Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem

A ousadia de ser livre

Partilhar:
Pin Share

O Papa Francisco na sua última carta encíclica – Dilexit nos – e num discurso aos alunos das Universidade Pontifícia Gregoriana – posterior à encíclica –, chama-nos a todos nós, cristãos católicos a assumir a exigência da nossa fé. Na carta encíclica, depois de ter exposto o modo de amar do Coroção de Jesus, diz-nos que para responder aquele amor é necessário amar os irmãos e: «o amor aos irmãos não se fabrica, não é resultado do nosso esforço natural, antes requer uma transformação do nosso coração egoísta»  (DN 168). E no referido discurso exortava-nos a não cair na ‘cocalização’ espiritual, a não ceder a formas fáceis de viver a espiritualidade, que no fim de contas não nos comprometem verdadeiramente com o seguimento de Jesus Cristo. São João da Cruz é uma resposta a esta necessidade dos nossos tempos: de uma espiritualidade séria e exigente. Vejamos o que ele tem para nos dizer no contexto da descrição do pássaro solitário que estamos a seguir.

É chegada a hora de afrontar a última das qualidades do pássaro solitário, que, curiosamente, no sistema pedagógico espiritual de São João da Cruz constitui uma das primeiras etapas, pelo menos é isso que nos transmite a ordem de produção das grandes obras. Sem mais delongas, falamos da desnudez. Um termo complexo e com profundas implicações em toda a apresentação da vida espiritual que nos faz João da Cruz, como veremos.

Antes de prosseguir, citemos aqui as palavras com que o nosso místico apresenta a quinta das características deste pássaro misterioso: «não tem cor determinada. Assim também o espírito perfeito: neste excesso não tem qualquer cor de afecto sensual e amor-próprio; carece até de qualquer consideração particular sobre coisas superiores ou inferiores, sem poder dizer qual o seu modo e maneira, porque a notícia de Deus que possui é abissal» (CB 14-15, 24). No decorrer desta reflexão notaremos porque é que esta descrição peculiar se pode relacionar com este conceito joãocruciano e se torna mais compreensível a partir dele.

Comecemos, então, por dizer que este conceito está espalhado por quase toda a obra de São João da Cruz, desde as obras menores às maiores, desde as mais temporãs às mais tardias. Enfim, um conceito transversal a toda a obra, mas também a todo o percurso espiritual sistematizado pelo místico de Fontíveros, tanto quanto lhe foi possível. Quando se faz uma busca por este conceito nas concordâncias das suas obras somos remitidos para uma série longa de passagens onde ele aparece textualmente, mas também para uma série de outros termos que designam noções similares e, muitas vezes, sinónimas. Falamos de termos como: desprendimento, desapego, desapropriação, negação, purgação, purificação, vazio e pobreza de espírito. Só este elenco já nos dá uma ideia daquilo que entende João da Cruz por desnudez.

Embora esta primeira abordagem nos ajude a entrar naquilo que significa este termo-chave da espiritualidade joãocruciana, ela não é suficiente. E não é suficiente porque para leitores pouco experimentados em São João da Cruz, como eu, remete apenas para a ascese. Porém, quando se vê o sistema espiritual do autor na sua totalidade, a desnudez é mais do que a fase ascética inicial. Mas não podemos branquear que esta é uma fase fulcral para toda a possível vida espiritual, como para a compreensão daquilo que João entende por desnudez na fase do desposório espiritual, momento em que nos encontramos quando ele nos apresenta a imagem do pássaro solitário.

Procurando ainda estabelecer o espaço sobre o qual aclarar o que João compreende por desnudez na fase do desposório devemos dizer que se trata de um conceito espiritual que já estava presente na ascética e na teologia daquele tempo, que o Santo integra no seu sistema e que enriquece com novos significados, ao aplicá-lo a novos contextos. Naquilo que à tradição diz respeito, provavelmente, a referência mais célebre a este conceito é a de São Jerónimo na máxima «nudus Christum nudum sequi» (nu para seguir a Cristo nu), pela qual queria expressar o desejo de fazer-se pobre como Cristo, que se abaixou da Sua dignidade divina, assumindo totalmente a nossa pobre condição.

Também não podemos branquear as raízes bíblicas deste conceito. João da Cruz relaciona-o, sobretudo, com textos de São Paulo. O mais meditado nas suas obras é Ef 4, 22-24, e seus paralelos: «deveis [……] despir-vos do homem velho […] e deveis revestir-vos do homem novo». Assim como o texto de 1Ts 8, onde o Apóstolo nos convida a revestir-nos das armas da luz. E outro texto paulino fundamental é o hino cristológico de Fl 2, sobretudo os versículos 7-8, onde Paulo fala do desprendimento do próprio Jesus: «esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz». Por fim, é necessário referir as exortações de Jesus nos Evangelhos a deixar tudo para O seguir (cf. Lc 14,26.33; 18, 22; Mt 19, 21.29; etc…).

A partir destas referências bíblicas e das meditações em que São João da Cruz as aplica, podemos começar por dizer que o místico compreende por desnudez a ação de deixar tudo para seguir a Jesus pobre e humilde. O seguimento de Cristo será sempre para João o principal objectivo desta prática ascética que, como veremos, se tornará em algo mais. A desnudez é antes de mais uma decisão da pessoa que se autodetermina, seguindo os conselhos evangélicos, a desprender-se de tudo.

Chegados a este ponto não podemos continuar sem citar uma das muitas sentenças de São João da Cruz sobre esta atitude radical: «são poucos os espirituais que alcançam esta perfeita ousadia e determinação nas obras. Embora alguns procedam e actuem deste modo, e outros se considerem nisso muito adiantados, nunca se acabam de perder em certos assuntos, quer sejam do mundo ou da natureza, para realizar as obras perfeitas somente por Cristo, sem olhar ao que dirão ou possa parecer» (CB 29,8). Nestes termos tão exigentes põe o nosso Santo a quita-essência da liberdade total para poder seguir a Cristo desnudado de Si mesmo.

Antes desta proposta aparecer no seu magistério escrito ou oral, ela foi uma experiência vivida intensamente por João. Certamente os escritos breves dão-nos o testemunho da presença da desnudez nos ensinamentos de João desde muito cedo, até mesmo na prática da direção espiritual, de onde vários deles procedem  (um exemplo claro são os Ditos de Luz e amor). Alguns destes escritos foram criados para auxiliar a sua atividade como diretor espiritual. Neste outro caso algumas das poesias são um exemplo, pode não ter sido este o principal motivo pelo qual as criou, mas auxiliava-se delas para passar a mensagem desejada. Num estudo mais detalhado deveríamos fazer uma passagem por todas estas obras menores e ver como este conceito de desnudez surge nelas. Pela falta de espaço, fiquemo-nos apenas com este exemplo expressivo: «Nesta desnudez encontra o / espírito o seu descanso, / porque nada cobiçando, / nada o cansa para cima / e nada o oprime para baixo / porque está no centro da sua humildade.» (Desenho do Monte da Perfeição, estrofe nº 4 da descrição do desenho). Este exemplo que deixamos é um daqueles que o Santo usava no seu magistério oral. Servia-se deste desenho para ajudar aqueles a quem dirigia espiritualmente a compreender a importância da desnudez e do desprendimento para alcançar a meta da vida espiritual: a união com Deus.

Vamos à biografia conhecida do nosso Santo buscar um exemplo onde fica claro que a desnudez antes do seu ensinamento foi uma experiência vivida. João de São Matias, estudante de filosofia e teologia em Salamanca, por não encontrar a radicalidade de vida religiosa na Ordem do Carmo, tinha formado a convicção de mudar-se para a Cartuxa – mais exatamente para o mosteiro de Santa Maria de El Paular  (em Madrid)– quando vai a Medina del Campo para celebrar a sua primeira missa, junto da sua família. É ali que conhece, como já sabemos, Santa Teresa e adere à descalcez. João viveu esta adesão à descalcez como um desnudar-se (cf. S pról. 9). Aderir à reforma da Ordem do Carmo foi para ele assumir o desprendimento total de todas as coisas e até de si mesmo, e assumi-lo como forma de vida. A descalcez, como ele a viveu, é uma orientação para uma vida mais simples e desprendida de todo o tipo de bens, é a aceitação do mais humilde e pobre como estilo de vida. Portanto, podemos afirmar sem reservas que no universo joãocruciano as noções de descalcez e de desnudez apontam para uma mesma realidade: a liberdade total para amar a Deus sobre todas as coisas.

Antes de prosseguir, façamos um rápido resumo. A desnudez como atitude ascética tem como objectivo o seguimento de Cristo. E desnudez e seguimento confluem para uma mesma meta: a união com Deus: «chegar à máxima deznudez e liberdade de espírito, como se requer para a divina união» (S, subtítulo). Agora, antes de entrar no sistema espiritual, deixemos aqui duas definições de amor dadas por São João, onde podemos inferir a grande importância que dá a esta atitude: «O amor não consiste em sentir grandes coisas, mas em ter grande desnudez e padecer pelo Amado» (D 114); «amar é trabalhar em despojar-se e desnudar-se por Deus de tudo aquilo que não é Deus» (2 S 5,7). Portanto, a desnudez como atitude é parte intrínseca da resposta de amor a Deus.

Assentada a centralidade da desnudez comecemos a delimitar o seu significado, para já nas primeiras etapas da vida espiritual, às quais o nosso autor se dedica de forma mais profunda em Subida do Monte Carmelo. Nesta obra podemos encontrar uma definição do conceito nestes primeiros estágios, admiremo-la: «não nos referimos aqui à carência das coisas, porque ela [a carência] não esvazia a alma se tiver delas o apetite, mas falamos da desnudez do gosto e do apetite por elas, pois é ela [a desnudez] que liberta e esvazia a alma, embora as possua. Não são as coisas deste mundo que enchem a alma e a danificam, já que materialmente não entram nela, mas a vontade e o apetite que tem por elas» (1 S 11,1). Torna-se evidente a similitude desta atitude com aquela proclamada por São Paulo, que exorta a possuir como se não possuíssem (cf. 1Cor 7, 30). Tal como se torna evidente que a sua principal preocupação é que o orante se liberte de tudo o que o impede de amar totalmente a Deus.

Esta atitude não é certamente a mais importante em todo o sistema espiritual de João, esse papel é reservado para o exercício das virtudes teologais, que como o próprio nome indica provêm de Deus e devem ser exercidas desde a graça recebida d’Ele. No entanto, para que este exercício possa chegar à sua perfeição faz-lhe falta esta atitude de fundo: «para procurar a Deus é preciso um coração desnudado e forte, livre de todos os males e bens que puramente não são Deus» (CB 3,5). Sem esta desnudez não se pode chegar à meta pretendida: «Mas, enquanto não cessarem [os apetites e gostos desordenados], não há possibilidade de chegar, por mais virtudes que pratique, porque ainda não as conseguiu na perfeição, isto é, ter a alma vazia, despida e mortificada de todos os apetites» (1 S 5,6). Ao assumir este empreendimento o orante coloca-se na atitude certa para cumprir «na perfeição o mandamento do amor que consiste em amar a Deus sobre todas as coisas, o que não se consegue sem a desnudez e vazio de todas elas» (Ch-B 3,51).

São João da Cruz é consciente de que esta é uma exigência extremadamente radical: «parece quase impossível e difícil que uma alma chegue a tanta pureza e desnudez sem ter vontade e afecto de nada.» (1 S 1,11). E volta ele a responder-nos que a motivação deve ser o seguimento de Cristo: «a pura cruz espiritual e a desnudez do espírito pobre de Cristo» (2 S 7,5).

Contudo, este não é apenas um passo inicial da vida espiritual, há de ser uma atitude mantida por toda a vida espiritual, feita de coragem, ousadia, determinação, sobriedade, liberdade, pureza e abnegação. Uma atitude de negação com um enraizamento teologal, se por um lado permite alcançar a liberdade necessária para desenvolver a perfeição das virtudes teologais, por outro, também necessita delas para amadurecer totalmente a desnudez. Pela graça recebida com a fé, a esperança e o amor – virtudes de origem divina – o orante recebe a energia e o impulso necessários para desnudar-se espiritualmente imitando a Jesus nu (cf. 2 S 24,8-9; 3 S 3,6; 16,1). Desnudar-se, então, não é orientar a vida espiritual segundo as faculdades humanas e naturais, ao estilo de um estoicismo radical, é antes potenciar essas faculdades e purificá-las através da vida teologal: hão de os espirituais saber «desnudar[-se] e guiar-se apenas por estas três virtudes» (2 S, 6,7).

Daqui deduzimos que, na compreensão do nosso místico, desnudez e vida teologal são interdependentes, necessitam-se mutuamente para crescer em profundidade: a desnudez necessita da graça da vida teologal, como uma espécie de combustível, e a vida teologal necessita da liberdade alcançada pela densudez para alcançar a sua perfeição. João não ignora a possibilidade de Deus conduzir o orante à união de amor sem que ele assuma de forma radical esta desnudez: «apesar de ser verdade que Deus as leva [as almas à meta da união] – que pode levá-las sem elas [sem a sua adesão total e livre] –, não se deixam elas [as almas] levar; e assim, caminha-se menos, resistindo elas àquele que as leva, e não merecem tanto, pois não aplicam a vontade, e nisso mesmo padecem mais» (S pról. 3). Não obstante, esta atitude de desnudez espiritual, que deve ser assumida livremente pela vontade, há de aplicar-se a todos os bens e experiências, sejam materiais ou espirituais (cf. 3 S 40 1-2).

Num primeiro momento da vida espiritual trata-se de uma atitude ativa, em que o orante implica a sua vontade activamente para libertar-se de tudo o que não é Deus para ficar só com Ele. Esta fase corresponde às noites activas do sentido e do espírito.

Chegado o momento das noites passivas, este conceito de desnudez começa a ganhar novas conotações. Mantém-se o projeto de fundo: desnudar-se para seguir a Cristo nu. No entanto, alteram-se os conteúdos experienciais e a doutrina. Agora, a desnudez designa a ação de Deus sobre o orante que a sofre passivamente. O vocabulário associado à ideia de purificação e libertação mantém-se, porque Deus actua sobre o orante para o libertar das cadeias que ainda o impedem de uma comunhão perfeita com Ele (cf. 3 S, 3,6). Nesta etapa, este conceito começa a surgir com uma outra formulação: “contemplação desnudada”, pelo que tem de ação divina e de aceitação passiva (2 N 4, 1).

Durante as noites passivas dos sentidos e do espírito opera-se uma verdadeira mudança interior no orante, onde a palavra desnudez e afins, já não é suficiente para João, mas deixemo-lo falar: «como o divino investe para a limpar, renovar e divinizar, desnuda-a das afeições habituais e propriedades do homem velho, ao qual se sente muito ligada, apegada e conformada; ele destrói e desarticula de tal maneira a substância espiritual, absorvendo-a numa profunda e densa escuridão, que a alma, perante a visão das suas misérias, sente que se está a desfazer e a derreter em morte de espírito cruel. É como se, engolida por uma besta, sentisse estar a ser digerida no seu tenebroso ventre, sofrendo as mesmas angústias de Job no ventre daquela besta marinha. Porque neste sepulcro de escura morte comvém-lhe estar para a espiritual ressurreição que espera» (2 N 6, 1). A transformação operada é tão grande que o orante passa por uma experiência espiritual de sofrimento incomparável, onde o simples desnudar-se como imagem ou metáfora parece já não fazer sentido.

Nas etapas espirituais posteriores, em que começa a união transformante, como o desposório e o matrimónio espiritual, a desnudez irá ganhar um novo significado, aquele ao qual se refere São João da Cruz quando descreve a quinta característica do pássaro solitário, o ‘não ter cor determinada’. Com a abundância de experiências místicas que se dão nestas etapas, mais ou menos extraordinárias, a desnudez espiritual passa a ser sinónimo da comunicação direta, imediata e interior de Deus com o orante. Assim, João falará de uma «inteligência substancial desnuda» (CB 39, 12).

Nesta fase mística, a desnudez já não se refere a um programa de exercícios espirituais tangíveis, embora a atitude de liberdade absoluta da alma deva ser mantida, mas antes a uma descrição daquilo que se recebe através da pureza da fé, de forma passiva e totalmente gratuita. A desnudez indica, neste momento, o resultado conquistado através da luta activa de libertação perante todo o tipo de gostos e apetites que não são Deus e da resiliência durante a fase passiva de purificação e libertação. A desnudez, podemos então dizer, é um conceito relativo, que não pode ser compreendido sem o elemento unitivo, onde a purificação é colmada com a iluminação.

Podemos concluir esta reflexão sobre a quinta característica do pássaro solitário afirmando que ela encaixa perfeitamente com a definição joãocruciana de desnudez. O qual é um conceito moral usado pelo Santo para referir a prática e a exigência da perfeição cristã (cf. 1 S 5,6), uma condição imprescindível para alcançar a meta da união com Deus. Ao início é um exercício activo de libertação de todo o tipo de cadeias que impedem o orante de alcançar essa meta, passa por uma fase passiva na qual é Deus quem realiza a libertação ainda necessária, e culmina em dom absoluto de Deus, pelo qual Ele se comunica directamente ao orante.

Carlos Vieira

Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem

Partilhar:

Artigos

Relacionados