O tema da beleza é qualificante, ao falar de arte (…). A confrontação entre o bom e o belo gera sugestivas reflexões. Em certo sentido, a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza. Justamente o entenderam os Gregos, quando, fundindo os dois conceitos, cunharam uma palavra que abraça a ambos: «kalokagathía», ou seja, «beleza-bondade». A este respeito, escreve Platão: «A força do Bem refugiou-se na natureza do Belo»[1].
Todo o processo criativo simula a vida.
Aprendi isto fazendo-o e pensando-o em simultâneo, isto é, vivendo e criando. Não recordo de me ter sido ensinada esta afirmação, mas tenho isto tão claro para mim, que é a partir desta premissa que eu gosto de ensinar; não conseguiria ensinar aquilo de que não acreditasse ser verdade. Também não sei se alguns dos meus alunos se irão recordar deste ensinamento: estarão prontos, em maturidade, para reconhecer a verdade deste ensinamento? Talvez não, tanto como eu não estive pronta para o receber se, de facto, o recebi de algum professor – não sei, não recordo. Suponho que esta simulação da vida que o processo criativo faz não seja uma verdade minha senão uma verdade universal.
Mas, retomando, este paralelo entre vida e processo criativo: há um pano de fundo que atravessa todo o processo criativo, como à própria vida, e esse pano de fundo, sendo universal é também profundamente pessoal – a busca. Passamos a nossa vida em busca. Do mesmo modo, no processo artístico a busca está sempre presente; aliás, mesmo depois da obra concluída, a busca permanece. Na vida, também a busca é incessante, mas aqui divergem porque, no término da vida, a busca cessa. Concluo: deu-se o encontro com O que se buscava, talvez a própria Vida se tenha encontrado.
Este pano de fundo que é a busca, não é, ainda arte, nem a vida, mas processo. Contudo, para melhor a pensarmos e nos apropriarmos do conhecimento que daí vier, muitas vezes se experimenta e se materializa o processo dessa busca artística, rabiscando, fazendo, construindo, destruindo e voltando a construir, melhorando e ignorando para mais tarde repescar. É justo que assim seja porque o nosso saber faz-se, como está escrito na entrada da Escola onde dou aulas e, por isso, o fazer experimental materializa-se na coisa feita integrando, profundamente, esse saber no nosso ser; e este saber faz-se, por isso, à medida dos pequenos encontros que se vão dando com aquilo que se busca; são pequenos vislumbres de uma coisa maior que ainda não conhecemos totalmente. Quero com isto dizer que, antes do texto final se fazem muitos rascunhos; antes da obra, o esboço. O que me parece perceber, no estado da arte é que, frequentemente, se tomou a própria busca, isto é., um esboço, um rascunho ou um rabisco como a própria obra. Embora nos deleitemos com os rascunhos e esboços de Leonardo da Vinci, e até os possamos ver com sincero gosto e admiração, este deleite é de uma natureza diferente do deleite que causa a Obra na qual resultou todo o processo. Se tomarmos esta busca primeira como o alicerce sobre o qual se edificará a obra como obra total percebemos que se ficou a meio caminho, ou nem tanto; ficou-se no alicerce que, por si, se cumpre como alicerce, mas não se cumpre como obra total. Seria, talvez, como fazer as fundações para a construção de uma casa e, ficando por aí, afirmar: a casa está pronta, pode ser habitada.
Não, não está, mas sem esta parte feita e, bem feita, não haveria obra.
A busca… A busca…
Então, a busca de quê? A busca do assunto sobre o qual se deseja falar. Essa é a primeira busca; não se sabe o que se busca em primeira instância, apenas se percebe uma abstrata inquietação, um desconforto interior, uma espécie de quebra, de rompimento do qual não se conhece a origem. Terá sido sempre assim?
Creio que sim, que é condição nossa, de todos os tempos, do tempo cronológico, intuirmos tudo o mais que existe além do eu narrativo, isto é, o eu social, aquele eu mais à superfície, o eu que mostramos que, não sendo falso, não é, contudo, total, e aspirarmos a mais do que aquilo que nos é dado ver e, por isso, nos sentirmos em permanente em deficit! Também a vida e a arte aí se tocam pois ambas, a cada momento, tentam completar esta incompletude, esta espécie de deficit.
É preciso seriedade no ato criativo, como na vida, e por isso, a certeza de que nada se vai inventar, mas, des-velar. Tal como o eu estável, permanente e profundo do artista, a verdadeira identidade de cada um de nós já existe desde toda a eternidade, e toda a sua vida é dom para que a des-vele – também na arte des-vela a imagem encarcerada na matéria.
O Amor, portanto, é a maior e mais bela das ferramentas para a descoberta de uma e de outra. Pelo escopro, sem o Amor, nada se retira. Todas as ações, mesmo boas, sem o Amor, nada são. E como se descobre o Amor subterrado no lixo? Retirando o lixo de cima. E como se descobre aquela imagem no bloco de mármore? Retirando o excesso de mármore. Mas há esculturas que se constroem por subtração de matéria e há outras que se constroem por adição de matéria. Por essa lógica, como descobrir, então o que não existe ainda dentro da matéria? – Em ambas as situações, o senso artístico da forma, da composição, das proporções e tensões entre os elementos compositivos, os contrastes, os pesos visuais, as texturas… Em ambas as situações, todo o processo irá manifestar a imagem que resultará no des-velar, no encontro.
Em todos os casos o Amor já lá está, desde toda a eternidade. O que importa aqui é esta união perfeita, amorosa diria mesmo, entre aquela identidade concreta que é o artista, na busca do seu eu profundo, estável e original, aquela identidade que só pelo Amor pode ser revelado e a obra que sai das suas mãos, também ela existente desde toda a eternidade, tornada visível naquele ato de Amor entre artista e matéria. E é pela unicidade daquela identidade que também a obra que sai das suas mãos é única. E é só nestes casos, tão mais escassos do que o que mundo nos diz, que surge a Obra de Arte, por essência única e irrepetível tal como cada um de nós.
Só nesta constelação de ações, concretizada pela vontade humana de autoconhecimento, na humildade, mediado por uma técnica e muito trabalho, é que o Amor pode agir.
Porque Deus não faz sem nós.
E depois de todo este discurso, na dificuldade de pôr em palavras o que é tão óbvio dentro de mim, mas que me propus concretizar deste modo, pergunto-me, e até me envergonho um pouco ao perguntar-me, de que arte, hoje em dia, estou eu a falar? Surgiram-me milhares de perguntas, como sempre. Onde está esta arte nos dias da minha vida? É certo que deixei de procurar, por isso até pode estar a acontecer esta arte sublime nos dias de hoje e eu não estar a dar por isso, mas…
Será que vemos esta sublimidade nas galerias de arte contemporânea? Às vezes parece que estou noutro planeta! Mas não, o planeta é o mesmo donde surgiu Giotto e Caravaggio! E a essência humana também é a mesma! O que é isto de arte contemporânea? Porque é que a dita arte contemporânea já só é feita para ser exposta, artificialmente numa galeria? Em feiras!! Feiras de arte!! Com a afirmação moderna de que tudo vale por si, nada está submetido a nada então, nada tem contexto! Nada serve para coisa alguma porque só serve para si mesma! Para retirar a arte da submissão a uma arquitetura, separou-se tudo de tudo! Para que não houvesse uma hierarquia e tudo ter uma importância própria! Mas todos sabemos que não é assim, e esta desintegração acentua o desconforto em que vivemos.
Tudo está submetido ao Amor, e toda a arte também. Porque tudo é para Sua maior glória! Este é o sentido que não se quer reassumir.
Roger Scruton no seu livro A Beleza[2], a certa altura afirma que estamos a refazer o mundo sem o amor. Não percebi de imediato o sentido mas, com a construção deste texto, fui conduzida, amorosamente, ao entendimento dela. Muitos já o compreenderam antes de mim e muitos irão compreender depois de mim e, talvez, muito outros não irão compreender nunca, mas este descompasso entre nós, humanidade – que Kandisky[3] (1866-1944), no início do século XX já discorria no seu tratado Do Espiritual na Arte[4] – obriga-nos ao diálogo permanente. Deus insiste nesta comunhão e tudo é Graça. Porque parece que, ao invés do tempo nos aproximar da meta, nos afasta e, o caminho parece sempre mais longo e pesado. Contudo, Kandisky, no triângulo que esquematizava o estado espiritual da humanidade e seu descompasso, punha o artista no vértice, logo imediatamente antes de Deus, o artista lúcido, pobre e solitário. Não creio que tivesse a mesma visão nos dias de hoje, com a proliferação de arte e artistas, a sua massificação diria, adensando a base do triângulo porque no topo, esse lugar solitário, hoje em dia, não estará o solitário artista, mas o louco, o que espera no Amor.
[1] Carta do Papa João Paulo ao Artistas, 1999 §3 Vocação artística ao serviço da beleza
[2] Sruton, Roger (2023) – A Beleza, uma muito breve introdução. Guerra e Paz, pág. 168.
Roger Scruton: “Why Beauty Matters?” (Por que a beleza importa? – Legendado) on Vimeo
[3] https://www.youtube.com/watch?v=RPaHQzDVJmg
[4] Kandinsky, Wassily (2006) – Do Espiritual na Arte – Dom Quixote, 7ª edição, pág.29: «A vida espiritual pode ser representada, em esquema, por um grande truângulo dividido em secções desiguais, com a menor e mais aguda no cume. Quanto mais próximo se está na sua base, maiores, mais volumosas e mais altas são as suas partes. O triângulo move-se e avança lentamente; onde «hoje» se encontra o vértice, mais alto, estará, «amanhã», a próxima secção. Por outras palavras, o que «hoje» é compreensível para o vértice mais alto, e que representa um disparate para o resto do triângulo, «amanhã» aparecerá à parte mais próxima com um sentido carregado de emoções e de novos significados. Por vezes, no extremo do vértice mais alto, apenas existe um homem. A sua contemplação é equivalente à sua infinita tristeza, e os que lhe estão próximos não o podem compreender.»