Abr 18, 2023 | Cinzas e pão, Cultura

Oração em tempos de AI

Partilhar:
Pin Share

A primeira vez que ouvi falar do ChatGPT foi a professores. Como poderá imaginar-se estavam preocupados com a sua utilização pelos alunos. Ainda não sei bem o que seja o ChatGPT, mas por agora e, à falta de melhor, direi que é uma ferramenta de dados como só a Inteligência Artificial (AI, sigla em inglês) pode gerir e produzir.

(AI parece-me um perigoso paradoxo que, ademais, nos assedia por todos os lados, mas o mérito dessa consideração parece-me caber mais a outros que a mim.) Ora como todas as ferramentas, esta se bem usada pode ser uma bela extensão da mão e da inteligência humanas, se mal, pode, no mínimo, magoar. Pelo que sei o ChatGPT produz textos. Esta afirmação por si só é uma quase burla, pois é muito mais que isso, mas como por aqui o espaço é curto, deve o leitor ir informar-se algo melhor. Produzir textos é um modo de dizer, pois é um recurso imenso da cada vez mais omnipresente AI nas nossas vidas. Quer-se dizer — perdoando-se-me o plebeísmo — o ChatGPT é um grande contentor de saber, perfeitamente acessível a qualquer um que tenha uma ligação à Internet. (Hummm! Bem: saber, talvez não seja; mas lá que parece, parece. E como alguns parecem tão encantados com a coisa!)

Então, é assim: ao se aceder ao dito contentor, colocam-se lá duas ou três palavras que sirvam de critério, e o contentor de dados devolve-nos um texto escorreito sobre o assunto que se precisa de saber. O lado sedutor da coisa tem a ver com a leveza, a prontidão e o custo zero da execução do exercício.

(Está-se a ver os ganhos da coisa, não está? E os riscos também, certo?)

Pelo que sei aqueles preocupados professores já desistiram de pedir aos alunos para realizarem composições em modo TPC (trabalhos para casa), porque bem sabem que quem os fará é o bendito do ChatGPT que, ao que parece, põe os pontos nos iis, não tem dúvidas sobre onde colocar as vírgulas, e nunca faz dois textos iguais sobre o mesmo assunto! Ah, e submetido a arriscado teste, já passou em três avaliações de níveis distintos do curso de Medicina!

(Não sei onde o sucesso se deu, sei que me passaram a informação como prova da sua assustadora eficácia.)

No início deste ano de 2023, numa reunião de padres, antes da ordem do dia, o mais reguila puxou o assunto à liça. A maioria ignorava-o; eu só o sabia por aquilo que os professores antes me tinham confidenciado. Ora perante o espanto do rebanho de padres presentes – a maioria de meia idade como eu, os demais, septuagenários… – o reguila fez três demonstrações: pediu ao ChatGPt uma homilia para a Festa da Senhora das Candeias, e o computador pespegou-nos uma que não levaria a ler mais do que os tais sete minutos que o Papa Francisco pôs como tabela; depois pediu uma oração, e de lá saiu uma prece pronta a ler; e pediu um texto sobre o Sagrado Lausperene Bracarense e a coisa ficou tão belamente demonstrada que nem da Igreja do Carmo do Fradinho se esqueceu…

(Não sei que pensaram os outros; eu levei uma traulitada e fiquei aturdido.)

Mas há mais. Logo nos dias seguintes ficámos a saber que numa sessão camarária um deputado municipal da nossa cidade fez uma intervenção sobre uma questão premente lendo um texto escrito pelo ChatGPT! Estão a ver a coisa, não estão: a cidade tem mais de dois mil anos; há nela problemas por resolver que se nos achegam desde o tempo de Cristo, e o deputado dá uma de inovador atirando-nos com um tal texto todo futurista! Parece de herói, mas não é.

(Entenda-se: eu até acho graça à patine do tempo, e amo certos quistos da cidade a que já me afeiçoei, mas que saberá de tudo isto o ChatGPT?)

Mas há muito mais; só mais um exemplo: um jornal propõe-nos que a edição seguinte seja toda gerada pelo ChatGPT (escrevo a 4 de abril)! Eu associo um jornal a notícias; e, claro, não prescindo nem de ler textos de opinião sobre isto e sobre aquilo, e outros temas, sobre quejandos e até sobre assuntos estapafúrdios. E leio a página necrológica! Mas que nos preparará o Jornal I para a próxima edição?

(Já veremos, se Deus quiser… Entretanto, termino por aqui as incursões às produções gepetianas e, ansioso, aguardo a tal edição que, obviamente, irei comprar!)

Volto ao que mais me sobressalta: a vida, sobretudo entre os jovens, mas não só, está a virtualizar-se tão rápido que o que menos agora nos faltava era um sedutor instrumento que mais exponencie a nossa inclinação para a virtualidade. Sim, eu sei que nas redes sociais já existe quem tenha o seu avatar, uma espécie de alterego que coexiste e interage com outros numa existência paralela – o metaverso – que sei que existe, mas não frequento, e por demais me sobressalta e me interroga. Não sei bem se a expressão corresponde, mas que o que mais me surpreende e preocupa é esta necessidade de se fugir daqui, tornando real o que não é. Será para fugir à pressão, à dor e à responsabilidade que a existência supõe? Será que esse escape elide as responsabilidades que o frio da realidade nos propõe; e a ser assim, será isso justo e acertado? Será que o cru da vida tal como ela é, e que se nos achega sem filtros, é tão duro e cruel, que muitos se negam a vê-la e a enfrentá-la, que mais preferem viver anestesiados e indiferentes, preferindo, por isso, transportar-se para um mundo ideal inexistente, mas que pelo contrário existe, porque é por alguns criado e sustentado? Como compreender – a coisa existe, a coisa existe… – que um filho, adulto, por sinal, viva tão virtualizado e tão alienado que se esqueça de comer e de tomar banho?; mais: que se esqueça que tem a mãe doente num quarto ao lado do seu; que esta, sozinha, não pode tomar os medicamentos, ou ir à casa de banho; e muito menos aquecer uma chávena de leite e tomá-lo? Como pode ser isso? Será que estamos a descair para bichos ou, perdoai-me, meu Deus, infrabichos porque, afinal, estes demonstram sentimentos que ainda que meramente reflexivos, dão nota de que são seres empáticos pelo menos para com os débeis e os frágeis da sua espécie?

Digam o que disserem: eu preferirei sempre encarar de frente o inimigo seja ele qual seja que se me acerque. Mas para ir ao que, originalmente, cri que deveria vir, honestamente não sei, para já, que inteiros desafios isto da AI coloca à fé e à pastoral da Igreja. Sei, sim, que a fé supõe interpelação, relação, saída, e surpreendente e inaudito encontro pessoal com o Ressuscitado, e caminhada com os irmãos e irmãs. Sei que a fé cristã é dom e supõe da minha e da tua parte, e de todos juntos, uma resposta a uma proposta: vem e segue-me, ide e ensinai.

Não, ninguém pode jamais apresentar-se em nosso nome diante de Deus e falar-Lhe por nós (obviamente não excluo jamais nem a função de intercessão, nem a vicária…); não, não pode, porque cada um é por Ele singularmente interpelado pelo seu nome pessoal, e porque o Filho de Deus morreu de graça para me salvar a mim, a mim, a mim e a ti, que sou, que és, pecador. A fé cristã é pessoal, recorre a mediações e a sacramentos, e tem muito de comunitário; implica sempre o eu e o nós.  Nunca só o um, também sempre o nós, a variedade e a diferença. No âmbito da fé jamais se pode elidir o eu, nunca se poderá diluir o nós. Fale quem melhor souber, mas nunca jamais na vida sacramental o sacerdote se constituiu como a única mediação, canal único da graça, a bitola da interpretação das Escrituras. Nunca ninguém pode substituir a consciência pessoal de alguém, cujo mais profundo centro se apresenta, inclina e ajoelha diante de Deus. E embora presida à fé da comunidade, nunca o sacerdote pode manipulá-la na celebração dos mistérios ou impedindo-a de discernir os sinais dos tempos; antes deve auscultá-los com a comunidade, a fim de, juntos, buscar o acerto do caminho para ir ao encontro do Senhor que vem.

A fé não é desencarnada, é pessoal. Tem cheiro, sarro e patine. É fresca e tem calos, é antiga, com raízes, e sempre nova e renovada como a primavera. Tem a ver com a minha história, o meu percurso, as minhas quedas, os meus sins, os meus votos e reconciliações, e a aferição que faço das minhas dores e das dores do mundo, das alegrias do caminho feito, das esperanças com que se lançam as sementes, e das ânsias por lançar-me sempre para mais adiante. Tem a ver com a tradição que recebi, os jeitos e trejeitos que me entregaram e eu me esforço por zelar e legar. Em comunidade. Enfim, o que por fim, me cabe perguntar é: o que sabe disso o ChatGPT quando me debita textos sobre o que quer que seja: sobre os sussurros de Deus, sobre o rendilhado da alma, suas torpezas e aleijões, mas também sobre a sua aspiração de fidelidade e felicidade? Que poderá saber de ternura, de esperança, de lágrimas, de abraço terno e doce que Deus Pai-Mãe reserva para cada um de nós à nossa chegada a casa? Que sabe de cheiro a pão fresco, de vinho novo, de água fresca e do fogo novo, de azeite puro para as unções?

É óbvio que se lhe perguntarmos nos dirá tudo sobre ressurreição. Tudo, não, que de uma máquina não se espera que tenha a ousadia de sonhar para além das nuvens, para além da espuma dos dias, para além do sonho, para além das dores e das lágrimas. A uma máquina não se lhe pode pedir que tenha fé, que confie, que ouse pedir o que não sabe poder pedir-se, que peça o que ninguém sabe como pedir porque, verdadeiramente, ninguém sabe o que é a ressurreição ou a vida eterna, visto não existirem palavras que as descrevam, mas silêncio que a consinta. Nem tem coração que aspire e diga (nem que seja aos soluços): vinde, Espírito Santo, e ajudai-me a pedir o que eu nunca inteiramente saberei poder pedir nem, talvez, merecer!

Claro que há ressurreição, mas o seu entendimento jamais se nos achegará em modo lengalenga do ChatGPT. Aliás, o que hoje mais há a interiorizar é que estamos feitos por Deus e para Deus, e só Ele nos basta, só Ele nos saciará, só Nele bem descansaremos; e é isso tão verdade que Ele nos fez para Si e o nosso coração anda inquieto enquanto Nele não repousar. Nele e em nada nem ninguém mais.

Ah, e tal, poderão dizer-me, mas haverá algo mais virtualizado que a existência de Deus? Quem nos garante que Deus não é uma criação da mente humana? Certo, aceito o desafio tolo. Ficará, porém, a resposta para outra altura. Por agora, ponho-me de joelhos, fecho os olhos, e desde a lonjura dos tempos caminhando vejo Abraão e Sara. Sãos os primeiros de muitos. De muitíssimos. Talvez para eles fosse mais fofo e ledo ficar em casa — afinal têm os pés e as pernas cansados, mas puseram-se a caminho e não foram defraudados. Corajosos. Confiantes. Nunca, porém, quem está a caminho sai enganado. Olho, então, e vejo aquele indómito par de velhinhos e, contra toda a esperança, sinto-o portador da frescura da bênção que até nós se achegou. Passou de mão em mão, de coração em coração, de tribulação em tribulação. Ah, e se ao longo de tão longo caminho existiram mãos sujas, corações ácidos e maus, mentes perversas! E por tudo ela passou sem soçobrar! E, sim, apesar da tacanhez e da esclerose espiritual que, por vezes, toma conta da alma das sucessivas gerações, a bênção que Deus entregou a Abraão vai achegando-se-nos como a frescura irrenunciável das chuvas sobre o deserto.

Que sabe disto o ChatGPT? Nada. Nada sabe de tortuosidades nem de encravamentos ou de canais da graça. Nada. Nunca poderá ensinar a rezar como Santo Agostinho: «faz o que podes e reza pelo que não podes, para que Deus permita que o possas». Nunca jamais dirá como Tomé: «Meu Senhor e meu Deus!». Nunca como São João da Cruz: «Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim».

Disto sabedor, abri, então, a ferramenta e escrevi ‘oração’. E a resposta foi: «Como um modelo de linguagem, não tenho uma religião ou crença específica, e não sou programado para fazer orações. Posso, no entanto, oferecer ajuda com questões de linguagem ou outras perguntas que possa ter. Por favor, deixe-me saber como posso ajudá-lo».

Segui o conselho e, insistindo, escrevi: ‘pode escrever-me uma oração?’; e obtive o seguinte:

Querido Deus,
eu te agradeço por este novo dia
e por todas as bênçãos que recebo diariamente.
Ajuda-me a ter sabedoria e discernimento
em minhas decisões,
 a ser compassivo e amoroso
com aqueles ao meu redor,
e a cumprir a tua vontade
em todas as áreas da minha vida.
Perdoa-me pelas minhas falhas
e ajuda-me a crescer em direção
à pessoa que Tu queres que eu seja.
Eu oro em nome de Jesus.
Amém.

Tentei novo desafio e digitei: ‘preciso de uma oração’. E obtive o seguinte texto:

Senhor,
peço que me conceda forças e sabedoria
para enfrentar os desafios
que surgirem em meu caminho,
e que eu possa seguir seus ensinamentos
e agir com amor e compaixão
para com o próximo.
Amém.

Acredito que quem me lê acredite em mim; mas saberá alguém dizer-me se estamos todos matrixizados, ou se alguma destas duas orações, ou ambas, saíram de um coração humano?

Partilhar:

Artigos

Relacionados