Mai 20, 2025 | Perspetivas

A Noite Escura, hoje, ainda faz sentido?

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José Alexandre Oliveira

Quem somos nós durante a noite?

À noite, Deus convida-nos a afundar-nos nos seus braços, recordando-nos da nossa vulnerabilidade e mortalidade. Por mais vivas e rebeldes que sejam as nossas potências, paixões e faculdades durante o dia, todas elas se recolhem durante o sono como as águas de um planalto a serem precipitadas e recolhidas num abismo de silêncio e escondimento. O sono é individual e pessoal, é um convite paterno ao descanso de nós mesmos, onde nos esquecemos de nós. É um convite, enfim, que nos humaniza e potencializa para aquilo que fomos criados: ser em pleno criaturas abismadas, plantadas, unificadas e afundadas no Criador. Portanto, é um convite a sermos um só com Deus, passiva, calma e suavemente. Onde nos abastecemos no Seu Amor que nos desperta para a vida de cada dia e para a Vida Eterna.

Com isto, verificamos que a noite enquanto fenómeno natural, convida-nos a refletir sobre uma realidade sobrenatural, pois somos corpo e alma.

Uma das frases favoritas do beato Carlo Acutis era «o essencial é invisível aos olhos» do livro Principezinho, e foi justamente a contemplação desse invisível que levou Carlo Acutis a dizer que «a Eucaristia é a minha autoestrada para o Céu» e que «estar unido a Jesus, esse é o meu projeto de vida». Essa união íntima com Deus através dos sacramentos e da adoração eucarística, para além do Santo Rosário, tem como base o invisível aos olhos naturais, mas Carlo permitiu-se ser guiado pelos olhos da alma. E é justamente sobre esse olhar da alma, que contempla em espírito os mistérios do invisível, que a Noite Escura incide, através daquilo que São João da Cruz denominará como «purificação passiva». É uma dura prova, porém necessária e salvífica, que nos exigirá caminhar na Fé tal como Abraão caminhou outrora confiando exclusivamente em Deus, mesmo quando, humanamente e naturalmente falando, tudo parece concorrer para a descrença e a desconfiança.

Talvez seja por isso que a mãe do Carlo Acutis, em entrevista, sugeriu que o seu filho acreditava que todos nós, que somos batizados, somos místicos; mas que uns desenvolvem mais do que outros. Somos místicos na medida em que nos deixamos ser preenchidos e iluminados pelo Espírito Santo, atravessando as densas trevas deste mundo passageiro e ilusório. Mas também haverá momentos, se Deus assim o quiser, em que até essa única luz sobrenatural que nos guia parecerá ocultar-se. Caminharemos perguntando-nos: onde estás, Jesus? Sinto-me perdido e abandonado por Deus. Onde está Deus? E que noite tão escura é esta?

São João da Cruz, na sua obra Noite Escura, fará leituras interessantíssimas sobre este fenómeno nas vidas de Job, David e Jeremias, ou seja, dos profetas do Antigos Testamento, mas também fornecer-nos-á uma chave de leitura mística dos Salmos. Mas o Novo Testamento também é rico:
Depois de tantos momentos significativos e intensos com Jesus vivo, talvez foi este fenómeno que os Seus discípulos sentiram desde sexta até domingo, após a Crucificação. Um desolador sentimento de abandono, um sábado profundamente angustiante e cinzento, uma tristeza que ninguém poderia curar, exceto o próprio Cristo ressuscitado. Pois para a alma apaixonada, só o Amado pode sarar a ferida que causou. Pois há um lugar no nosso coração que só Deus pode preencher, mais ninguém. E se esse lugar fica vazio, roubando-nos o sentido da existência, só Ele pode preencher e devolver-nos à plenitude.
E assim como os antigos Profetas tiveram de passar pela sua purificação para se tornarem instrumentos mais humildes, dóceis e cristalinos nas mãos de Deus, assim também os Seus discípulos não foram ilibados dessa purificação. O mesmo Pedro que antes fez tão grandes promessas baseadas no seu orgulho, é o mesmo Pedro que mais tarde aprenderá que sem a Graça de Deus nós somente somos capazes de negar, trair e abandoná-Lo; pois sem a Graça de Deus somos nada. Pedro chorou amargamente e reconheceu a sua miséria e impotência, Pedro ficou privado de Jesus e só depois da Ressurreição é que veremos um novo Pedro, desta vez mais humilde e consciente da sua própria fraqueza e vulnerabilidade. É este o caminho da santidade. A Via Estreita que exige de nós o desapego, para sermos leves como plumas do Espírito Santo.
No século I, os discípulos tiveram Jesus encarnado. No século XXI, nós temos Jesus sacramentado. Tanto a carne como o pão eucarístico são uma realidade física concreta, mas ambos nos convidam a uma relação espiritual; ou seja, observamos ambos (pão e carne) com os olhos da alma. Pois quando Jesus perguntou «Vós, porém, quem dizeis que Eu sou?» e Pedro respondeu: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo», Jesus disse: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas o meu Pai que está nos céus» (Mt 16,17). Ou seja, tanto aqueles que acreditaram em Jesus encarnado, como aqueles que acreditam em Jesus sacramentado, foi e é Deus quem revela à alma através do dom da Fé.
Portanto, se os discípulos passaram por essa provação da ausência de Jesus, tomando consciência de que sem Ele são nada, será possível que nós hoje, em pleno século XXI, passemos por semelhante fenómeno?

Na sua obra Noite Escura, principalmente no Livro I, São João da Cruz falar-nos-á dos momentos de aridez durante a oração e a meditação, mas também dos escrúpulos espirituais que submergirão a alma em inúmeras aflições. Pois quando Deus priva a alma das costumeiras consolações e iluminações que tinha quando Deus converteu-a e retirou-a do domínio do mundo, não só é para corrigi-la, mas também para purificá-la dos pecados capitais da gula, luxúria, avareza, soberba, preguiça, etc., que ainda carrega enraizados na sua natureza degenerada pelo pecado e tendencionalmente viciosa. E caso Deus não a purificasse, humilhando-a para torná-la humilde, seriam muito prejudiciais.

Muitos santos passaram por essas dificuldades e um exemplo impressionante é o de Santo Inácio de Loyola na sua Autobiografia. Vejamos alguns excertos:
«Mas, logo depois da mencionada tentação, começou a ter grandes variações na sua alma, encontrando-se às vezes tão desanimado que não sentia gosto nem em rezar, nem em ouvir missa, nem em qualquer outra oração que fizesse. Outras vezes, tudo era tão diferente disto e tão subitamente, que parecia que lhe tinham tirado a tristeza e a desolação, como quem nos tira a capa. E aqui começou a espantar-se destas variações que nunca antes tinha experimentado, e a dizer consigo: – Que nova vida é esta que agora começamos? – ».

E, noutra passagem, sobre os escrúpulos, a aridez e as tentações de desespero e penitências extenuantes:
«Mas, entretanto, veio a sofrer muitos trabalhos de escrúpulos. Porque, ainda que a confissão geral que tinha feito em Monserrate tinha sido feita com muito cuidado e toda por escrito, como ficou dito, contudo, às vezes parecia-lhe que não tinha confessado algumas coisas, e isto causava-lhe muita aflição, porque mesmo confessando aquilo, não ficava satisfeito» (Cap. III, 22).

E por último:
«Estando nestes pensamentos, vinham-lhe muitas vezes tentações, com grande ímpeto, para deitar-se de um buraco grande que havia junto do lugar onde fazia oração. Mas, sabendo que era pecado matar-se, voltava a gritar: – Senhor, não farei nada que Te ofenda –, repetindo estas palavras, assim como as primeiras, muitas vezes. E assim veio-lhe ao pensamento a história de um santo, que para alcançar de Deus uma coisa que muito desejava, esteve sem comer muitos dias, até que a alcançou. E depois de pensar nisto durante bastante tempo, resolveu-se a fazê-lo, dizendo consigo que não comeria nem beberia, até Deus o resolver ou até que visse a morte já muito próxima. Porque se lhe acontecesse sentir-se já nas últimas, de tal modo que se não comesse morreria, então determinava pedir pão e comer (caso ele pudesse, naquele extremo, pedi-lo ou comê-lo)» (Cap. III, 24).

Santo Inácio de Loyola foi um homem profundamente eucarístico, vivendo os sacramentos com muita frequência, pois sentia-se próximo de Jesus e não há dúvidas de que Jesus desejava também essa união divina. No entanto, como o próprio Inácio ensinaria posteriormente aos seus companheiros, toda essa jornada espiritual marcada por dolorosas batalhas e incertezas, servir-lhe-iam para o que denominaria de Discernimento dos Espíritos. Santo Inácio só pôde elaborar e pregar os seus Exercícios Espirituais porque primeiro passou por essa purificação para ajudar os outros no crescimento e amadurecimento espiritual. Também podemos pensar na advertência de Jesus a Pedro no Evangelho: «Simão, Simão, Satanás já vos reclamou para vos joeirar como se faz ao trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos» (Lc 22,31).

O facto de Santo Inácio se sentir cada vez mais envolto em trevas à medida que se aproximava de Jesus Sacramentado, vivendo na Sua Graça, está em perfeita sintonia com a doutrina de São João da Cruz no Livro II (Cap. 5) da Noite Escura:
«No entanto, põe-se uma dúvida: se é a luz divina que ilumina e purifica a alma dos seus erros, como dissemos, porque é que a alma lhe chama noite escura? (…)
Em si, quanto mais claras e explicadas forem as coisas divinas, tanto mais escuras e escondidas se tornam naturalmente para a alma. São como a luz: quanto mais brilha, tanto mais cega e obscurece a pupila da coruja; e quanto mais diretamente se quiser fixar os olhos no sol, mais escuridão produz na potência visual, privando-a de ver, porque excede a sua fraqueza. (…)
Por sua vez, disse David (Sl 96,2): Deus está rodado de nuvens e trevas. Não é que Ele em si esteja assim, mas o nosso pobre entendimento, obscurecido e ofuscado por tão intensa luz, não O consegue ver. (…)»

Esta escuridão produz também um efeito doloroso na alma que é a sensação de que Jesus está ausente. Por mais que O procuremos, não O sentimos. É caso para chorar com Madalena: «Tiraram O meu Senhor e não sei onde O puseram». Embora tão próxima da fonte da Vida, a alma sente-se como que no limiar de um sepulcro, como nos apresenta o Evangelho:

Entretanto, Maria estava de pé junto ao sepulcro, do lado de fora, a chorar. Enquanto chorava, debruçou-se para o sepulcro e viu dois anjos em vestes brancas, sentados um à cabeceira e outro aos pés do lugar onde tinha sido deposto o corpo de Jesus. Disseram-lhe eles: «Mulher, porque choras?». Ela respondeu-lhes: «Tiraram O meu Senhor e não sei onde O puseram». Ao dizer isto, voltou-se para trás e viu Jesus de pé – mas ela não sabia que era Jesus (Jo 20).

Agora, vejamos alguns versos da Poesia de São João da Cruz:
Aonde Te escondeste,
Amado, e me deixaste num gemido?
Qual veado fugiste
Havendo-me ferido.
Atrás de Ti clamei: tinhas partido!
(Cântico Espiritual)

Deus está constante e interruptamente junto de nós, mas nem sempre O sentimos. Mesmo ao nosso lado, nem sempre o reconhecemos como Madalena não reconheceu Jesus, embora estivessem tão próximos. É nesses momentos de provação, em que a Luz Divina incide com mais intensidade sobre nós, que tantas vezes nos sentimos às escuras. E sobre este fenómeno, esta perceção às avessas, escreverá São João da Cruz no Livro II (Cap. 5) da Noite Escura:
«Quando esta divina luz investe verdadeiramente na alma, a sua pena é muito grande, por causa da sua impureza. Quando esta luz pura investe na alma para eliminar a sua impureza, a alma sente-se tão impura e tão miserável que chega mesmo a julgar que Deus está contra ela e ela contra Deus, o que lhe causa grande pena e tristeza, por julgar que Deus a enjeitou. Era este um dos maiores sofrimentos de Job (Jb 7, 20) experimentava, quando Deus o fazia passar por este exercício: Porque me tomas por teu alvo, quando nem a mim mesmo me posso suportar? Mesmo na escuridão, a alma vê claramente a sua impureza por meio desta puríssima luz e reconhece perfeitamente que não é digna de Deus nem de criatura alguma. (…)»

E no capítulo 6:
«É assim que Deus humilha muito a alma, para depois também a exaltar muito. E se Ele não ordenasse que estes sentimentos, quando se avivam na alma, se acalmassem rapidamente, ela morreria em poucos dias; no entanto, estes momentos de íntima vivacidade são intercalados. Por vezes a alma chega a senti-lo de forma tão viva, que até julga ver o inferno aberto e certa a sua perdição. (…)»

Observamos este fenómeno na Autobiografia de Santa Margarida-Maria Alacoque, a apóstola do Sagrado Coração de Jesus, no capítulo 62:
«Uma vez, tendo-me deixado levar de um movimentozinho de vaidade, falando de mim mesma, oh!, meu Deus, quantas lágrimas e gemidos me custou aquela falta! Com efeito, logo que nos encontrámos a sós, repreendeu-me desta maneira e com rosto severo: «Que tens tu, pó e cinza, de que te possas gloriar, se nada tens de teu, senão o nada e a miséria, nem jamais deves perder de vista nem deixar o abismo do teu nada? E para que a grandeza dos Meus dons não te faça desconhecer e esquecer o que tu és, quero que o vejas com teus olhos neste quando». E logo, descobrindo-me este horrível quadro, em que estava em compêndio tudo o que eu sou, fiquei de tal modo surpreendida e com tanto horror de mim mesma, que, se o Senhor me não tivesse sustentado, desfaleceria de dor, não podendo compreender o excesso de tão grande bondade e misericórdia, por me não ter ainda sepultado no inferno, e por me suportar, sendo que nem eu me podia suportar a mim mesma».

No capítulo 10 do Livro II da Noite Escura, São João da Cruz acalmar-nos-á explicando:
«De igual modo se pode pensar acerca deste divino fogo de amor da contemplação. Antes de unir e transformar a alma em si, tem de a purificar primeiro de todos os elementos contrários, extraindo-lhe toda a fealdade e deixando-a negra e escura, parecendo ficar pior que antes, mais feia e horrorosa do que o normal. E tudo isto, porque esta divina purificação anda a remexer todos os maus e viciosos humores, que, de tão arraigados e assentes na alma, ela não conseguia ver e, por isso, desconhecia que tivesse tantos males. Agora são-lhe postos diante dos olhos para os expelir e destruir; iluminada por esta escura luz da divina contemplação, ela vê-os perfeitamente. Apesar de não ser pior que antes, nem em si mesma nem para Deus, ela vê agora em si o que antes não via, e parece-lhe claramente que o estado em que se encontra não é só motivo para que Deus não olhe para ela, mas para a detestar, como acontece agora».

Com todos estes exemplos, torna-se mais fácil agora entender as palavras de Jesus no livro de Apocalipse:
«Porque dizes: “sou rico, enriqueci e nada me falta” – e não te dás conta de que és um infeliz, um miserável, um pobre, um cego e um nu – aconselho-te a que Me compres ouro purificado no fogo, para enriqueceres, vestes brancas para te vestires, a fim de não aparecer a vergonha da tua nudez e, finalmente, colírio para ungir os teus olhos e recobrares a vista. Aos que amo, Eu os repreendo e castigo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te».

Percorrendo a Bíblia, encontramos suficientes fundamentações para a teologia mística de São João da Cruz; entendemos que que é doutrina segura e que, se quisermos ter consciência do quão profunda ainda pode ser a nossa relação com Cristo, é também inevitável. Entendemos que a mesma jornada íntima que Jesus encarnado convidou os discípulos a viver consigo no século I, hoje Jesus sacramentado convida-nos a vivê-la no século XXI. Essa jornada é o caminho seguro para a humildade, para que possamos afigurar-nos cada vez mais com a santíssima Virgem Maria e São José, os nossos pais que também passaram pela dolorosíssima prova de perder Jesus por três dias em Jerusalém – perder o filho e Deus. E aguentar firmes como verdadeiros peregrinos na Fé, na Esperança e na Caridade. Não tenhamos medo se Jesus nos introduzir na Noite Escura, pois será um privilégio dado àqueles que mais amou indubitavelmente: os Seus gloriosos pais e discípulos. Por detrás da tempestade passageira, há um Reino de Luz eterno que nos aguarda. Passemos pela Via Estreita rumo ao Amor, pois como ensinou Jesus à Santa Brígida da Suécia: é caminho largo e agradável para aqueles que O amam (15 Orações de Santa Brígida).

A finalizar transcrevo as palavras de S. Isabel da Trindade, carmelita descalça filha de São João da Cruz, pois oxalá chegue o áureo dia em que também nós, superadas as noites escuras que forem necessárias, possamos dizer em plena liberdade:
Quando a alma chega a acreditar neste «demasiado grande amor» que está nela, pode-se dizer como se referia de Moisés: «era inabalável na fé como se tivesse visto o Invisível».
Ela já não se detém mais nos gostos, nos sentimentos; pouco lhe importando sentir ou não Deus, ou sequer se Ele lhe dá alegria ou sofrimento:
crê apenas no seu amor. Quanto mais provada é, mais a fé cresce, porque atravessa, por assim dizer, todos os obstáculos para se ir repousar no seio do infinito Amor, que já não pode produzir senão obras de amor.
(Santa Isabel da Trindade, O Céu na Terra) 

José Alexandre Oliveira

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