Jan 2, 2023 | Espiritualidade

Gestora e Carmelita Secular

O abandono de Teresa do Menino Jesus e da Santa Face

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Perguntavam-lhe com que nome a deviam invocar quando estivesse no Céu. Chamem-me Teresinha, respondeu ela humildemente[1].

Sim, menininha; Teresinha atrevidamente te chamarei neste dia em que me imagino a falar-te de viva-voz, neste dia do teu aniversário, o centésimo quinquagésimo. Quando penso no que te diria, surgem-me muitas ideias, coisas infantis…

Teresinha – sim, condiz contigo!

«Eu sou o Jesus de Teresa», diz o Menino Jesus erguendo um dedo para o céu.
«Eu sou o Jesus de Teresa», murmura a Santa Face de olhos baixos.
«Eu sou Teresa do Menino Jesus e da Santa Face»[2].

Os teus títulos de nobreza: do Menino Jesus e da Santa Face[3], são exórdio tanto quanto epílogo, quiçá os principais ascensores que utilizaste na difícil escada da perfeição, o teu caminhar de Belém ao Calvário com o Cristo Menino e o Servo Sofredor.

Quão maravilhosa é essa intimidade com o Menino Jesus: beijar o Seu divino pezinho, ser a sua bolinha e rolar para onde Ele quiser, ser a Teresa do Menino Jesus, brinquedinho de Jesus[4]!, abandonares-te aos Seus divinos caprichos[5].

Quase que ouço os teus pensamentos acertados à imitação do Menino Messias, desde a tua tenra infância. Dizes: ao escrever, é a Jesus que falo, assim é-me mais fácil exprimir os meus pensamentos[6]. Que colóquios singularmente claros devem ter sido, para que de ti extravasasse tanto Amor por todos e tudo! À tua volta tantos também te amaram e incentivaram no teu entusiamo precoce em seguir Jesus. Em especial o teu papá, mamã, irmãs que também são tuas mães e madrinhas, tio, tia, primas, primos; o Menino Jesus, esse Menino que parecia dizer-te «Virás para o Céu, sou Eu que to digo!»[7] tinha a Sagrada Família, tu, uma família santa!

«Ó Face Adorável de Jesus, única Beleza que arrebata o meu coração, digna-Te imprimir em mim a tua Divina Semelhança, para que não possas olhar a alma da tua pequena esposa sem Te contemplares a Ti mesmo»[8]. A Santa Face, objeto privilegiado da tua contemplação, revelou-te a profundidade dos tesouros nela escondidos, o teu sol foi a sua Face adorável toldada de pranto… e assim compreendeste o que era a verdadeira glória[9].

Contemplando a Sua Santa Face, também tu sentiste profunda tristeza, lágrimas jorrando, e ímpeto de te prostrares a Seus pés na Cruz? Sentiste, como Verónica, uma pena inconsolável e um amor tão forte que, banhado de doçura, se materializou? Sentiste vontade de voltar atrás e vigiar, levantar a voz em Sua defesa, de recebê-Lo nos braços, como Maria? Acredito que sim; e o que para nós sobejou foi o teu Cântico à Santa Face explicitamente chamado «O meu Céu na terra!…»[10].

Pedia-lhe que me explicasse o caminho que ela dizia querer ensinar às almas, depois da sua morte:

«Minha Madre, é o caminho da infância espiritual, é o caminho da confiança e do total abandono. Quero ensinar-lhes os pequenos meios que resultaram comigo tão perfeitamente, dizer-lhes que há só uma coisa a fazer cá na terra: lançar a Jesus as flores dos pequenos sacrifícios, conquistá-l’O pela ternura; foi assim que eu O conquistei, e é por isso que serei tão bem recebida»[11].

Foi um inocente, mas sábio, caminhito muito direito, muito curto; um caminhito completamente novo[12]que procuraste, e através dele nos mostraste como ir para o Céu. No entanto, o caminhito, tal como um caminho, «intencionalmente exige um movimento, não se trata de um lugar de repouso, mas, obriga-nos ao seguimento de Jesus Cristo»[13].

O caminhito pode ser até mais árduo que o caminho, as veredas normalmente o são; mas raramente cansa, o desânimo acaba vencido pela contemplação da beleza circundante; os perfumes inebriantes, a miríade de cores, as flores, os melodiosos pintarroxos; subir, descer, cair, levantar-se, tudo isso torna o trajeto muito mais interessante, mais fecundo, um melhor louvor a Jesus, a Suma Beleza[14].

Teresinha querida, este teu caminhito tem proporções humanas, tem apenas espaço suficiente para andarmos um passo atrás do outro, guiados por aquele farol, a Palavra de Deus, luz que ilumina e permite certeiramente avançar. Não comporta desvarios nem vaidades, nem suporta o congestionamento das riquezas terrenas, mas enfarda em bens espirituais, que não ocupam espaço, mas inundam todo o nosso ser. Tem proporções humanas, mas a sua ambição é desmesurada, nada mais do que o topo do Monte Carmelo.

O caminho é o abandono da criancinha que adormece sem medo nos braços do seu pai[15]Teresinha, doce menina, o Senhor Martin, teu papá e teu Reizinho, sempre te abriu os seus braços, ao colo te carregou; na tua infância te enxugou copiosas lágrimas de amarguras inocentes profundamente vividas.

Durante uma sua ausência, porventura em parte por causa dela, foi-te concedida a provação de uma doença nervosa; talvez o teu coração de criança se tenha sentido abandonado… E quando para o Céu foi a tua mamã, o teu carácter alegre transformou-se de vivo e expansivo em tímido e calmo, excessivamente sensível. Então, por amor e para maior conforto das suas amadas filhas, o teu Reizinho desenraizou-se de Alençon, rumando para Lisieux, onde os teus tios amorosos vos acolheram, e convosco formaram uma família alargada, onde o amor, o sacrifício e a entrega foram uma constante. Eis, um pai a exemplo do Patriarca São José; um pai que tanto amavas e em quem tanto confiavas.

Teresinha querida, santa do abandono, olhando para trás, Jesus, desde sempre, opera o teu abandono. A tua amada Celina surpreendeu-te, ao regressar da missa da meia-noite, com um presente: um convite de Jesus para te abandonares a Ele num pequeno navio, que levava dentro o pequeno Jesus, a dormir, com uma pequena bola ao pé d’Ele. Na vela branca, a Celina escrevera estas palavras: «Eu durmo, mas o meu coração vigia»; e no barco, esta única palavra: «Abandono!»[16].

A imagem deste barquinho batizado de Abandono, terá porventura ficado indelevelmente gravado na tua mente, renovando-a e conformando-te a Cristo. Dentro do barco, na paz das águas calmas ou no tumulto da tempestade, Jesus pode até dormir por breves momentos; esse é tempo de graça, oportunidade para nos abandonarmos, para O deixarmos conduzir – tão grande lição e prática da virtude do abandono à vontade de Deus!

As cartas da tua mamã falam-nos do teu reconhecimento deste poder de Deus, já na tua tenra idade, quando fazes ver a Celina que, com o dobro da tua idade, te questiona: «Como é possível Deus estar numa hóstia tão pequena?». E a tua resposta foi: «Não tem de que admirar, pois Deus é Todo-Poderoso. — O que quer dizer Todo-Poderoso? — Ora, é fazer tudo o que Ele quer[17]. Sempre, sempre, a Sua divina vontade!

Mais tarde, naqueles três meses de tão longa espera para entrares no Carmelo, dizes-nos que essa provação muito grande muito te fez crescer no abandono e nas outras virtudes. Por certo, este abandono amoroso à Sua graça salvífica confere muita paz aos coraçõezinhos que se gloriam nas tribulações, pois sabem que «a tribulação produz a paciência, a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança» (Rm 5:3-4). E a grande virtude da esperança é que nunca nos engana, leva-nos sempre à maior: o Amor[18]! E, como dizes, poeticamente, o Abandono é o fruto delicioso do Amor [19].

Querida Teresinha, passar um dia contigo, especialmente em tão ilustre aniversário, é, para mim, uma escola de oração, meditação e contemplação. As dificuldades e deficiências abundam, mas cresce a esperança de poder, em algum lugar ou circunstância, atrever-me a imitar a tua oração que dizes ser simplesmente um impulso do coraçãoum simples olhar lançado para o Céuum grito de gratidão e de amor… que (te) dilata a alma e (te) une a Jesus[20].

Para ti, a minha imensa gratidão, para o Carmelo de Maria a minha pobre dedicação, e para Jesus o meu imperfeito amor.


[1] TERESA DO MENINO JESUS, SANTA – Obras Completas: Últimos Conselhos e Recreações. Paço de Arcos: Edições Carmelo (1996), 1304.

[2] (Introdução a) Orações, pág. 1062.

[3] Carta 118 «Carta-Convite para as núpcias da Irmã Teresa do Menino Jesus e da Santa Face».

[4] Carta 78, À Irmã Inês de Jesus, assinatura.

[5] Oração 14, Ao Menino Jesus.

[6] Carta 196, À Ir. Maria do Sagrado Coração, primeira parte do Manuscrito B.

[7] Últimos Conselhos e Recreações, 25 de julho, 4.

[8] Oração 16, À Santa Face.

[9] Manuscrito A, 71rº.

[10] Poesias de Teresa 20 (segundo a Edição do Centenário).

[11] Últimos Conselhos e Recreações, Madre Inês de Jesus, julho, Novissima Verba.

[12] Manuscrito C, 2vº.

[13] Hans Urs von Batlthasar, Sorelle nello Spirito.

[14] Recreações Piedosas 2; Poesias de Teresa 51 (segundo a Edição do Centenário).

[15] Carta 196 À Irmã Maria do Sagrado Coração.

[16] Manuscrito A, 68rº.

[17] Manuscrito A, 10rº.

[18] Paráfrase de Romanos 5: 3-5.

[19] Poesias de Teresa 52 (segundo a Edição do Centenário).

[20] Manuscrito C, 25rº.

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