Out 26, 2024 | Perspetivas

Universidade de Cádiz

Este livro veio até mim

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*[1]

Foi certamente assim: não fui à procura dele, foi ele que veio à minha procura. Procurar e encontrar são duas lógicas profundamente humanas e cristãs. A pessoa é alguém que procura e, ao mesmo tempo, alguém que encontra. Por vezes acontece que se é encontrado por algo ou por Alguém quando se está em busca. Foi precisamente o que me aconteceu com este livro.

Parafraseando o poeta espanhol Miguel Hernández[2] cheguei à cidade de Braga em Janeiro de 2022 com três feridas, a saber: a ferida do stress e da sobrecarga de trabalho, que me fez estourar por dentro no Verão de 2019; a ferida de uma doença grave, um tumor cancerígeno que foi detectado no Outono de 2020 e que, felizmente, conseguiram retirar a tempo; e a ferida de um ambiente de trabalho altamente tóxico, que acabou por se materializar numa falsa denúncia apresentada contra mim, por um dos meus inimigos, e que me atingiu em Janeiro de 2021.

A conjunção destas três feridas, com as suas respectivas ondas de choque, fez-me perceber que a minha vida tinha chegado a uma encruzilhada e que, em consequência, tinha de prestar atenção a todos estes sinais.

Trabalho como professor universitário em Espanha, o que desta vez me favoreceu, oferecendo-me a oportunidade de me candidatar a uma bolsa de investigação numa universidade estrangeira, o que me permitiria distanciar-me de tanta toxicidade, pelo menos durante algum tempo. Candidatei-me a esta bolsa sem grande entusiasmo e com pouca confiança de que a alcançaria, mais encorajado pela minha família do que pela minha própria convicção. No Outono de 2021, foi-me atribuída. Já todos sabem a que cidade vim ter nos inícios do ano seguinte.

Poucos dias depois de chegar a Braga, experimentei na própria carne o que diz o ditado popular espanhol: «Saí da Guatemala para entrar em Guatepeor». O péssimo acolhimento que me foi dado pelo meu anfitrião na universidade de acolhimento em Braga, juntamente com as dificuldades de encontrar alojamento numa cidade sujeita, como tantas na Europa, aos processos de especulação imobiliária e de turistificação, fizeram-me perguntar a mim próprio: o que estou a fazer aqui? e, mais ainda: o que fiz para merecer isto? Depois de várias tentativas falhadas para encontrar um lugar (não só para viver, mas sobretudo para meditar e assimilar tudo quanto tinha entrado na minha vida nos últimos três anos), encontrei a resposta às minhas necessidades na Igreja do Carmo. Foi-me oferecida a possibilidade de alugar um dos quartos disponíveis do albergue, maioritariamente para estudantes de países lusófonos que, como eu, vêm para a cidade para estudos de graduação ou pós-graduação.

Nas minhas idas e vindas do albergue, costumava encontrar, em frente à igreja, a estátua de um Carmelita Descalço do século XIX que marcou profundamente a cidade, sobretudo entre o povo simples: Frei João d’Ascensão, popularmente conhecido como O Fradinho. Chamaram-me especialmente a atenção os gestos simples e profundos de súplica e oração que muitas pessoas, sobretudo mulheres idosas, faziam ao Fradinho quando passavam por ele. Nesta situação, passou-me pela cabeça um pensamento como um relâmpago. Encontrava-me num convento, com seis meses pela frente, numa situação análoga àquela em que um dia se encontrou um autor de espiritualidade cristã que me é muito querido, Henry Nouwen, quando escreveu um dos seus livros mais influentes, My Diary at Genesee Abbey [O Meu Diário na Abadia de Genesee]. Nele relata, de forma honesta, profunda e corajosa, a sua experiência num mosteiro trapista americano, quando a sua vida se encontrava, tal como a minha, numa encruzilhada.

E foi assim que me surgiu a ideia de escrever um diário da minha estadia no Carmo de Braga, no qual a figura do Fradinho seria um dos fios condutores.

Uma estátua falou-me

Já o referi nas linhas anteriores, mas agora quero desenvolver um pouco mais esta ideia, porque a considero fundamental. Talvez, porém, aceito, seja uma ideia que surpreenda e desassossegue o leitor, que mui razoavelmente poderia suspeitar de alguém como eu, que diz que um livro veio até ele e que uma estátua lhe falou. Não quero com isto dizer que tenho tido visões do Fradinho a descer do pedestal da sua estátua para falar comigo. Não, a minha situação foi menos espetacular, pois pertenceu a outro tipo de experiência e a outro sentido do termo falar.

Depois de ter passado várias vezes em frente à estátua do Fradinho e de ter lido o livro A perdiz e o sacrifício de José Manuel Cruz, sobre o seu êxodo peregrinatório, desde Lisboa para Braga, após a desamortização proclamada no século XIX português, perguntei-me a mim próprio o que me fez sentir atraído por esta estátua magnética e enigmática. E os motivos que me fizeram sentir atraído pelo Fradinho têm a ver com o facto de ser alguém que se impõe mas que, ao mesmo tempo, não se impõe, antes oferece a sua mão e a sua pessoa neste gesto! E apercebi-me de que já tinha sentido esta experiência antes, de forma semelhante, ao encontrar monges trapistas e cartuxos. Qual é o factor comum a todos eles? Na verdade, nunca tinha pensado nisso, mas penso que todos eles têm em comum uma profunda experiência de silêncio, que os leva a atravessar as noites escuras que surgem nas suas vidas para, nesse caminho de fé, nesse seguimento de Jesus, se encontrarem com Ele e, ao mesmo tempo, conseguirem uma união e uma unificação interior e exterior, que é o que impacta quem os contempla desde fora.

Sem o ter planeado, tinha acabado de chegar a um dos lugares mais apropriados para dar sentido à perda de sentido que tinha entrado na minha vida, através dos acontecimentos traumáticos que já mencionei. Os Carmelitas Descalços sabem muito bem o que é a noite escura, pois o seu pai S. João da Cruz e a sua mãe Teresa de Jesus lhes recordam isso diariamente.

Mas o Fradinho não me falou apenas desta forma. Falou-me também, e eu diria sobretudo, através das pessoas simples que se colocavam diante da sua estátua. Às vezes para o tocar. Outras vezes, sem palavras, para fazer um gesto de profunda oração e súplica diante dele. Todas elas me falaram a partir do silêncio, para me sugerir que no Fradinho havia uma história que merecia ser conhecida e contada.

Estruturas narrativas e mediações da fé

Depois desta contextualização sobre a origem deste livro, vou debruçar-me agora sobre as razões que me levaram a decidir contar a minha experiência desta forma, como um diário. Existem muitas razões pelas quais, em princípio, alguém pode decidir escrever um diário, e nem todas convergem para a minha pessoa. Por exemplo, não sou famoso, nem no sentido mundano nem no sentido cristão. É óbvio, portanto, que esse não é o motivo central para escrever um diário e depois vendê-lo e distribuí-lo. Também não falo de acontecimentos espectaculares ou de intimidades minhas, pelo menos não no sentido habitual, lamechas e piegas, como tendem a ter os diários classificados sob o rótulo de romance. Lamento desiludir o potencial leitor, mas se alguma coisa existe no meu diário é o relato de uma vida simples na cidade de Braga, durante os seis meses da experiência que ali conto.

Então, o que é que pode tornar atractivo um diário como o meu? Penso que um dos principais argumentos gira em torno da ideia de que os seres humanos têm uma estrutura narrativa. Por isso, quando temos de transmitir ideias e valores fundamentais, recorremos habitualmente, ao longo da história, a histórias e mitos, a formatos que têm uma estrutura narrativa. As crianças gostam que lhes contem histórias. Gostam que lhas repitam. É uma forma de transmitir mensagens e valores através do que acontece às personagens, num espaço e tempo específicos.

São precisamente estas histórias e contos que têm o potencial de se entrelaçar com a nossa própria história pessoal, para nos ajudar a encontrar um sentido para as nossas vidas[3]. Os seres humanos passam pela vida em busca de sentido, tal como disse o meu homónimo Viktor Frankl. Para isso, precisam não só de um sentido último, para que a vida quotidiana revele algo mais do que aquilo que normalmente nos mostra. É também necessário que os acontecimentos quotidianos, muitas vezes fragmentados e simplesmente justapostos uns aos outros, estejam de alguma forma ligados para que as nossas vidas façam sentido. Precisamos de encontrar, descobrir, ou pelo menos não perder, o tecido das nossas vidas.

A palavra trama é utilizada no domínio têxtil[4]. Aí se refere ao «conjunto de fios que, cruzados e entrelaçados, formam um tecido». No mesmo sentido, o enredo é o fio condutor de um conto ou de uma história, que nos permite ligar uns acontecimentos a outros. Assim, no meu caso, a escrita de um diário, tal como o fiz, significou partir em viagem para encontrar o fio, o enredo, que me permitisse unir os acontecimentos, aparentemente sem sentido e desconexos entre si, que foram surgindo na minha vida nos últimos anos e que, no meu ir e vir pela cidade de Braga, ao longo de seis meses, foram fazendo sentido.

Nesta tarefa, que papel desempenha a fé cristã, a minha fé cristã? Sem dúvida, um papel fundamental. A Bíblia está cheia de grandes relatos que nos falam, através de histórias, de quem são os seres humanos e de quem é Deus. Em particular, os Evangelhos (sobretudo os Sinópticos) estão organizados numa estrutura narrativa para nos contar a vida de Jesus, a partir dos momentos fundamentais da sua vida, contemplados a partir da sua Ressurreição e do olhar de fé dos primeiros crentes. E, quando nos encontramos em momentos cruciais da nossa vida, confrontados com as grandes questões (qual o sentido da vida e da morte? Porque existe o sofrimento, sobretudo o dos inocentes?), encontramo-nos com a sábia reflexão do monge beneditino catalão Lluis Duch [que nos diz]: perante as grandes questões, o crente não tem explicações racionais, o que encontra são narrativas.

Por outro lado, no subtítulo desta secção, falo das mediações da fé. Quando terminei de escrever o meu diário, apercebi-me de que, sem ter tido essa intenção, no processo de escrita, na minha busca quotidiana de um novo sentido para a minha vida, as mediações com que alimento a minha fé cristã desempenharam um papel fundamental. Algumas delas poderiam ser chamadas de mediações clássicas. Neste sentido, o leitor encontrará no diário as reflexões sobre a Eucaristia celebrada na Igreja do Carmo, a recitação da oração de Laudes com a comunidade das Carmelitas Descalços, as leituras do Evangelho do dia e as meditações decorrentes dos tempos diários de silêncio.

A par deste tipo de mediações, o meu diário contém outros tipos de mediação a que poderíamos chamar não convencionais. Neste grupo estão, por exemplo, os pequenos-almoços e as refeições nos locais da cidade que fui descobrindo ao longo da minha estadia; os passeios diários pelas suas ruas; as minhas visitas semanais, como voluntário, à sopa dos pobres da Cáritas; os livros que li, sobretudo textos sobre espiritualidade; a música que serviu de banda sonora ao que me ia acontecendo… Este segundo grupo de mediações, aparentemente, nada tem a ver com Deus. Mas só aparentemente.

E é claro que existe também uma mediação especial, um importante fio condutor nesta trama – a figura do Fradinho, que fui recebendo em tudo o que fui lendo sobre ele, a partir dos livros de José Manuel Cruz e de Frei João Costa, o prior da comunidade dos Carmelitas Descalços de Braga; e também dos eventos que foram organizados na cidade, ou nos arredores, durante a minha estadia para dar a conhecer a sua figura. E, sobretudo, o quanto o conhecimento da sua vida me estava a dizer a mim e à minha própria vida.

O que vivi e contei no diário não é só para mim, é para ser partilhado.

Existe nos relatos outro elemento fundamental que não mencionei antes e que vou comentar agora. O ser humano tem uma estrutura narrativa, e é isso que lhe permite identificar-se com os protagonistas da história e, assim, elaborar as suas questões, os seus conflitos ou a sua dor. O caminho do seguidor de Jesus é um processo contínuo, embora nem sempre linear, de identificação com Ele, com a sua mensagem e com a sua causa.

Neste sentido, acredito, com humildade e firmeza, ao mesmo tempo, que as pessoas que vivem uma vida simples podem encontrar neste diário pistas para alimentar a sua fé e dar um pouco mais de sentido às suas vidas. Durante a escrita das minhas páginas, identifiquei-me com muitas pessoas, algumas conhecidas e outras desconhecidas, que nos nossos dias passam por situações semelhantes às minhas e que, no entanto, não têm a oportunidade que eu tive de tentar dar sentido às contrariedades que se me depararam. É por isso que digo que este livro não é apenas, ou principalmente, para mim, mas se destina a ser partilhado e utilizado por outros. Sobretudo por aqueles que vivem, como eu, em ambientes e dinâmicas de trabalho tóxicos, onde o stress e as pressões de todo o tipo estão na ordem do dia. Por aqueles que, após a pandemia de Covid-19 e o seu pico em 2020, iniciaram o que se chamou o movimento da Grande Demissão, que levou milhares de pessoas a mudar de emprego ou a dar outro sentido ao trabalho remunerado, para viverem de forma mais integrada. Para aqueles que, como eu, tentam viver a sua fé cristã no meio das realidades temporais, de modo que procuram espaços de silêncio, de oração e de empenhamento social no meio do barulho do mundo.

Este sentimento de que o diário seria útil a outras pessoas foi, em muitos momentos críticos, o que me encorajou a continuar a escrevê-lo. Se este livro fosse apenas para mim, tê-lo-ia deixado inacabado. Mas agora, depois de o ter escrito e publicado, acredito que a história desta publicação só fará sentido se disser algo a pessoas que, talvez de formas que eu não poderia imaginar, se identificam com o que nele conto.

Neste livro há muitos livros

Se tudo o que eu disse não for suficiente, posso ainda dizer que, no meu livro O meu Diário no Carmo do Fradinho existem muitos livros. Temos, por exemplo, um livro de espiritualidade cristã.  Para além disso, o leitor pode encontrar a a m inha visão pessoal da cidade de Braga, das suas gentes, ruas e recantos, uns mais familiares do que outros. O diário contém também elementos de um livro de cozinha, com referências a alguns dos pratos que aí comi e cozinhei. É um guia de leitura, com referências a muitos outros livros, os que profissionalmente tive de ler, como investigador, mas também os que li como crente. Há também um olhar particular sobre a universidade enquanto instituição, sobretudo nas suas actuais derivas destrutivas, que fazem temer pela sua forma de estar enquanto espaço de construção de conhecimento humanista e humanizador. As referências musicais encontram-se nas canções que já conhecia e nas que fui descobrindo ao longo dos meses em que vivi na cidade.

Não há dúvida por isso de que, se adquirirem um exemplar do livro, estarão a fazer um bom investimento. E aprenderão algo mais sobre a vida de Fradinho, o frade Carmelita Descalço do século XIX, cuja mensagem tem muito a propor ao cristão do século XXI.

Víctor Manuel Marí Sáez

O meu diário no Carmo do Fradinho.

Edições Carmelo. 2023.

Pode adquiri-lo contactando a comunidade dos Carmelitas Descalços de Braga: braga@carmelitas.pt


[1] Transcrição e reelaboração da apresentação do primeiro volume do livro O meu Diário do Fradinho, realizada na Igreja do Carmo de Braga a 1/7/23.

[2] Ele veio com três feridas:
a do amor
a da morte
a da vida.
Com três feridas ele vem:
a da vida,
a do amor,
a da morte.
Com três feridas eu venho:
a da vida,
a da morte,
a do amor.

[3] Homem em busca de sentido. Herder. Barcelona. 2004 (original em alemão, 1946)

[4] Definição retirada do DRAE (Diccionario de la Real Academia Española).

Víctor Manuel Marí Sáez

Universidade de Cádiz

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