em que a Igreja passava por momentos de grave crise e de ventos contrários provocados pela Reforma Protestante, empreendida por Martinho Lutero.
Em maio deste ano de 2024, aquando da Solenidade da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Papa Francisco publicou a Bula «Spe non Confundit» – «A Esperança não engana», na qual proclamou o ano jubilar de 2025 dedicado à virtude teologal da esperança. Baseando-se na Carta aos Romanos, que diz: «Spes non confundit – a esperança não engana» (5,5), o Santo Padre, Papa Francisco, diz-nos que «todos esperam»; cito: «No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expetativa do bem, apesar de não saber o que trará consigo o amanhã. Porém, esta imprevisibilidade do futuro faz surgir sentimentos por vezes contrapostos: desde a confiança ao medo, da serenidade ao desânimo, da certeza à dúvida. Muitas vezes encontramos pessoas desanimadas que olham, com ceticismo e pessimismo, para o futuro como se nada lhes pudesse proporcionar felicidade».
Com o desejo de que este Jubileu «possa ser, para todos, o encontro pessoal com o Senhor Jesus, porta de salvação (cfr João 10,1.9); é a Ele, que a Igreja tem por missão anunciar sempre, em toda a parte e a todos, como a “nossa esperança” (1Timóteo 1,1)», o Santo Padre exprime a esperança de que o Jubileu seja o momento de criar a paz em todo o mundo: «mais uma vez imerso na tragédia da guerra»; e seja também «para todos, ocasião de reanimar a esperança».
Se olharmos para a realidade do mundo, depois de sairmos da pandemia Covid-19 e, neste momento, onde a paz e o entendimento estão ainda muito longe de ser um acordo comum entre os governantes e os povos, resta-nos ter esperança e confiança de que Deus venha renovar a face da terra.
O nosso Santo Místico, São João da Cruz, com a sua vasta doutrina sobre as três virtudes teologais, é um dos Doutores da Igreja que nos pode guiar durante este ano jubilar a viver a esperança de um dia chegarmos à união com Deus. Tal como São Paulo que sente um vivo desejo de chegar quanto antes Roma, para a todos levar o Evangelho de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, como anúncio da esperança que realiza as promessas; sim, tal como esta esperança nos introduz na glória, e não nos desilude, porque está fundada no amor, também se pode dizer que São João da Cruz tem o desejo ardente de chegar a cada pessoa, e de nos ajudar a ter esperança de combater o bom combate da fé e, com a ajuda da Palavra de Deus, podermos chegar à definitiva união com Deus no Seu Filho Jesus Cristo, Esposo das almas, pela graça do Espírito Santo.
A esperança em São João da Cruz
O tema da esperança é desenvolvido detalhadamente no Terceiro Livro da Subida do Monte Carmelo nos capítulos 1 a 15. Apesar de não lhe dedicar uma grande exposição, isso não significa que a esperança tenha uma menor importância na vida espiritual. Ao longo dos seus outros escritos, podemos encontrar referências concretas ao tema da esperança. Existe ainda um poema – na verdade, uma pequena quadra – dedicado ao tema da esperança; diz assim:
«Após amoroso lance
e não de esperança falto
voei tão alto, tão alto
que lhe dei à caça alcance»[1].
Ao falar da união com Deus, São João da Cruz incentiva os seus filhos e filhas espirituais a seguir pelo caminho da vivência do caminho teologal: em fé, esperança e amor. Este tema das três virtudes teologais está muito presente nas obras do nosso Santo Místico. O seu desenvolvimento e a sua explicação mais detalhada encontram-se nos livros da Noite Escura e da Subida do Monte Carmelo. Cada uma destas três virtudes teologais está vinculada a cada potência da alma; a saber: a fé ao entendimento; a esperança à memória; e, a caridade, o amor, à vontade. Pode ler-se no segundo livro da Subida: «Havendo, pois, de introduzir as três potências da alma – entendimento, memória e vontade – nesta noite espiritual, que é o meio para a divina união, é preciso explicar primeiro, neste capítulo, como as três virtudes teologais – fé, esperança e caridade – se relacionam com as três potencias, enquanto agentes próprios sobrenaturais. É por meio delas que a alma se une com Deus segundo as suas potencias, criando um vazio e escuridão na potência que lhe corresponde: a fé no entendimento, a esperança na memória e a caridade na vontade»[2]. São João da Cruz afirma aqui, com clareza, que a alma se une com Deus por meio das virtudes teologais.
O cristão que se prepara para viver o ano jubilar da esperança, pode ler o igual pensamento acerca da íntima relação das três virtudes teologais apresentado pelo Papa Francisco: «A esperança forma, juntamente com a fé e a caridade, o tríptico das «virtudes teologais», que exprimem a essência da vida cristã (cfr 1Coríntios 13,13; 1 Tessalonicenses 1,3). No dinamismo indivisível das três, a esperança é a virtude que imprime, por assim dizer, a orientação, indicando a direção e a finalidade da existência crente»[3].
Podemos ainda ver como no primeiro capítulo do terceiro livro da Subida do Monte Carmelo, São João da Cruz explica a estreita ligação entre as três virtudes teologais: «A primeira potência da alma, que é o entendimento, já se encontra preparada em todas as suas apreensões pela primeira virtude teologal, que é a fé, para que a alma se possa unir com Deus nesta potência por meio da pureza da fé. Resta-nos fazer agora o mesmo com as outras duas potências da alma, a memória e a vontade, purificando-as das suas apreensões, para que, segundo estas duas potências, a alma se possa unir com Deus em perfeita esperança e caridade» (1,1). O mesmo pensamento repete o Papa Francisco: «A esperança que realiza as promessas, introduz na glória e não desilude porque está fundada no amor».
O fundamento do amor cristão é Deus, porque Deus é amor. E a união com Deus, no Seu Filho Jesus Cristo, na vida eterna, pela graça do Espírito Santo, é a esperança de todos os cristãos. Esta união é realizada por Jesus na Cruz, no seu lado aberto pela lança do soldado, do qual jorra para cada crente a graça do Batismo e da Eucaristia. Por isso, tal como escreve o Papa no número três da Spe non Confundit, «a esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do Coração de Jesus trespassado na cruz».
O Santo Místico desenvolve numa maneira muito breve, como acima referi, a exposição sobre este tema. Se olharmos atentamente para o texto da Subida do Monte Carmelo, o nosso Santo, «em comparação à virtude da esperança, dedica 31 capítulos à exposição sobre o tema da caridade e 32 capítulos ao tema da fé»[4], donde se conclui que, na sua visão, a esperança não é a virtude menos importante na vida espiritual. Tem ela, de facto, uma ligação muito estreita com a fé e a caridade, pelo que, no sistema do nosso Santo, apoiam-se as três, mutuamente, na purificação da memória, do entendimento e da vontade. Por essa razão, nesta interdependência entre as três virtudes teologais, ao falar da esperança, São João da Cruz sempre faz a ligação com as outras duas virtudes teologais: a fé e o amor ou caridade; diz o próprio Santo, «os actos de umas articulam-se com os das outras» (1Subida 1,1), e «com a prática de uma virtude crescem todas as outras» (1Subida 12,5). Ainda nesta linha, adverte São João da Cruz para o perigo dos vícios, dizendo: «Mas também com um vício crescem na alma todos os outros e os seus efeitos» (1Subida 12,5). Este pensamento acerca da forte ligação entre as três virtudes teologais vem também explicado pelo Papa Francisco na Carta Spe non Confundit quando, referindo-se à Carta aos Romanos 8,35.37-39, afirma que «a esperança cristã não engana nem desilude, porque está fundada na certeza de que nada e ninguém poderá jamais separar-nos do amor divino […]. Por isso, esta mesma esperança não cede nas dificuldades: funda-se na fé e é alimentada pela caridade, permitindo assim avançar na vida».
Na doutrina de saojoanista, como dissemos, a esperança está vinculada à memória (3Subida 15,1). Segundo o Santo Místico, a «memória é a faculdade que permite a pessoa de acumular as impressões sensíveis recebidas». A memória provoca lembranças fazendo com que, muitas vezes, a alma fique a patinar nas memórias passadas – boas ou más – e não avance na vida espiritual. A este respeito, escreve Biló Repetto: «La memoria evoca, ‘recupera’ imágenes, experiencias pasadas, y las devuelve a la conciencia en el presente del hombre temporal e histórico. La memoria es la potencia mediante la cual el hombre experimenta y actúa en el tiempo, lo retiene o lo anticipa. Recuerda, representa, actualiza, revive el pasado. Y gracias a la conciencia siempre actualizada de nuestro ser ‘construido’ en el tiempo (finito, temporal, inacabado, inquieto), se lanza al futuro como posibilidad del ser».
A virtude da esperança, diz ainda mais especificamente São João da Cruz, ajuda a alma no despojamento espiritual, para assim chegar à união com Deus. No capítulo 15 do Terceiro Livro da Subida do Monte Carmelo, parágrafo 1, assim explica São João da Cruz: «É preciso ter em conta o que pretendemos: que a alma se una a Deus pela memória em esperança. Espera-se o que não se tem. Quanto menos coisas nela houver, mais capacidade e mais possibilidade existe para esperar o que se espera; por conseguinte, mais esperança se tem. Quanto mais a alma limpar a memoria das formas e recordações que não são Deus, tanto mais em Deus terá a memória e mais vazia para esperar que Ele a preencha plenamente. Portanto, para viver em total e pura esperança de Deus, o espiritual terá de fazer o seguinte: sempre que lhe ocorram notícias, formas e imagens particulares, sem se deter nelas, volte a alma para Deus com afecto amoroso e livre de qualquer recordação; não pense nem repare nessas coisas mais do que aquilo que é preciso para entender e cumprir o seu dever, se forem caso disso; para que elas não produzam efeitos na alma, não ponham nelas nenhum afecto ou gosto».
A união com Deus no Seu Filho Jesus a meta da procura – «Que a vida eterna sabe»[5]
«A esperança, diz o Catecismo da Igreja Católica, é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo. “Conservemos firmemente a esperança que professamos, pois aquele que fez a promessa é fiel” (Hebreus 10,23)»[6].
E, tal como já antes citávamos, São João da Cruz diz-nos que a prática ou a vivência das três virtudes teologais ajudam a alma a chegar até à união de vida com Deus: «Na saída da noite escura, escreve o Santo, por cima da túnica branca da fé, sobrepõe logo a alma a segunda cor, que um gibão verde, que significa a virtude da esperança. Com ela a alma livra-se e protege-se, em primeiro ligar, do segundo inimigo que é o mundo. A verde da esperança viva em Deus confere a alma tal vivacidade, coragem e elevação para as coisas da vida eterna que todas as coisas do mundo, em comparação a tudo o que dela espera alcançar, parecem-lhe secas, murchas e mortas, como de facto são, e sem qualquer valor» (2Noite 21,5 e 6).
A tarefa da esperança é ordenar e direcionar a alma o caminho para a união com Deus, no Seu Filho Jesus Cristo, pela graça do Espírito Santo. A esperança ordena, assim, a alma para chegar até a união transformante no Esposo-Cristo na vida eterna, como canta São João da Cruz quando comenta a estrofe «Aquilo que me deste»: «Aquilo que me Deste, isto é, aquele peso de glória em que me predestinaste, ó Esposo meus, no dia da tua eternidade, quando achaste por bem mandar criar-me. Tu mo darás mais tarde, no dia do meu desposório e núpcias, no dia da alegria do meu coração, quando, desatada da carne e entrada nas erguidas cavernas do teu tálamo, transformada gloriosamente em Ti, beberemos o mosto das doces romãs» (Cântico 38,9). Mais diz São João da Cruz noutro lugar: «assim faz a esperança: cobre todos os sentidos da cabeça da alma para que não se intrometem em coisa alguma do mundo, nem haja espaço por onde alguma seta do seculo possa ferir. Deixa-lhe só uma viseira a fim de poder levantar os olhos para o alto, e nada mais; alias, normalmente, é este o ofício da esperança na alma: levantar os olhos só para ver a Deus» (2Noite 21,7).
«Creio na vida eterna»: assim professa a nossa fé. E a esperança cristã encontra nestas palavras um ponto fundamental de apoio, escreve o Papa Francisco. E continua: «De facto, é a virtude teologal pela qual desejamos (…) a vida eterna como nossa felicidade» (Spe non Confundit nº 19). De facto, já Concílio Ecuménico Vaticano II afirma: «Se faltam o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade humana é gravemente lesada, como tantas vezes se verifica nos nossos dias, e os enigmas da vida e da morte, do pecado e da dor ficam sem solução, o que frequentemente leva os homens ao desespero». É, pois, certo que, em virtude da esperança na qual fomos salvos, vendo passar o tempo, temos a certeza que a história da humanidade, e a de cada um de nós, não correm para uma meta sem saída, nem para um abismo escuro, mas estão orientadas para o encontro com o Senhor da glória. Por isso vivemos na expetativa do Seu regresso e na esperança de vivermos n’Ele para sempre: é com este espírito que fazemos nossa aquela comovente invocação dos primeiros cristãos com que termina a Sagrada Escritura: «Vem, Senhor Jesus!» (Apocalipse 22,20).
Conclusão
A virtude da teologal da esperança recorda-nos a nossa condição de peregrinos. Somos peregrinos, não temos aqui na terra «morada permanente»; estamos em caminho rumo à terra prometida: o Céu. Um cristão é aquele que, cito São João da Cruz, «tem a luz da fé com que espera a vida eterna, sem a qual nada daqui e de lá tem valor para ele, deve alegrar-se só com a posse e a prática destes bens morais no segundo modo, isto é, fazendo as obras por amor de Deus, pois é assim que lhe alcança a vida eterna» (3Subida 27,4). Esta condição peregrinante do ser humano, expressa-a São João da Cruz com as palavras «subida», «senda», «via» (cfr 1Noite 14,1); ou «caminho» (cfr Prólogo. Subida,7) e «saída» (cfr 2Noite 22,1).
A alma que se enamora do Filho de Deus, deseja unir-se ao seu Esposo, e por isso sai do seu tálamo, percorre o «caminho de perfeição», expressado como «Subida do Monte Carmelo», no topo do qual mora a «perfeição de Deus» à qual a alma pretende chegar. São João da Cruz tem ainda algumas expressões que indicam este caminho de busca, de interiorização, de intimidade, de comunhão e de união com Deis: o entrar (cfr 1Noite 11,4); a porta (cfr 2Noite 11,4); a ascensão ou a elevação: a subida (cfr 2Subida 8,7); o monte (cfr 1Subida 5,7); o cume (cfr Argumento, Prólogo, Subida); a escada (cfr 2Noite 18,5); o voo (cfr 2Noite 20,1).
Deixou-nos, posso pai, uma máxima que diz assim: «Quanto mais a alma procura a Deus, mais o Seu Amado a procura a ela». O desejo ardente da procura de Deus, segundo São João da Cruz, é movido pela esperança do encontro com Deus que, simultaneamente, se revela e se esconde, provocando na alma o ardente desejo de sair da sua comodidade e lançar-se à procura do Deus Amado. A este respeito escreve o P. Secundino Castro, no livro Hacia Dios com San Juan de la Cruz, no capítulo VI, intitulado El Gemido de la Esperanza escreve: «La busqueda de Dios surge de una esperanza secreta, todavía no colmada. Tal actitud se halla estrechamente unida a la fe». Aliás, como bem sabemos, o nosso Santo expressa esta secreta esperança no seu poema do Cântico Espiritual. Logo na primeira estrofe diz:
Aonde Te escondeste, Amado,
e me deixaste num gemido?
Qual veado fugiste
Havendo-me ferido[7].
Explica, depois, que a razão deste gemido se deve à ausência do Amado: «é de saber que a ausência do Amado provoca no amante um gemido permanente, porque, ao não amar nada senão a Ele, em nada se apoia e encontra alívio»[8]. São claros sinais do anseio da mesma em chegar à definitiva união com o Amado, na visão beatífica: «Embora seja verdade que a alma, neste estado sublime, tanto mais conforme e satisfeita está quanto mais transformada em amor, já não sabe nem acerta em pedir nada para si, mas tudo para o seu Amado, pois a caridade, como diz S. Paulo, não procura o seu interesse (1Coríntios 13,5), mas o do Amado. E, porque vive ainda em esperança, em que não se pode deixar de sentir o vazio, tem tanto de gemido, embora suave e delicioso, quanto lhe falta ainda para a posse plena da adopção dos filhos de Deus; daí que, consumada a sua glória, o seu apetite se apaziguará»[9].
Que São João da Cruz, o santo da esperança, nos ajude a viver o Ano Jubilar da esperança.
[1] São João da Cruz – Obras Completas: Poema X. Avessadas: Edições Carmelo, pp. 77.
[2] 2Subida 6,1.
[3] Spe non Confundit, nº 18.
[4] Cfr BILÓ REPETTO, María Daniela – La esperanza en Subida del Monte Carmelo de san Juan de la Cruz. Una niña, una luz, atravesará las tinieblas, in REVISTA DE ESPIRITUALIDAD 77 (2018), pp.89-116. ISSN: 0034 – 8147.
[5] Chama de Amor Viva B.
[6] Catecismo da Igreja Católica, nº 1817.
[7] Cântico Espiritual B, 1
[8] Chama B, 1.
[9] Chama B 1,27.