Professora numa Escola artística

O misterioso artista do universo

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[…] Desejo a todos vós, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com particular intensidade, por essas inspirações criativas. A beleza, que transmitireis às gerações futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna[1].

Durante o período da minha formação artística, nos meus 22/23 anos, estive numa escola artística, na Alemanha. O que me levou lá foi aquele professor, que agora homenageio aqui, não tanto pelas respostas que me deu, mas pelas provocações que me dirigiu, Peter Skubic, artista que eu admirava e com o qual queria aprender. Considerava-o tanto que tudo o que ele dizia eu sorvia com enorme deleite: se eu compreendesse o que ele me dizia, eu acumulava na gaveta dos saberes e fazia uso disso na primeira oportunidade; se eu não compreendia, considerava uma limitação minha, que me propunha superar com o tempo, a procura e o amadurecimento da minha cultura visual e, por isso, punha na gaveta do há de acontecer um dia eu vir a perceber isto…

Uma das coisas que eu mais admirava nele era a capacidade que tinha de, num relance, reconhecer que uma determinada obra tinha uma certa elevação artística e outra não; que uma obra estava cheia de um equilíbrio formal muito apurado e outra não tinha rasgo nenhum de novidade alguma. Recordo-me de que, um dia, lhe perguntei como ele o conseguia fazer com tanta segurança e autoridade, ao que me respondeu: tens de ver muitas, muitas obras artísticas e tens de pensar muito sobre elas; e depois, a pouco e pouco, vais reconhecendo o valor artístico de umas e de outras. Isto era, e é, válido para um certo nível de análise, formal e compositiva, mas eu intuía que não era a totalidade. No entanto, o limite na nossa comunicação era grande – eu era portuguesa e ele sérvio, e falávamos no nosso escasso inglês. Mas guardei esta informação em mim, percebendo que estava aquém do que ele sabia, aquém do que eu entendia e aquém da realidade; e mantive a esperança de que, um dia, chegasse a esse ponto de “sabedoria”.

Por isso, pela incompletude da primeira resposta, outra dúvida se me pôs, para a qual não encontrei nele uma resposta tão imediata. Neste momento, posso formulá-la do seguinte modo:

O que é a beleza na arte? O belo, necessário para a compreensão de uma obra de arte como tal, é mesmo subjetivo? E se é subjetivo, como há concordância entre mais do que uma pessoa sobre a qualidade de um objeto artístico? Se o belo é objetivo, então, quais são os critérios que o estruturam, tanto para criar como para fruir dele? Nunca aprendi isto na Escola, porque, por mais que a História da Arte me diga que não se fazem juízos pessoais para declarar que um objeto artístico é uma obra de arte, também não indica critérios claros, nem o meu professor me ensinou tal. Ou, então, tudo bradava à minha volta e eu não conseguia perceber!

Eu, porém, não conseguia conformar-me à ideia de que a beleza está somente nos olhos de quem vê. Por outras palavras, a realidade do belo não poderia ser eu que a criava, pois, sendo assim, tal realidade seria criada por cada um de nós e, sendo pessoal, passariam a existir tantos belos quantas pessoas existem.  Não se poderia, então, validar quase nada, porque tudo serviria. Sem critérios objetivos, tudo seria belo e também o seu contrário. Percebi, ainda, que era aceite que, se alguém tinha maiores competências intelectuais, era-lhe dado mais crédito e, por isso, mais autoridade para fazer considerações sobre as qualidades artísticas de uma obra. Então, acabei por pensar muito mais sobre tudo isto do que sobre cada objeto artístico que eu via, pois, com cada obra, a minha relação estabelecia-se de imediato.

Ainda sem noção da magnitude das questões que eu punha para mim própria, não encontrando nenhuma outra resposta, senão esta que culturalmente me era dada, sentia-me como num oceano enorme a boiar, sem ancoragem nenhuma. Tudo me fazia crer que eu seria livre para ir para onde eu quisesse. Mas… ir para onde? Não havia trilho nenhum!!!

Então tentei o óbvio: fui para a academia fazer uma licenciatura em História da Arte, porque, se era lá que me poderiam ajudar a encontrar uma resposta, então iria tentar.

Mas esta questão que me inquietava, de facto, só desde há dois séculos, mais ou menos, é que se punha, pois estas referências de belo que eu intuía existirem, já tinham existido, mas estavam postas de lado em nome de uma evolução. Portanto, havia um manancial de conhecimento – aquele que eu buscava intuitivamente – que estava arrumado, arredado, difícil de aceder,  desvalorizado intelectualmente e, por isso, oculto. Na academia, os autores que me apresentavam, que teriam pensado sobre o assunto, eram sempre os mesmos e só punham questões, não davam respostas. Estamos na cultura da problematização, qual adolescência perpétua; questiona-se tudo até à exaustão, mas nunca se dão respostas; responder seria fechar um assunto que deveria permanecer aberto e, como permanece em aberto, ficamos na ordem da opinião pessoal das coisas, não arriscando uma resposta, mesmo que saibamos que é transitória, como a vida. É o aberto a tudo que, na realidade, resulta no encontro do nada. Ensaiar respostas tornou-se muito mal visto e tendemos a crer que, quando encontramos uma resposta, estamos a excluir muitas outras possibilidades.

A certa altura, li o seguinte: Lo bello creado está ya transformado [2]. Esta frase sugeria que o belo era criado a partir da transformação de algo, talvez da matéria, em primeiro lugar. Guardei.

Com o decorrer dos anos, fui refletindo sobre a minha própria experiência: no ato criador, está implicada, desde logo, a transformação da matéria, da matéria física, pelo menos. Isto sempre foi uma realidade muito objetiva para mim e que eu conhecia muito bem, pois a minha techné[3] é, desde há muitos anos, a transformação dos metais em joias. Essa ação em si mesma, já eu a considerava muito bela, mas nunca tinha realizado que a beleza do fazer humano, o domínio de uma matéria a partir de uma técnica poderia estar tão intrinsecamente unida à beleza do próprio objeto. Qualquer técnica, isto é, qualquer fazer humano que implique a transformação da matéria, necessita de ferramentas mediadoras entre o homem e essa matéria, para que surja algo criado. No caso dos metais, esta mediação tem um grau de exigência física muito grande, inesperada até, se nos detivermos na delicadeza e pequena dimensão de uma joia. O ouro entra em estado líquido a uma temperatura de cerca de 10000C, e depois de ligado[4], tem uma dureza muito grande que exige uma força física proporcional à resistência que oferece. Por isso, além dos martelos, bigornas, serras e limas e uma grande panóplia de outras ferramentas de ferro ou aço, junta-se-lhe uma força muscular inusitada e uma ação coordenada do corpo todo: uma joia faz-se com a força coordenada de todo o corpo, além da matéria que a compõe ser mais ou menos preciosa.

Mas a beleza de uma obra não se pode ficar por aqui, pois transcende a técnica, porque é uma experiência que fica com quem a executa e não passa para quem contempla a obra.

A criação de uma joia, neste caso, ao implicar a transformação de uma matéria muito resistente, e que necessita de uma força coordenada de todo o corpo, implicará a transformação de mais alguma coisa? Quando me surgiu esta pergunta, vieram-me logo à memória alguns Salmos e algumas passagens da Bíblia que comparam a purificação da alma humana com a purificação do ouro e da prata, quando se submetem ao fogo de altas temperaturas: Farei passar essa terça parte pelo fogo e purificá-los-ei como se purifica a prata e os provarei como se prova o ouro (Zacarias 13,9); Ó Deus, Tu nos puseste à prova, e nos purificaste como se faz com a prata (Salmo 66,10)[5]. Na verdade, a juntar àquelas ferramentas de peso para trabalhar o ouro e a prata, sem dúvida que há uma dimensão humana que também é posta à prova no cadinho do fogo purificador. A paciência, a perseverança, a determinação, a vontade, a liberdade, o compromisso, a imaginação são algumas outras ferramentas humanas, potências e faculdades da alma, que serão postas à prova e transformadas à medida que a obra nasce. Ocorre-me, então, pensar que poderemos considerar que, a par da transformação da matéria, ocorre também a transformação da própria vida na fornalha da purificação divina – e isto complementa a beleza inicial da transformação da matéria.

Pelo menos estas duas operações belas existem. Ora, isto era válido para qualquer tipo de criação, contudo, é, mais uma vez, uma experiência que fica apenas com quem executa. Isto por si ainda não gera uma obra arte.

Quais são, então, os critérios de que o artista dispõe para criar a beleza que surge a partir destas duas ações belas?

Uma das frases mais icónicas proferidas por Michelangelo e repetidas na academia, é aquela em que o artista diz que fazer uma escultura como a Pietá não tem grande dificuldade, pois o escultor só tem de retirar o excesso de mármore e logo surge o que já lá existia, no interior do bloco de mármore – como aquele anjo que ele conseguiu libertar da pedra à custa de tanto trabalhar sobre ela. Então, pensei eu, se a Beleza já existe, o artista só tem de a descobrir e de a revelar em alguma matéria que a sua techné lhe permita[6]. Sim! Beleza existe e o nosso saber fazer, a nossa habilidade descobre-a e revela-a! Compreendi isto assim que também compreendi que não é o Homem que cria a Verdade, mas que ele apenas a descobre, porque é um inquietado por ela e por todo o exercício de purificação, ao encontro dela, ao longo de toda a sua vida ou em cada momento de íntima graça; do mesmo modo que também não é o homem que cria o Bem, já que foi Deus quem nos amou por primeiro e é a partir d’Ele que conhecemos o Amor.

Com a criação de uma obra bela, acontece o mesmo. Percebe-se, aqui, que não falamos da beleza puramente estética, de uma organização compositiva das formas e das cores, das proporções e das tensões, mas de uma Beleza maior que se é chamado a encontrar na matéria, para ser revelada. É um mistério como isto acontece; este modo de tornar visível a Beleza primeira que o artista nos torna acessível é um mistério que nos transcende, e porque é um mistério, há uma vocação própria para o fazer. Portanto, o fazer artístico não é acessível a todos; porém, já para a sua contemplação, não se põem reservas; será esta para todos, porque a beleza – esta de que agora falamos – não necessita de instrução para ser contemplada.

Para darmos mais um passo neste entendimento, ajudar-nos-ia pensar que a cada símbolo representado corresponde uma certa presença daquilo que é simbolizado[7]. Isto ajudou-me a pensar melhor esta questão: o verdadeiro criador é Deus, que é quem cria por primeiro é Ele quem dá a existência a toda a realidade a partir de Si próprio, sem nada perder. O artista torna visível a criação de Deus, revelando, dando corpo e expressão a essa realidade transcendente, a partir das suas habilidades; é um participador da obra de Deus. O artista, quer crente em Deus, quer não crente (o não crente não desconfia, mas ele próprio é um revelador da obra de Deus!), no final da obra, e perante a beleza que lhe saiu das mãos, raramente consegue sentir-se verdadeiro autor daquela obra. Existe, aliás, um sentimento comum a quase todos os artistas – principalmente aqueles que, inadvertidamente, criaram uma obra de arte: quase todos afirmam que a obra não lhes pertence, que lhes escapou das mãos e que a sua manifestação os transcendeu! Não creio, pois, que estejam a referir-se apenas à sua habilidade em trabalhar a matéria – porque essa saiu-lhes do corpo, mesmo – mas ao modo como alcançaram a forma ideal e tornaram visível a beleza arquetípica.

E, neste sentido, o Papa João Paulo II afirmava, na Carta aos Artistas: O Espírito é o misterioso artista do universo. Na perspetiva do terceiro milénio, faço votos de que todos os artistas possam receber em abundância o dom daquelas inspirações criativas donde tem início toda a autêntica obra de arte.

Na sua resistência à transcendência, não sei se o meu sábio professor, Peter Skubic, terá alcançado alguma vez esta Beleza arquetípica, para a poder revelar ao mundo, mesmo que inadvertidamente, mas tenho a certeza que a intuiu de modo muito particular, e intenso, dada a sua inquietação e trabalho. Pela sua inquietação, foi também contaminada a minha.


[1] Carta aos Artistas, João Paulo II, 1999 – https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1999/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists.html

[2] Lo bello creado está ya transformado – Urbina, Antonio Pedro, Filicalia o Amor a la Belleza, 2008, Ediciones Rialp, pag.164.

[3] Na filosofia da Grécia Antiga , techne ( Grego : τέχνη , romanizado :  tékhnē , lit.  ‘arte, habilidade, artesanato’; Grego Antigo : [tékʰnɛː] , Grego Moderno : [ˈtexni] ) é um conceito filosófico que se refere a fazer – https://en.wikipedia.org/wiki/Techne

[4] Nem o ouro nem a prata se trabalham puros, têm sempre de se ligar com outros metais que lhes vão acentuar certas qualidades físicas, como a ductilidade e a elasticidade.

[5] O crisol é para a prata e o forno é para o ouro, mas o que prova o ser humano são os elogios que recebe.(Provérbios 27,21); Eis que Eu mesmo te refinei, todavia, não como a prata; Eu te provei na fornalha da aflição. (Isaías 48,10).

[6] Cfr. Urbina, Filocalia o Amor a la Belleza, Rialp, Madrid, 2008, pág. 166.

[7] Evdokimov, 2021, El arte del ícono, Teologia de la beleza, Agape, pág. 92.

Desejo a todos vós, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com particular intensidade, por essas inspirações criativas. A beleza, que transmitireis às gerações futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna.

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