«Cada ser humano é, de certo modo, um desconhecido para si mesmo. Jesus Cristo não Se limita a manifestar Deus, mas “revela o homem a si mesmo”. Em Cristo, Deus reconciliou consigo o mundo. Todos os crentes são chamados a dar testemunho disto; mas compete a vós, homens e mulheres que dedicastes a vossa vida à arte, afirmar com a riqueza da vossa genialidade que, em Cristo, o mundo está redimido: está redimido o homem, está redimido o corpo humano, está redimida a criação inteira, da qual S. Paulo escreveu que «aguarda ansiosa a revelação dos filhos de Deus»[1].
Partimos deste parágrafo da Carta aos Artistas de S. João Paulo II para chegarmos a uma das mais belas manifestações da amorosa pedagogia de Deus que nos conduz a Ele, ensinando-nos de que massa somos feitos: «Palavra que o Senhor dirigiu a Jeremias “Vai à casa do oleiro, e ali escutarás a minha palavra”. Fui, então, à casa do oleiro, e encontrei-o a trabalhar ao torno. Quando o barro que estava a modelar não lhe saía bem, retomava o barro com as mãos, e fazia outro como bem lhe parecia» (Jeremias 18,1).
Esta belíssima imagem dada por Jeremias, revela-nos um pouco da natureza da relação entre Deus e o homem; este gesto do oleiro lembra o outro gesto criador com que Deus, num ato só, de puro amor, criou, insuflou a vida no homem e viu que era belo. Mas em ambos os relatos, tanto o de Jeremias como os do Princípio, (Gn 1, 27-28 e Gn 2-7.18,23) parece que a obra não ficou bem à primeira – lido por alto, em ambas, parece que há um refazer da obra, como que um aperfeiçoamento.
E há, de facto, um aperfeiçoamento da obra. Não por parte de Deus que, Perfeitíssimo, não poderia fazer nada imperfeito, mas porque nos implica a nós mesmos no processo de aperfeiçoamento. A ideia de processo, de caminho, de aproximação vem sempre associada à nossa condição, nunca a Deus.
Gloria Dei vivens homo![2]
A Glória de Deus é o homem e o homem vivo, dizia Santo Ireneu no século segundo. Esta Glória que damos a Deus, damo-la porque Ele nos dá a graça de a podermos dar. Não será para O engrandecer, mas para engrandecer o próprio Homem, a quem Deus deseja glorificar, arrebatando-o à Sua Glória. À plenitude de Deus nada Lhe falta, mas para chegarmos à nossa plenitude, quase tudo falta! Exclamamos, então, juntamente com o salmista: Que é o homem para que te recordes dele, o filho do homem, para que dele cuides! (Sl 8,5). E eu perguntar-me-ei, até ao fim da minha vida: Que amor é este?
Estar vivo é, pois, condição para glorificar a Deus como também nos ajuda a compreender o Salmo 115,17-18:
Não são os mortos que louvam o Senhor,
nem os que descem ao mundo do silêncio;
mas nós, os vivos, louvaremos o Senhor,
agora e para sempre.
De que vida fala Santo Ireneu?
Quando entramos na vida da fé, é todo um novo paradigma: toda a consciência da realidade se expande, se clarifica e ganha sentido. Mas não termina por aí, a vida em Deus é dinamismo puro.
Ecce Homo, Eis o Homem – este grande mistério do Amor. É na medida em que Deus se identifica com o Homem que, em simultâneo, o eleva à sua identificação com Deus do Qual somos Sua imagem e semelhança. É nesta plenitude que somos semelhança Sua, plenitude que não temos, mas que somos convidados a ter fazendo o caminho com Deus, que nos veio buscar, por Jesus Cristo. É por Cristo, com Cristo e em Cristo que nos podemos ir identificando com Deus que, para nos levar a Ele, desceu Ele a nós.
Caminhamos todos para este desígnio e é vontade de Deus que todos lá cheguemos. É quase redundante dizer que o caminho do encontro do Homem com Deus é um caminho percorrido por cada um de nós de modo único e, no processo, é sempre respeitada a nossa liberdade por parte de Deus. É necessário ter esta consciência de modo muito claro: na relação que com Deus vamos estabelecendo, na vontade e na liberdade que constitui a nossa existência, temos que Lhe ir descobrindo o Rosto, o Rosto de Jesus Cristo, porque só amamos o que conhecemos.
Jesus Cristo, o homem-Deus, revela ao homem o próprio homem[3] – é belíssimo este movimento de Jesus. No Mistério da Cruz – Mysterium Crucis – podemos ver a plenitude do homem, na sua máxima miséria, mas também o homem, na sua máxima glorificação, sempre por Jesus Cristo, reconhecendo-nos a nós mesmos na Sua imagem. Quem como Deus!
Como é que o artista na sua sensibilidade intuitiva, no dom profético que lhe é dado (passando a redundância), ajuda a revelar o Rosto de Cristo? É este o apelo que S. João Paulo II faz aos artistas, que sejam propiciadores do Rosto de Cristo.
Busquemo-l’O na arte, mas, na Arte.
Que erro nosso ao tirarmos Deus do centro das nossas vidas! Perdendo o Rosto de Deus perdemos o nosso próprio rosto. A unidade entre Deus e o homem é tão intrínseca que ao excluir, culturalmente, Deus do centro, excluímos o próprio homem do centro! O humanismo cristão sabia que não o poderia fazer. Tanto mais verdade isto me parece quanto mais verifico que nos instalámos no que agora já se chama de ecocentrismo[4], talvez um up-grade cultural do ancestral panteísmo, uma nova mas já velha religião. E como já era antecipado pelo magistério da Igreja, já não vivemos, sequer, no antropocentrismo cultural, muito menos humanismo de qualquer espécie; uma formiga já vale mais do que o homem!
Para fazermos caminho, temos que nos fazer dóceis ao Espírito, como nos explicam as duas passagens, citadas anteriormente, de Jeremias e do Génesis, em que parece que a obra saiu mal, à primeira, das mãos do Senhor. Como poderia isso ser, do Sumo Bem sair alguma coisa mal! Antes, compreendamos, Deus não faz em nós, sem nós mesmos o consentirmos; tal como o barro precisa do oleiro, o qual só permite ser modelado segundo a sua ductilidade, ou docilidade. Deus conta com a nossa vontade e liberdade.
Mantenhamo-nos vivos, segundo Deus, de modo a podermos glorificá-l’O pois, mortos, não O glorificamos nem chegaremos à glória prometida.
Um dia imaginei uma obra de arte em construção perpétua; não teria fim enquanto o seu autor existisse no tempo; a obra estaria terminada no dia em que o seu próprio autor terminasse os seus dias na terra, passando do perpétuo ao eterno. O artista iria ser eu e a matéria prima, o barro: perguntei a quem sabia – É possível manter o barro modelável durante 20/30 anos? O mestre respondeu-me que sim, apenas tinha que cuidar do barro, certificar-me que não secaria, que o amassaria com constância e que o protegeria do ar para não gretar. Muitas coisas poderiam acontecer pelo caminho, mas as condições para a modelação deveriam ser garantidas. Amassar o barro seria, pois, uma constância.
Assim fiz, encomendei o meu peso em barro, transportei-o para um lugar recolhido, preparei uma bancada de trabalho e comecei a trabalhar o barro. O meu peso em barro é muito barro e eu nunca tinha amassado barro. E era necessário mantê-lo modelável. A resistência do barro, logo no início é muito grande e só começa a suavizar à medida que é amassado. Mas o meu peso em barro é mesmo muito barro e surpreendia-me a cada momento, pela ambição a que me tinha proposto. Usava as mãos para amassar o barro, mas as minhas mãos e a força, mesmo que coordenada, de todo o meu ser, continuava a ser pouco. Tal como rezar, amassar o barro, levou-me a conhecer outros desígnios. Quando falamos com Deus, se estamos atentos, ouvimo-l’O com frequência.
Parti o barro em pequenas porções e distribuí-o por muitos porque Deus me disse que fossem os outros a amassar o meu barro, que fossem os outros a “amassar-me” a mim.
É na medida que nos deixamos “amassar” que vamos conhecendo o Rosto de Cristo.
[1] Carta Aos Artistas, 1999, João Paulo II, § 14 https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1999/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists.html
[2] Sto. Ireneu de Lião, sec. II, Contra as Heresias, III,19,1
[3] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22. https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html
[4] ATLANTIKA Revista de Filosofia do Centro Atlântico de Pesquisa em Humanidades (CAPH) Vol. II, no 02, pp. 65-108, 2024 O natural no mundo e perante o homem* Diego Poole Derqui, https://burjcdigital.urjc.es/server/api/core/bitstreams/d62edaaf-5c9f-4823-bd59-fc4109355966/content