Jun 3, 2025 | Desafios, Sabedoria da Cruz

Carmelo de Aveiro

A Sabedoria preparou a mesa

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A Sabedoria preparou a mesa e saiu a convidar: Vinde já está tudo pronto. É com esta imagem do livro dos Provérbios que hoje contemplamos a Sabedoria e a nossa própria vida. Na realidade, a nossa vida está chamada a ser uma resposta ao convite da Sabedoria.  Diz o capítulo nove do Livro dos Provérbios que a Sabedoria edificou a casa, ergueu sete colunas e dispôs a mesa e saiu a convidar todos aqueles que quisessem gozar da sua companhia, aceitar a felicidade que Ela oferece. A Sabedoria saiu a convidar-nos a comer do seu pão e a beber do seu vinho. O seu convite urge uma resposta. As suas palavras: «Vinde, já está tudo pronto» desafiam a inércia da nossa fé e a lentidão da nossa resposta.

Hoje, vamos sentar-nos à mesa da Sabedoria e comer com ela do seu pão e beber do seu vinho. Neste hoje esconde-se o convite de Jesus: «Eu estou à porta e chamo; se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo». Vamos fazer-nos conscientes de que, neste estar à mesa da Sabedoria, não estamos sozinhos, Jesus é o primeiro a chegar, porque, na verdade, foi Ele que preparou tudo. É Ele que prepara tudo e depois envia-nos o convite.

Vamos abrir o livro da vida e ver que aconteceu a primeira vez que me sentei com a Sabedoria à mesa. Logo nesse dia recebi o maior desafio da minha vida. Quando se trata dos desafios da Sabedoria todos eles são grandes, porque têm a dimensão da eternidade.

Naquela tarde sentei-me para orar. Como habitualmente abri a Sagrada Escritura e pedi ao Espírito Santo que me desse uma palavra de vida para as pistas de oração que tinha que dar à noite. Diante de mim tinha o relato da primeira multiplicação dos pães que Jesus tinha feito, segundo o evangelho de São Marcos (6, 34-44). Transcrevo apenas para o termos presente:

«Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas.
35*A hora já ia muito adiantada, quando os discípulos se aproximaram e disseram: «O lugar é deserto e a hora vai adiantada. 36*Manda-os embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer.» 37*Jesus respondeu: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Eles disseram-lhe: «Vamos comprar duzentos denários de pão para lhes dar de comer?» 38*Mas Ele perguntou: «Quantos pães tendes? Ide ver.» Depois de se informarem, responderam: «Cinco pães e dois peixes.» 39*Ordenou-lhes que os mandassem sentar por grupos na erva verde. 40*E sentaram-se, por grupos de cem e cinquenta.
41*Jesus tomou, então, os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e dava-os aos seus discípulos, para que eles os repartissem. Dividiu também os dois peixes por todos. 42*Comeram até ficarem saciados. 43*E havia ainda doze cestos com os bocados de pão e os restos de peixe. 44*Ora os que tinham comido daqueles pães eram cinco mil homens.»

Comecei a ler o texto em diálogo com Jesus. A primeira pergunta que Lhe fiz foi: O que queres Tu que lhes diga? E como Ele se mantivesse em silêncio, comecei a ler o texto muito pausadamente deixando que o Espírito Santo iluminasse o caminho. Parei perante a resposta de Jesus aos discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer». Aqui percebi que Jesus me dizia: Dá-lhes tu mesma de comer. Ao ver a resposta que os discípulos lhe tinham dado, respondi: Eu sou pobre não tenho com que lhes dar de comer. Pensei que Ele ia resolver a situação, dizendo-me outra coisa; porém, Ele voltou a dizer: Dá-lhes tu mesma de comer. Então perguntei como; como lhes podia dar de comer de maneira a saciar a sua fome. Fiz silêncio e permaneci à escuta. Então o meu entendimento iluminou-se e entendi que Jesus me estava a convidar a ser pão de vida eterna para muitos, tal como Ele. E fui rezando o que era ser pão de vida eterna e Jesus foi-me mostrando que ser pão de vida eterna é fazer da vida um lugar onde a Palavra encarne, para depois oferecer a Palavra feita Carne na minha carne; feita Vida na minha vida, como pão de Vida para muitos. Não um pão qualquer, mas um pão que sacia a fome de Jesus, porque é Jesus encarnado na minha vida, Aquele que se dá. É Jesus que, assumindo o meu corpo, se faz pão para saciar a fome de vida eterna que todos levam dentro de si. É Jesus que, assumindo o meu ser, me faz palavra de vida eterna.  

Ser pão de vida eterna para muitos foi a missão que a Sabedoria me deu e que me faz ser uma Palavra encarnada e lugar da encarnação do Verbo. Este encontro, à mesa, com a Sabedoria impregnou toda a minha existência com um dinamismo novo, um dinamismo eucarístico. A Eucaristia da Vida passou a ser o lugar em que Jesus me converte em pão de vida eterna para muitos.

Jesus quer a minha pobreza; aceita-a para manifestar nela a Sua condição de Filho de Deus e me constituir testemunha do amor de Deus por todos os homens. A este desafio respondi com uma outra palavra de Jesus que se fez minha e que deu forma ao meu dinamismo vital: «Por eles a mim mesmo me consagro para que eles sejam consagrados na verdade. A tua palavra é a verdade».  Esta palavra faz parte da oração sacerdotal de Jesus e o princípio da solidariedade humana. Cristo viveu-o desde a Sua encarnação e, quando fazemos a experiência de sermos palavra encarnada, temos a clara consciência de que é Ele que vem amar em nós; é Ele que continua a assumir o nosso corpo para se continuar a entregar por eles. Não somos nós que nos entregamos, é Cristo que se entrega em nós.

Podemos tornar-nos pão de vida eterna e converter-nos em instrumentos da redenção, mas isto exige a união com Cristo, exige que seja Ele em nós. A solidariedade está em função do resgate. E nenhum de nós se pode entregar sem antes se tornar lugar de encarnação, onde Cristo se faz de novo solidário com cada homem e cada mulher. Não existe outra maneira de colaborarmos com Cristo, para darmos a vida eterna ao seu corpo, senão deixando-nos entregar por Ele, com Ele e n’Ele.

O Papa Francisco desafia-nos a encarnar as três atitudes presentes neste evangelho da multiplicação dos pães. Abramos o nosso coração e deixemo-nos desafiar pela Sabedoria respondendo no concreto da vida:

«Neste acontecimento da multiplicação dos pães podemos ler três mensagens. A primeira é a compaixão. Diante da multidão que o segue e — por assim dizer — «não o deixa em paz», Jesus não reage com irritação, não diz: «Estas pessoa incomodam-me!». Não, não. Mas reage com um sentimento de compaixão, porque sabe que não o procuram movidos pela curiosidade, mas pela necessidade. Mas prestemos atenção: compaixão — aquilo que Jesus sente — não é simplesmente sentir piedade; é algo mais! Significa com-padecer-seou seja, identificar-se com o sofrimento alheio, a ponto de o carregar sobre si. Assim é Jesus: sofre juntamente com cada um de nós, padece por nós. E o sinal desta compaixão são as numerosas curas por Ele levadas a cabo. Jesus ensina-nos a antepor as necessidades dos pobres às nossas. Por mais legítimas que sejam, as nossas exigências nunca serão tão urgentes como as carências dos pobres, que não dispõem do necessário para viver. Nós falamos com frequência dos pobres. Mas quando falamos dos pobres sentimos porventura que aquele homem, aquela mulher, aquelas crianças não dispõem do necessário para viver?

A segunda mensagem é a partilha. A primeira é a compaixão, aquilo que Jesus sentia, e a segunda é a partilha. É útil confrontar a reacção dos discípulos, diante de pessoas cansadas e famintas, com a de Jesus. São diferentes. Os discípulos pensam que é melhor despedir a multidão, para que possa ir comprar algo para comer. Jesus, ao contrário, diz: Dai-lhes vós mesmos de comer! Dois motivos diversos, que reflectem duas lógicas opostas: os discípulos raciocinam segundo o mundo, pelo que cada qual deve pensar em si mesmo; raciocinam como se dissessem: «Arranjai-vos sozinhos!». Mas Jesus raciocina em conformidade com a lógica de Deus, que é a da partilha. Quantas vezes nos voltamos para o outro lado, para não ver os irmãos necessitados! E isto não é de Jesus: isto é egoísmo. Se Ele tivesse despedido as multidões, muitas pessoas ficariam sem comer. Ao contrário, aqueles poucos pães e peixes, compartilhados e abençoados por Deus, foram suficientes para todos. Mas atenção! Não se trata de uma magia, mas de um «sinal»: um sinal que nos convida a ter fé em Deus, Pai providente, que não nos faz faltar o «pão nosso de cada dia», se nós soubermos compartilhá-lo como irmãos.

Compaixão e partilha. E a terceira mensagem: o prodígio dos pães prenuncia a Eucaristia. Vê-se isto no gesto de Jesus, que «abençoou» antes de partir os pães e de os distribuir à multidão. É o mesmo que fará Jesus na última Ceia, quando instituirá o memorial perpétuo do seu Sacrifício redentor. Na Eucaristia, Jesus não oferece um pão, mas o pão de vida eterna, doa-se a Si mesmo, oferecendo-se ao Pai por amor a nós. Contudo, nós devemos frequentar a Eucaristia com os sentimentos de Jesus, ou seja, com a compaixão e com a vontade de compartilhar. Quem se aproxima da Eucaristia sem ter compaixão pelos necessitados e sem compartilhar, não se sente bem com Jesus.

Compaixão, partilha, Eucaristia. Eis o caminho que Jesus nos indica neste Evangelho. Um caminho que nos leva a enfrentar as necessidades deste mundo com fraternidade, mas que também nos conduz mais além desta terra, porque começa em Deus Pai e para Ele retorna».

Rezamos juntos, a oração de Salomão, suplicando a Deus o dom da Sabedoria, para que nos acompanhe em todos os nossos caminhos e dirija os nossos passos:

«Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia,
que tudo criaste pela tua palavra,
que formaste o homem pela tua sabedoria,
a fim de que dominasse sobre todas as criaturas que chamaste à existência,
governasse o mundo com santidade e justiça
e exercesse o julgamento com rectidão de espírito,
dá-me a sabedoria que se senta junto do teu trono
e não me excluas do número dos teus filhos.
Pois eu sou teu servo e filho da tua serva,
homem débil e de vida breve,
incapaz de compreender a justiça e as leis.
Mesmo que alguém fosse perfeito entre os homens,
sem a sabedoria que vem de ti, seria nada.
Contigo está a sabedoria, que conhece as tuas obras,
que estava presente quando fazias o mundo,
e que sabe o que é agradável a teus olhos
e o que é recto segundo os teus mandamentos.
Envia-a, pois, do teu santo céu,
digna-te enviá-la do trono da tua glória,
para que me assista nos meus trabalhos,
e eu conheça aquilo que te é agradável.
Pois ela sabe e compreende tudo
e guiará os meus actos com prudência,
e me protegerá com a sua glória.
Assim, as minhas obras te serão agradáveis».

Ir. Sofia da Cruz

Carmelo de Aveiro

Na realidade, a nossa vida está chamada a ser uma resposta ao convite da Sabedoria.

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