Abr 29, 2025 | Cogitando, Cultura

Peregrinação e descoberta em “O Cavaleiro da Dinamarca”

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Toda a peregrinação supõe um passar fronteiras; um ir e um voltar. Mas onde está, porém, o segredo da peregrinação: no caminhar para lá ou no regresso a casa? Qual delas é mais redentora? E a mais difícil? A mais livre de perigos e de tentações? Se a peregrinação obriga a ultrapassar fronteiras, fez o Cavaleiro da Dinamarca verdadeira peregrinação, ele que não ultrapassou a fronteira da palavra dada?

Sophia de Mello Breyner Andresen é um dos vultos maiores da literatura portuguesa contemporânea, abarcando a prosa, a poesia, o teatro e o ensaio, tendo sido premiada com variadíssimos prémios, com destaque para o Prémio Camões (1999), o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de literatura para crianças (1992) e o Prémio Rainha Sophia de poesia Ibero-americana (2003).

Nas suas obras dirigidas ao público infantojuvenil, incluídas nas listas do Plano Nacional de Leitura, nas quais se inclui a obra O Cavaleiro da Dinamarca, a autora manifesta-se grande defensora dos valores humanistas: «Têm especial relevo nas suas obras os valores humanistas, com ênfase nas questões da justiça, da liberdade e da igualdade, decorrentes de uma filosofia cristã, próxima do pensamento franciscano, que também ecoa em muitos dos seus textos» (Ana Margarida Ramos, Narrativa de uma peregrinação: uma leitura de O Cavaleiro da Dinamarca).

Esta dimensão está essencialmente presente nas narrativas encaixadas na história principal, a viagem do Cavaleiro à Terra Santa.

A narrativa começa com a localização da ação na Dinamarca, numa bela descrição marcada pelo ritmo das estações do ano, tendo como ponto alto as comemorações natalícias invernais. Nesse enquadramento, o Cavaleiro, a meio da ceia, surpreende a família com um inesperado anúncio:

«— Vou em peregrinação à Terra Santa e quero passar o próximo Natal na gruta onde Cristo nasceu e onde rezaram os pastores, os Reis Magos e os Anjos. Também eu quero rezar ali. Partirei na próxima Primavera. De hoje a um ano estarei em Belém. Mas passado o Natal regressarei aqui e de hoje a dois anos estaremos, se Deus quiser, reunidos de novo» (Sophia M.B. Andreen, O Cavaleiro da Dinamarca, Ed. Figueirinhas, p.6-7).

Temos, assim, duas importantes informações: a sua ida em peregrinação à Terra Santa e a promessa do seu regresso dali a dois anos, aspetos que marcam toda a narrativa e viagem da personagem: «A narrativa acompanha, assim, o percurso de ida e de regresso a casa da personagem, atravessando vários países e cidades da Europa, dando conta de todas as aprendizagens realizadas, resultados dos inúmeros desafios superados» (Ana Margarida Ramos, idem, p.4).

Note-se que a viagem de ida decorre rapidamente, sem sobressaltos, havendo frequente recurso à elipse e ao sumário, pois a meta da peregrinação estava perfeitamente definida: «Vou em peregrinação à Terra Santa» (p.7)..

Esta vontade do Cavaleiro inscreve-se numa tradição antiga, como o testemunham os casos da Peregrinação de Egéria e o Itinerarium Burdigalensis. Assim, «A peregrinação, que já existe desde a pré-história, é um dos fenómenos culturais e religiosos mais proeminentes e antigos do mundo (EADE & SALLNOW, 1991). No plano histórico, e para falar apenas do contexto do Cristianismo-Catolicismo, as primeiras peregrinações começaram no século IV – data do religio licita, ou seja, do reconhecimento oficial e da unificação do Cristianismo pelo imperador romano Constantino – e tinham como destino Jerusalém (MONTEFIORE, 2011), a Terra Santa, berço e espaço sagrado das culturas judaicas-cristãs e posteriormente islâmica» (in Donizete Aparecido Rodrigues, Caminhar com fé: estudo sócio-antropológico de uma peregrinação ao Santuário de Fátima, Portugal).

Chegado à Terra Santa, o Cavaleiro fez o percurso normal dos peregrinos: «Visitou um por um os lugares santos. Rezou no Monte do Calvário e no Jardim das Oliveiras, lavou a sua cara nas águas do Jordão e viu, no luminoso Inverno da Galileia, as águas azuis do lago de Tiberíade. Procurou nas ruas de Jerusalém, no testemunho mudo das pedras, o rasto de sangue e sofrimento que ali deixou o Filho do Homem perseguido, humilhado e condenado. E caminhou nos montes da Judeia, que um dia ouviram anunciar o mandamento novo do amor.

Quando chegou o dia de Natal, ao fim da tarde, o Cavaleiro dirigiu-se para a gruta de Belém. (..)

Então desceu sobre ele uma grande paz e uma grande confiança e, chorando de alegria, beijou as pedras da gruta.

Rezou muito, nessa noite, o Cavaleiro. Rezou pelo fim das misérias e das guerras, rezou pela paz e pela alegria do mundo. Pediu a Deus que o fizesse um homem de boa vontade, um homem de vontade clara e direita, capaz de amar os outros. E pediu também aos Anjos que o protegessem e guiassem na viagem de regresso, para que, daí a um ano, ele pudesse celebrar o Natal na sua casa com os seus» (p.8-9).

É de salientar o realce dado aos sentimentos, especialmente ao choro do Cavaleiro provocado pela emoção. Na verdade, a peregrinação «é uma viagem simultaneamente espacial-geográfica e ao interior do sujeito; ou seja, é uma sacralização simultânea do espaço e do indivíduo» (LOPES, 1989, cit. por Donizete, ibidem).

Ao contrário da viagem de ida, a de regresso é demorada, pois o Cavaleiro foi desafiado a percorrer um “caminho de descoberta”, ao mesmo tempo que as dificuldades encontradas e “tentações” a que é sujeito põem à prova a sua fé e a fidelidade à sua palavra e aos valores da família, presentes na promessa inicial.

Depois de uma tempestade inicial, que o fez vacilar – «Não voltarei a ver a minha terra» (p.10) –, surge o convite do comerciante veneziano, sugerindo-lhe que desviasse a sua rota para poder conhecer toda a riqueza cultural das principais cidades italianas: «Assim atravessarás o Norte da Itália e conhecerás as belas e ricas cidades cuja fama enche a Europa» (p.11).

Aceite o desafio, depois de Ravena, descobriu Veneza e toda a sua beleza («Nunca o Cavaleiro tinha imaginado que pudesse existir no mundo tanta riqueza e tanta beleza» (p.12), ouvindo a apaixonante história de Vanina e Guidobaldo, onde se afirmam os valores humanos da liberdade e do amor contra os preceitos e preconceitos sociais e familiares.

Neste ambiente, teve o inesperado convite do negociante, verdadeira tentação à sua fidelidade:

«— Não partas. Fica comigo. Associa-te aos meus negócios e estabelece a tua vida aqui. (…)

— Não (…). Tenho de partir. Prometi à minha mulher, aos meus filhos, aos meus parentes e criados que estaria com eles no próximo Natal» (p. 19).

Segue-se Florença, a capital cultural do Renascimento, onde «… aqueles homens discutiam os movimentos do Sol e da luz, e os mistérios do céu e da terra. Falavam de matemática, de astronomia, de filosofia. Falavam de estátuas antigas, falavam de pinturas acabadas de pintar. Falavam do passado, do presente, do futuro. E falavam de poesia, de música, de arquitectura. Parecia que toda a sabedoria da terra estava reunida naquela sala» (p.22).

Depois de ouvir as histórias de Giotto e Cimabué, o grande pintor renascentista e o seu mestre, e de Dante, referido como o maior poeta italiano, e Beatriz (a jovem por quem o escritor se apaixonou e cuja morte prematura o levou à loucura), recebe novo convite, novo teste à sua fidelidade familiar, mas também aqui a sua resposta é firme: «Agradeço-te o teu convite. (…) Mas lá longe, no meu país do Norte, os meus filhos, a minha mulher e os meus criados estão à minha espera» (p.31).

Desta forma, firme nas suas convicções, o Cavaleiro segue o seu objetivo. Contudo, antes de chegar a Génova fica doente, ficando obrigado a um tratamento num convento, o que o impede de chegar a tempo de apanhar o barco para a Dinamarca, facto que o obriga a mudar a sua rota e a atravessar por terra até à Flandres.

Chegado aqui, continuam as suas descobertas do novo mundo, não só pelas especiarias desconhecidas que pôde apreciar, como pelas histórias que ouviu, salientando-se a História de Pêro Dias, navegante português, em que o narrador deixa clara a sua perspetiva anti-racista:

«Do peito do negro e do branco corriam dois fios de sangue.

— Olhem (…), o sangue deles é exatamente da mesma cor» (p.43).

No final, o Cavaleiro é também “tentado” pelo negociante flamengo, que o convida a associar-se aos seus negócios e viagens, o que é recusado com o mesmo argumento: a promessa feita à sua família.

Impedido de dar continuidade à sua viagem por mar, decide ir por terra, mesmo alertado para os perigos daí decorrentes, pois o inverno era já rigoroso.

Para além dos obstáculos atmosféricos, o Cavaleiro terá de enfrentar agora o medo, a desesperança, chegando a pensar que iria morrer («Vou morrer esta noite.») e que não conseguiria cumprir a sua promessa: «Então acordava em sobressalto e parecia-lhe que todas as forças do mundo se tinham reunido para o separar da sua casa e dos seus» (p.46).

Contudo, a sua determinação fê-lo continuar a enfrentar os obstáculos e dúvidas. Mesmo sentindo-se perdido, agarrou-se à sua fé, ancorado na peregrinação realizada, verdadeiro encontro com o sagrado e consigo mesmo, que fortaleceu a sua fé e os seus valores.

Não admira, pois, que a história termine com uma luz a guiar o Cavaleiro até casa (afirmando-se como origem da tradição natalícia de iluminar os pinheiros), sendo, desta forma, recompensado pela sua vivência, fidelidade e perseverança.

José Manuel Reis

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