Fev 21, 2023 | Cultura, Trans(formar)-Se

Professora. Doutorada em Ciências da Educação

O dilema da educação para a cidadania e o direito a uma voz diferente

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Até onde pode o Estado democrático legislar? Pode o Estado intrometer-se na vida privada dos cidadãos e das famílias? O que podem os pais decidir em questões de educação? Qual é a articulação desejável entre família e escola? O que podem, e devem fazer, as famílias católicas face ao actual contexto de (aparente) pensamento único?

Fazer Educação para a Cidadania implica, num primeiro momento, definir o que pode significar o termo “Cidadania”, isto é “a qualidade de agir de acordo com as leis e as regras da Cidade”. Mas de que “Cidade” se trata? Trata-se da “Cidade” que é, no nosso caso, a cultura portuguesa inserida no contexto mais abrangente da cultura do mundo ocidental, apoiado em valores humanistas, universalizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada em 1948. Nessa declaração se reconhece, logo no preâmbulo, “a liberdade de palavra, de crença e de viver a salvo do temor e da necessidade como a mais alta aspiração do ser humano comum”. Portugal, enquanto país que assinou esta declaração manifesta a sua concordância com ela e compromete-se a traduzi-la nas suas leis e normativos. O preâmbulo da Constituição da República Portuguesa afirma que a Revolução dos Cravos “restituiu aos Portugueses direitos e liberdades fundamentais”. É também a constituição que define Portugal como uma república “baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (artº1) e como um estado de direito democrático que visa “a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (artº2º). Neste último sentido, a família, enquanto membro de pleno direito da sociedade e até a base da própria sociedade, tem o direito à palavra, isto é, a manifestar o seu pensamento ou discordância com quaisquer decisões de política educativa que possam lesar o seu direito e dever de educação dos filhos, reconhecido no artº 36º da Constituição. É a mesma constituição que define o papel do Estado na proteção da família (artº 67º, nº 2), como cooperante com os pais na educação dos filhos. O Estado não pode sobrepor-se às famílias e impor às mesmas uma determinada conceção do ser humano, como aliás se encontra determinado na própria Constituição, sobre a liberdade de aprender e ensinar (artº 43º), em que, no nº 2 se determina que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Sabemos que algumas famílias não cumprem adequadamente o dever de educar e muito menos o dever de educar para a vida em comum numa sociedade democrática e pluralista. Por essa razão tem-se atribuído sucessivamente à escola funções que deveriam ser distribuídas por outras instâncias sociais. Quando se organiza um programa político como o de Educação para a Cidadania, pretende-se colmatar essa falha. Porém, ao fazê-lo sem a perceção da diferença entre o que é do domínio público e o que é do domínio privado, confundem-se os papéis da saúde e os da educação, em particular, no caso da educação sexual e da saúde reprodutiva, tocando assim, num espaço que ultrapassa as competências atribuídas ao Estado. Num Estado democrático, em que se presume a autonomia dos indivíduos para reger a própria vida, exige-se a quem define políticas educativas uma extrema sensibilidade sobretudo quando se pretende educar no âmbito da sexualidade e saúde reprodutiva e no âmbito das conceções de género. Estes são campos onde ideologia e filosofia por vezes se confundem. A intromissão do Estado na vida privada levou estados totalitários (como a China) a legislar sobre o número e o sexo dos filhos que poderiam nascer. Além de se ter levado muitas mulheres a cometer crimes ultrajantes contra as crianças, hoje a China é um país onde existem muito poucas mulheres. Também a Europa com a sua política anti-natalista, vê-se hoje conduzida a um envelhecimento assustador e constrangedor para o futuro dos sistemas de segurança social.

Olhando apenas para a questão da delimitação do poder de Estado que se quer democrático sobre a vida dos indivíduos não se encontra forma de legitimar a imposição a estes, em particular na pequena infância, discursos que possam de algum modo lesar a construção da sua identidade e personalidade. Neste momento, o discurso sobre a igualdade de género já se transformou no discurso sobre a liberdade das expressões de género, por força da moda e do domínio dos meios de comunicação social pelos lobbies LGBTQ. Esta é uma discussão multidisciplinar para adultos e especialistas, nomeadamente, na área da saúde mental e das problemáticas da construção da identidade. Não deveria o Estado ser o promotor intencional de processos de inculcação ideológica nas mentes de crianças e adolescentes, apresentando diversos géneros, dando-lhes mais importância que ao sexo biológico, e conferindo-lhes uma pertinência humana que contraria até a evidência biológica dos sexos: feminino e masculino. Para lá dos dois sexos, tudo o resto é construção cultural. Sendo cada um de nós, entre outras coisas, produto de uma determinada cultura, podemos questionar-nos sobre essa construção cultural e transformá-la, mas essa não é a tarefa das crianças. Resultando, muitas vezes, de problemáticas associadas à identidade, a discussão sobre o género não pode ser meramente sociológica ou histórica, deve ser abordada no âmbito da saúde mental, sobretudo quando se entra nos campos que se espraiam para lá do feminino e do masculino. Há uma clara manipulação num programa educativo desenvolvido na região norte do país (PRESSE) acerca de uma “educação integral da sexualidade”, quando aponta “evidência científica” e aí inclui as questões de género, quando não há ainda evidência científica conhecida nessa matéria e tudo recai sobre questões de mera opção pessoal e de liberdade individual, quase sempre associada na vida individual a grande sofrimento, como se tem vindo a testemunhar em ambiente escolar, embora apresentado como se fosse moda, exotismo ou novidade. O grande desafio da “cidadania global”, ou “mundial”, do “cosmopolitismo” é preparar os jovens para as suas responsabilidades, enquanto membros de uma comunidade mundial, para a preservação do planeta Terra e nele, da vida. E quando se fala da vida, fala-se sobretudo de uma vida digna para todos os seres vivos, incluindo os seres humanos, a qual exige uma relação responsável com os recursos do planeta. Refiro-me aos desafios reconhecidos pela UNESCO no documento “Educação para a Cidadania Mundial – preparar os educandos para os desafios do século XXI”, um dos documentos que deu origem à Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC).

Dito isto, considero que a educação para a cidadania é necessária nas culturas humanas: a) como forma de mediação para a convivência pacífica em sociedades pluralistas, que deveria envolver temáticas orientadas para princípios universalistas (a dignidade e os direitos humanos, o respeito pelo outro, a busca da justiça – este último tema encontra-se no Referencial para o Desenvolvimento, e não é tema obrigatório –, a sustentabilidade, a defesa da lei para combater a violência…); b) como pilar do desenvolvimento da participação cidadã na vida pública e na vida política (organização das instituições políticas nacionais e europeias – este tema não tem um referencial), aspeto em que deveria claramente haver um reforço, quando olhamos para o comportamento dos nossos políticos. Não deveria ser o pretexto para a doutrinação em áreas que dizem respeito à consciência, tendo até o dever contrário, que é o de preservar uma construção da personalidade das crianças e jovens em liberdade e plena abertura ao mundo e à vida, na sua pluralidade. Olhando para o caso da família Mesquita Guimarães, a forma obstinada com que está a conduzir a sua recusa pode dar a entender que não acredita na força da educação que dá aos filhos. No entanto, sem o recurso aos tribunais será difícil inverter um rumo na política educativa portuguesa que já tem muitos anos. Já quando eu era aluna no ensino secundário se faziam sessões com a Associação de Planeamento Familiar para nos convencer de que a visão da Igreja Católica sobre saúde reprodutiva não era adequada aos tempos modernos nem aos direitos das mulheres. No que me diz respeito, ouvi, observei, comparei a minha família (de 7 filhos) com outras famílias (com muito menos filhos), refleti e não encontrei noutras mais felicidade, nem mais autenticidade, nem mais liberdade do que na minha família. Estou convencida que a escola não consegue inculcar valores contrários aos das famílias, a não ser que a família não eduque de forma consistente, pois também se educa pelo exemplo. Como defende Albert Bandura[1], no processo de socialização, as crianças aprendem por imitação de adultos que servem de modelos de comportamento, em particular, o pai e a mãe, mas também os adultos de convivência familiar e, claro, os professores.  Ao colocar no centro do debate a educação dos filhos como um direito da família, que não pode ser violado, a família Mesquita Guimarães, está a exercer o seu direito à palavra, à liberdade de expressão, ao exercício do direito cidadão do contraditório, em vez de se demitir como se todos fôssemos prisioneiros de um pensamento único, mais típico das ditaduras. Ao contrário de tantas famílias que parecem, por vezes, inertes ou indiferentes, esta família permitiu à sociedade portuguesa abrir uma janela para a reflexão sobre a legitimidade de determinado tipo de decisões políticas na área da educação e tornar evidente que não há educação neutra em valores, e toda a projeção política sobre educação pressupõe na mente do político, do educador e nos currículos formais aprovados em cada país uma determinada visão do mundo e do ser humano que atravessa a linguagem, o comportamento, o que é dito e não dito. Refletir, questionar e incomodar o universo do pensamento único pode ser hoje a grande missão dos cristãos em sociedades que parecem pluralistas, mas que reagem violentamente a quem pensa de modo diferente do habitual e instalado. A desvantagem de uma educação para a cidadania sem questionamento e baseada em modas ou perspetivas dúbias e sem fundamento seguro, é o risco de atingirmos o contrário do que se pretende. O que se pretende é ter cidadãos mais humanos e conscientes, mais lúcidos e informados, mais proativos, com maior capacidade de pensar criticamente e mais capazes de intervir social e politicamente em prol do bem comum. As estratégias que usamos devem ser coerentes com o que pretendemos e eficazes nessa promoção.


[1] Cf. Bandura, A. Et all –  Teoria Social Cognitiva: conceitos básicos, Artmed: Porto Alegre, 2008. A resenha pode consultar-se aqui –  17_204-205_m338 (bvsalud.org)

Helena Castro

Professora. Doutorada em Ciências da Educação

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