Out 8, 2024 | Desafios, Sabedoria da Cruz

Carmelo de Aveiro

A Sabedoria no Monte de Elias

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Da ala do meu claustro aprendi a conhecer Elias como o homem da Sabedoria do Monte. E é curioso que, ainda que para Ele o monte tenha sido o Horeb e para mim a Cruz, encontramo-nos no cimo do monte onde: «Vive o Senhor em cuja presença estou».

Quando nos aproximamos de Elias e percorremos com Ele o caminho da sua experiência de Deus descobrimos que ele é o homem da sabedoria do monte. Uma sabedoria sintetizada numa expressão parca em palavras, mas repleta de mistério e que nos diz o essencial do monte: “Vive o Senhor em cuja presença estou”.  O estar na presença de Deus revela o coração da espiritualidade de Elias e a sua atitude interior fundamental. Podíamos traduzir esta expressão da seguinte maneira: Deus é o meu único Senhor; escolhi-O só a Ele e Ele basta-me; estou ao Seu lado, oriento-me em tudo por Ele, sou Seu servo, escuto-O cumpro o que Ele quer, realizo plenamente a sua vontade.

Da sabedoria de Elias, no monte, quero destacar os dois traços mais atraentes e desafiantes: o zelo e a solidão espiritual. O zelo entendido como a graça de Deus que anda à procura dum coração puro para entrar, ou se quisermos, como a vida de Deus que vem à procura de Elias para nele morar. E a solidão espiritual como condição para estar sempre na presença do Senhor, isto é, para ter sempre essa luz interior, que permite ver a Deus.

Para Elias, a sua vida é modelada pelo respeito interior Àquele Senhor que Ele decidiu servir com todas as suas forças, com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua mente e todo o seu espírito. A sua atitude é uma atitude de adoração, de oferenda de si mesmo, de reverencia e dedicação.  É a atitude do zelo enquanto acolhimento pleno da graça que Deus lhe oferece.

Também é no monte que Elias escuta “o murmúrio da brisa suave”.  Se, por uns instantes, paramos no cimo dum monte a contemplar o nascer do sol, longe de qualquer ruido humano, escutamos o murmúrio suave do acto criador de Deus e podemos até chegar a sentir o movimento do amor criador a invadir-nos a alma e a envolver-nos amorosamente nas entranhas maternas de Deus, quero dizer, a dar-nos vida. Esta experiência evoca-nos aquele momento em que Deus pela brisa da tarde descia ao jardim para passear (Gn 3,8) e aí falava com Adão, porque “as suas delícias eram estar com os filhos dos homens”. Estamos diante de um Deus que vem, que se aproxima e fala suavemente uma Palavra que é criadora, que é dadora de vida.

Voltemos de novo ao cimo do monte onde se escuta “o murmúrio da brisa suave”, que é o mesmo que dizer, onde se escuta “o amoroso acto criador de Deus”, e perguntemo-nos o que é que de facto escutou Elias, o que é que de facto é o murmúrio da brisa suave. Nada mais nem nada menos que o Verbo de Deus Pai. Elias escutou o Pai a pronunciar o Verbo na suavidade dum murmúrio, quer dizer num momento gerador de vida. A “suavidade do murmúrio” é o momento de infundir a própria vida divina em Elias, que se converte em brisa, isto é, inalação de ar divino, inalação do hálito de Deus. O Espírito de Deus é brisa. Elias escuta o Pai a pronunciar o murmúrio do Verbo, na brisa suave do Espírito, que lhe infundiu vida nova.

Uma vez situados no monte de Elias, vamos agora, abrir o livro da nossa vida, com a consciência de que a nossa experiência é como a de Job: «antes conhecia-te de ouvir falar de ti, mas agora vêem-te os meus pró­prios olhos» (Job 42,5).

Num dos dias em que subia o pequeno monte de santo Elias, chamado assim pelo vento que ali se faz sentir, onde tínhamos o estendal da roupa, o Espírito Santo começava a explicar-me a minha realidade desde as pequenas coisas da vida. Foi o primeiro dos muitos momentos em que Deus me explicava o Seu Mistério dentro do meu, a Sua história dentro da minha história, desde o real da vida.  As cordas da roupa eram muitas e estavam presas a vários pinheiros e o vento intenso fazia com que a roupa andasse de um lado para o outro sem parar, até estar completamente seca, em pouco tempo. Quando começamos a tirar a roupa da corda percebi que: aquela corda era o fio da minha vida; o pinheiro que a sustentava firme e capaz de suportar o peso de muita roupa era Deus Pai; as molas que seguravam a roupa à corda eram Cristo. A roupa era cada pessoa, era eu, e o vento era o Espírito Santo que soprava forte para que a roupa atingisse depressa a temperatura ideal, de forma a se libertar de toda a humidade, de todos os maus cheiros e bactérias e fosse plenamente aquecida pelos raios purificadores do sol, que passavam por entre os ramos dos pinheiros.

Não demorou muito a que o Espírito Santo me recordasse as palavras de Jesus a Nicodemos: «O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito» Jo 3.  O Espírito Santo estava a conduzir a minha vida e a fazer-me nascer do alto. Estava a nascer do Espírito e a minha terra a converter-se em terra sagrada. O Filho do Homem tinha sido levantado da terra para dar a vida eterna a todo aquele que nele acreditasse e eu começava a receber a vida eterna.

«Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu Filho único para que todo o que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). A vida eterna que fui recebendo foi o que tornou a minha terra em ‘terra sagrada’ e com o passar do tempo e a experiência de que Vive o Senhor em cuja presença estou, pude descobrir os três traços da beleza divina que Deus imprimiu na minha alma:

O conhecimento de que Deus é meu Pai – que sou palavra dita por Ele a cada instante e que por isso sou ‘gerada’ no Verbo Eterno enquanto ‘lugar/espaço’ de nova encarnação. Neste caminho de ser gerada no Verbo e de ser palavra dita pelo Pai está subjacente o testemunho que o próprio Pai dá do Seu Filho: «Tu é meu Filho eu hoje te gerei».

Cristo, o Verbo Eterno do Pai, é meu Esposo –
« 2O meu amado desceu ao seu jar­dim,
ao canteiro dos aromas,
para apascentar nos jardins
e para colher açucenas.
3Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim,
ele é o pastor das açucenas.»
Ct 6, 2-3

Se o meu jardim é a minha alma, o meu Senhor imprimiu o Seu rosto na minha alma e deu-se-me como minha verdade. Tal como Se entregou pela Sua Amada Igreja para a apresentar a Si mesmo sem ruga, nem mancha mas santa e imaculada, assim se entregou por mim para me fazer sua e me entregar a Si mesmo segundo a Sua condição.

Sou discípula do Crucificado-Ressuscitado –

«Já não vos chamo servos, mas amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai». Cristo revela-me a intimidade de amor com que Ele e o Pai se amam e que se converte na força vivificadora da Sua Palavra na minha vida.

Ser ‘terra sagrada’ de Deus é viver o movimento do amor que confirma que o Verbo Eterno nos envolve com Aquela corrente que arrasta para o Seio de Deus e que faz com que a nossa terra seja terra de Deus porque «ouvimos, vimos com os nossos olhos, contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós; o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. 4Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa.» (1Jo 1,1-4).

Esta corrente que arrasta para o Seio de Deus é a confirmação a todo o nosso ser do nosso novo nascimento, porque vive o Senhor em cuja presença estamos.  Esta corrente é de facto murmúrio suave de Deus em nós, em adoração constante, em louvor e jubilo transbordante. É este murmúrio divino em que o Espírito de Amor me invadia e se apoderava do meu interior, rezando em mim de tal forma que tudo se convertia num canto de louvor e adoração ao Deus três vezes Santo. A sua voz ecoava em mim como se fosse um coro de muitas vozes que enchia uma grande catedral. Era um jubiloso canto de adoração ao Santo dos Santos.  E isto nos mais variados momentos e circunstâncias da vida. Na faculdade, nas viagens, nas tarefas de casa, na contemplação da natureza, e tudo porque, de facto, Vive o Senhor e se nos dispomos a viver na Sua presença, Ele invade-nos com a Sua própria vida e tudo se converte em “murmúrio da suave brisa”.

Viver na presença de Deus é o desafio da sabedoria do Monte de Elias. O desafio que Elias nos faz a todos. O Papa Francisco ao falar-nos do profeta Elias, fala-nos dele como o homem de Deus e desafia-nos a fazer como Eliseu, o discípulo do profeta, a cobrir-nos com uma parte do manto do profeta. Diz-nos o Santo Padre:

«A Escritura apresenta Elias como um homem de fé cristalina: no seu próprio nome, que poderia significar “Javé é Deus”, está contido o segredo da sua missão. Será o primeiro a ser posto à prova e permanecerá fiel. Ele é o exemplo de todas as pessoas de fé que conhecem tentações e sofrimentos, mas não deixam de viver à altura do ideal para o qual nasceram.

A oração é a seiva que alimenta constantemente a sua existência. Por esta razão, é um dos personagens mais queridos à tradição monástica, a ponto que alguns o elegeram pai espiritual da vida consagrada a Deus. Elias é o homem de Deus, que se levanta como defensor da primazia do Altíssimo. No entanto, também ele é obrigado a enfrentar as próprias fragilidades. Na oração acontece sempre isto: momentos de oração que sentimos que nos animam, até de entusiasmo, e momentos de prece de dor, de aridez, de provações. A oração é assim: deixar-se levar por Deus e deixar-se inclusive flagelar por situações negativas e por tentações.

Elias é o homem de vida contemplativa e, ao mesmo tempo, de vida ativa, preocupado com os acontecimentos do seu tempo, capaz de se lançar contra o rei e a rainha, quando eles mandaram matar Nabot para se apoderarem da sua vinha (cf. 1 Rs 21, 1-24). Quanta necessidade temos de crentes, de cristãos zelosos, que ajam diante de pessoas que desempenham responsabilidades de dirigentes, com a coragem de Elias, para dizer: “isto não se deve fazer!”. Precisamos do espírito de Elias. Deste modo, ele mostra-nos que não deve haver dicotomia na vida de quantos rezam: está-se perante o Senhor e vai-se ao encontro dos irmãos aos quais Ele envia. A oração é um confronto com Deus e um deixar-se enviar para servir os irmãos. A prova da oração é o amor concreto ao próximo. E vice-versa: os crentes agem no mundo depois de terem, primeiro, silenciado e rezado.

As páginas da Bíblia sugerem que também a fé de Elias progrediu: ele cresceu na oração, aperfeiçoou-a pouco a pouco. Para ele, o rosto de Deus tornou-se mais nítido ao longo do caminho. Até atingir o seu ápice naquela experiência extraordinária, quando Deus se manifestou a Elias no monte (cf. 1 Rs 19, 9-13). Ele manifesta-se não na tempestade impetuosa, não no tremor de terra nem no fogo devorador, mas no «murmúrio de uma leve brisa» (v. 12). Ou melhor, uma tradução que reflete bem aquela experiência: um fio de silêncio sonoro. É assim que Deus se manifesta a Elias.  É com este sinal humilde que Deus comunica com Elias, que naquele momento é um profeta fugitivo que perdeu a paz. Deus vai ao encontro de um homem cansado, de um homem que pensava ter falhado em todas as frentes, e com aquela brisa leve, com aquele fio de silêncio sonoro faz voltar ao seu coração a calma e a paz.

Esta é a vicissitude de Elias, mas parece escrita para todos nós. Em certas noites podemos sentir-nos inúteis e solitários. É então que a oração virá e baterá à porta do nosso coração. Todos nós podemos aceitar uma parte do manto de Elias, como o seu discípulo Eliseu aceitou metade do manto. E mesmo que tivéssemos feito algo de errado, ou se nos sentíssemos ameaçados e apavorados, regressando a Deus com a oração, voltarão também como que por milagre a serenidade e a paz. Eis quanto nos ensina o exemplo de Elias.»

Terminemos subindo ao Monte e rezando juntos:
Ó Pai, Tu,
Que nos fazes subir ao monte
Para estar a sós conTigo
E nos falares ao coração,
Dá-nos, como a Elias, o desejo de percorrermos
O caminho da pureza da fé e
Nos deixarmos guiar pela luz interior da Tua Presença;
Dá-nos a saborear o gosto da solidão espiritual
Para buscarmos sempre a Tua companhia e
Vivermos na Tua Presença;
Faz-nos descobrir o zelo como:
abertura total à graça que diariamente nos ofereces,
docilidade ao murmúrio suave da Palavra
que pronuncias sobre nós,
disponibilidade para nos deixarmos mover
pela leve brisa do teu Espírito de Amor.
Que o monte da Sabedoria,
Que diariamente nos determinemos a subir
Seja o de vivermos na Tua presença,
Descobrindo-nos como “terra sagrada” onde Tu vives
E nos chamas a viver em comunhão de Amor contigo.
Pai,
Que a nossa vida seja o monte do encontro contigo,
Onde escutamos o murmúrio suave da Tua voz
E nos deixamos invadir pela alegria da fé
Que nasce da experiência profunda de que:
«Vive o Senhor em cuja presença estou».
Amen.

Ir. Sofia da Cruz

Carmelo de Aveiro

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