Na peregrinação da humanidade são tantos, e em tantos os contextos, os desvalidos e desanimados que, espiritualmente, os podemos rever como o vale dos ossos ressequidos que o profeta Ezequiel nos apresentou na sua profecia. também aí desce a sabedoria de Deus para desde aí nos chama, alentar e levantar. E só aguarda o nosso consentimento.
Apraz-me começar esta incursão da Sabedoria ao vale dos ossos ressequidos trazendo à memória as palavras de Paulo:
«Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado. Estive no meio de vós cheio de fraqueza, de receio e de grande temor. A minha palavra e a minha pregação nada tinham dos argumentos persuasivos da sabedoria humana, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé não se baseasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus» (1Cor 2, 2-5).
Estas palavras manifestam bem a descida ao vale dos ossos ressequidos que hoje somos convidados a fazer, levados pela mão da Sabedoria. Vamos abrir o nosso livro da vida e reconhecer o agir de Deus.
O estado de morte que se tinha abatido sobre mim parecia que se tornava mais tenebroso de dia para dia. Era como se eu estivesse diante de Deus e entre nós existisse um abismo intransponível, que não permitia que Deus me escutasse, nem me falasse e nem sequer voltasse o Seu olhar para mim. Eu tinha a certeza de estar diante Dele, era consciente de que Ele tinha vida em Si mesmo, mas esta vida não chegava até mim, era a rejeição total. A consciência desta rejeição tornava a morte mais tenebrosa.
Por incrível que possa parecer, durante todo o tempo que vivi o estado interior de morte, despertava às seis para participar na oração da manhã, que era às 6h30m. Depois das pistas de oração abria a Sagrada Escritura e procurava meditar, mas a minha terra era árida e seca e não passava da letra morta das palavras. Ainda não tinha chegado o tempo de escutar o Espírito Santo. Olhando para trás surpreende-me o desígnio amoroso de Deus, que me fez ser fiel ao tempo de oração diária, sem desfalecer, mesmo padecendo a rejeição de Deus.
Num destes dias, em que tudo se tornava demasiado pesado e parecia que iria sucumbir, pedi ao Espírito Santo uma palavra que me ajudasse a entender o que estava a viver. Fiz silêncio, recolhi-me dentro de mim e invoquei o Espírito Santo, abri as Escrituras e comecei a ler. Dizia assim:
«A mão do SENHOR desceu sobre mim; então, conduziu-me em espírito e colocou-me no meio de um vale que estava cheio de ossos. 2*Fez-me passar junto deles, à sua volta, e eis que eles eram muitos sobre o solo do vale; e estavam completamente ressequidos.
3O Senhor disse-me: «Filho de homem, estes ossos poderão voltar à vida?» Eu respondi: «Senhor DEUS, só Tu o sabes.» 4Ele disse-me: «Profetiza sobre estes ossos e diz-lhes: Ossos ressequidos, ouvi a palavra do SENHOR. 5*Assim fala o Senhor DEUS a estes ossos: Eis que vou introduzir em vós o sopro da vida para que revivais. 6Dar-vos-ei nervos, farei crescer a carne que revestirei de pele e depois dar-vos-ei o sopro da vida, para que revivais. Sabereis assim, que Eu sou o SENHOR» (Ez. 37, 1-6).
Quando terminei a leitura percebi que eu era aqueles ossos ressequidos espalhados pela superfície do vale. Nunca ninguém tinha feito uma descrição tão perfeita do meu estado interior. Eu era, de facto, aquele monte de ossos secos e o Espírito Santo tinha feito uma radiografia exata do que estava a viver interiormente. A fidelidade com que o Espírito Santo me tinha feito conhecer aquilo que eu era deixou-me abismada. A minha vida reduzia-se a um monte de ossos secos.
Contudo, a par desta imagem horrenda havia uma pergunta, que era uma janela de esperança: «Filho do homem, podem reviver estes ossos? Respondi: Senhor, tu o sabes». Movida por estas palavras comecei a procurar, em mim, algo que justificasse o voltar à vida. Algo que fizesse Deus pronunciar a Sua Palavra sobre mim, me desse o Seu Espírito e me fizesse reviver. Mas, na realidade, não encontrei nada que garantisse o cumprimento da promessa de Deus na minha vida. Então, voltei a página da Escritura para trás e fui ler o capítulo 36. Ao ler encontrei uma razão para Deus me fazer voltar à vida: a fidelidade de Deus a Si mesmo, ao Seu nome, à Sua santidade.
Dizia assim: «Não é por causa de vós que faço isto, mas por causa do meu santo nome… Quero santificar o meu santo nome, para que eles saibam que Eu sou o SENHOR» (Ez 36, 22-23).
Aqui estava a resposta e a certeza de que Deus iria agir. Já me podia oferecer a Deus, porque o meu nada já poderia servir para algo. Deus poderia manifestar em mim a glória do seu Santo Nome. Estava reduzida a nada, mas Deus poderia manifestar-se através do meu nada. Era uma promessa que me enchia de esperança, porque a terra árida, seca e infrutífera do meu ser não impedia a Deus de fazer de mim um lugar da manifestação da glória do Seu Nome e da Sua santidade.
Nada tinha que cativasse e atraísse o olhar de Deus, pelo contrário, os meus ossos ressequidos apenas poderiam fazê-l’O excluir-me da Sua presença. Deus, porém, em Si mesmo, na gratuidade do Seu Amor voltava a renovar a Sua promessa de amor para comigo, não por mim, mas por Ele. Isto fazia-me acreditar no cumprimento da Sua promessa com alegria e esperar… o alento para o caminho voltou; e era necessário continuar a esperar tudo de Deus.
Liturgicamente estávamos a viver o tempo pascal que se aproximava do fim com o dia de Pentecostes. A vigília da Solenidade começou às 21h e terminou às 6h do dia seguinte. Um tempo longo, em que se apoderou de mim um fogo destruidor. Um fogo que consumia tudo e tudo parecia deixar reduzido a carvão, tal era o estado de infidelidade que a investida do Espírito me fazia sentir. À morte associava-se, agora, o peso da infidelidade. De regresso a casa, pela madrugada, a tormenta parecia que se acentuava ainda mais.
Depois de algum tempo de descanso, dirigi-me à capela. A porta que estava encostada, habitualmente abria-se com facilidade, mas neste dia estava tão pesada que mal a conseguia empurrar. Entrei a custo e comecei a andar pela coxia central para ir junto do sacrário. No entanto, depois de poucos passos de caminho, o sentimento de infidelidade, a angústia da morte e o total desconcerto do sem sentido daquela vida, fizeram-me cair de joelhos, enquanto as lágrimas começaram a rolar silenciosamente. Já não podia suportar mais tal aflição. Era como o publicano, que não ousava levantar os olhos para Deus, mas de coração humilhado e contrito dizia: «Senhor, tem piedade de mim que sou pecadora».
Estava a suplicar a misericórdia de Deus quando dentro de mim escutei que Alguém respondia à minha súplica, e me dizia: «Porque estás triste minha alma e desfaleces? Espera em Deus ainda o hei-de louvar meu salvador e meu Deus». Não sabia de onde vinham aquelas palavras, nem quem as tinha pronunciado no meu interior. Mas elas eram muito claras e trouxeram-me a paz e a esperança, secaram as lágrimas dos meus olhos e deram-me forças para continuar o caminho até junto do sacrário. Esta capela chamava-se: «Trinidad» porque tinha a mão do Pai em tamanho grande, na qual estava incrustado Jesus Crucificado e sobre Ele descia o sopro do Espírito. Subi até junto do altar e dirigi-me aos Três entregando-me à amorosa acção criadora do Pai.
Não me dei conta do que estava a acontecer. Dentro de mim Alguém me tinha falado. Alguém infundia em mim vida nova. Alguém pronunciava a Palavra de Deus. Já não sobre mim mas dentro de mim; e me fazia reviver. De facto, a palavra que me tinha sido dita é um versículo do Salmo 41, um salmo cantado por aqueles que vão ao encontro de Deus e que sentem a sede do Deus vivo.
Na realidade, no meu ser estava a cumprir-se a profecia de Ezequiel e, Deus, apenas, precisava do meu consentimento, para continuar a realizar em mim o “novo nascimento”, o nascimento do Espírito. Diz Ezequiel: «Assim diz o Senhor: Eis que vou abrir os vossos túmulos e vos farei sair deles… Então sabereis que Eu sou Deus. Porei o meu Espírito dentro de vós e haveis de reviver: levar-vos-ei para a vossa terra e sabereis que eu, o Senhor, o disse e o fiz» … «Dar-vos-ei um coração novo e um espírito novo e farei com que vivais de acordo com as minhas palavras e guardeis as minhas leis e preceitos. Então vós sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus».
O vale dos ossos ressequidos é o desafio ao nascimento no espírito, um desafio a que todos estamos chamados. Neste vale, a Sabedoria dava-me o Sopro da Vida para que revivesse e conhecesse o Senhor, já não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Era o nascimento espiritual realizado pelo Sopro da Vida Divina.
O Papa Francisco desafia-nos a conhecer a sabedoria dos ossos ressequidos abrindo-nos à acção do Espírito Santo. Deixemo-nos interpelar pelas suas palavras.
«No Livro de Ezequiel é descrita uma visão um pouco especial, impressionante, mas capaz de infundir confiança e esperança nos nossos corações. Deus mostra ao profeta uma planície de ossos, separados uns dos outros, secos. Um cenário desolador…. Imaginai uma planície cheia de ossos. Então, Deus pede-lhe que invoque o Espírito sobre eles. Naquele instante, os ossos movem-se, começam a aproximar-se e a unir-se entre si, neles crescem primeiro os nervos e depois a carne, formando-se assim um corpo, completo e cheio de vida (cf. Ez 37, 1-14). O Espírito infunde em cada um a vida nova do Ressuscitado, pondo-nos uns ao lado dos outros, uns ao serviço e em ajuda dos outros, fazendo assim de todos nós um único corpo, edificado na comunhão e no amor.
A obra do Espírito em nós é “recordar-nos” Jesus e torna-lo presente a nós e em nós. Podemos dizer que, o Espírito, é a nossa memória trinitária, a memória de Deus em nós. No Espírito tudo é vivificado: aos cristãos de todos os tempos e lugares está aberta a possibilidade de encontrar Cristo. Não o recordar como um personagem histórico. Não. Ele atrai Cristo aos nossos corações e Cristo não está distante, está connosco.
Esta é a experiência que tantos orantes viveram: homens e mulheres que o Espírito Santo formou segundo a “medida” de Cristo, na misericórdia, no serviço, na oração, na catequese. Pessoas que teceram uma longa história de diálogo com Deus, em momentos de luta interior, que purifica a fé.
A primeira tarefa dos cristãos é precisamente manter vivo este fogo, que Jesus trouxe à terra. E qual é este fogo? O Amor de Deus, o Espírito Santo. Sem o fogo do Espírito, as profecias extinguem-se, a tristeza suplanta a alegria, o hábito substitui o amor, o serviço transforma-se em escravidão. Vem-me à mente a imagem da lâmpada acesa ao lado do tabernáculo onde se conserva a Eucaristia. Até quando a igreja está vazia e cai a noite, quando a igreja está fechada, aquela lâmpada permanece acesa, continua ardendo: ninguém a vê, mas arde perante o Senhor. Assim é o Espírito Santo em nosso coração, sempre presente como aquela lâmpada.
Muitas vezes acontece que não rezamos, ou não temos vontade de rezar, ou não sabemos ou rezamos como papagaios, com a boca, mas o coração distante. Este é momento de dizer ao Espírito Santo: Vem, vem Espírito Santo, aquece o meu coração! Vem e ensina-me a rezar, ensina-me a olhar o pai, a olhar o filho. Ensina-me o caminho da fé. Ensina-me como amar, sobretudo ensina-me a ter um comportamento de esperança.
Temos necessidade de invocar o Espírito continuamente para que esteja presente na nossa vida. É o Espírito que escreve a história da Igreja e do mundo. Nós somos páginas abertas, disponíveis para receber a sua caligrafia. E em cada um de nós o Espírito compõe obras originais, porque nunca há um cristão que seja completamente idêntico a outro. No campo infinito da santidade, o único Deus, Trindade de Amor, faz florescer a variedade das testemunhas: todas iguais em dignidade, mas também únicas na beleza que o Espírito quis conferir a cada um daqueles a quem a misericórdia de Deus tornou seus filhos.
Não nos esqueçamos: o Espírito está presente, está presente em nós. Ouçamos o Espírito, invoquemos o Espírito. Ele é o presente que Deus nos deu. Diz ao Espírito: «Espírito Santo eu não sei como é o teu rosto, mas sei que és a minha força, a minha luz, que és capaz de me fazer caminhar e me ensinar a rezar. ‘Vem, Espírito Santo’. Esta é uma bonita oração», concluiu o Papa Francisco.
Aceitemos o desafio do Papa Francisco e deixemos que o Espírito de Deus encha as nossas vidas e nos ensine a viver em comunhão com Cristo e com o Pai.
Rezemos juntos ao Espírito que faz novas todas as coisas.
Oração:
Ó Sabedoria da Cruz,
Que fazes vir sobre nós a força vivificadora do Espírito,
Que penetra as zonas mais escuras do nosso ser
E as enche da glória de Deus:
Eu te dou graças.
Bendito sejas Tu,
Espírito divino, que em nós habitas.
Tu que és fogo purificador e nos enches da tua paz,
Amor que regenera e infunde vida nova.
Tu, que intercedes por nós
Com gemidos inefáveis,
porque não sabemos pedir o que nos convém,
e em nós clamas: Abba, Pai.
Tu, que és consolação
E fazes com tudo concorra para o bem
Dos que amam a Deus,
Segundo a Sua vontade.
Bendito sejas Tu,
Aliança eterna, que Deus sela com cada criatura,
Ao infundir-Te em nós, Espírito de Santidade,
E ao dar-nos um coração novo,
No qual está inscrita a Sua Palavra,
Fazendo de nós o Seu povo
E fazendo-Se Ele próprio o nosso Deus.
Tu, Espírito Santo,
És o Sopro da Sabedoria Divina,
O penhor amoroso da fidelidade de Deus
Para com cada um de nós,
A certeza da realização do caminho de santidade
A que Deus nos chama.
Vem, Espírito Santo e
Enche-nos de Ti.