Depois de observar os resultados das eleições europeias e de ouvir comentários de pessoas provenientes de diferentes quadrantes de pensamento emergiram dentro de mim, duas ideias principais: a primeira é que uma viragem à “Direita” é entendida como um retrocesso por um largo espectro de pensadores que se autoconsideram como “liberais”; a segunda é que a colagem a entre Direita e Extrema-Direita foi, muitas vezes, apresentada como uma inevitabilidade, fazendo confluir nesse grande chapéu da “Extrema Direita” perspetivas políticas muito diversas e posicionamentos perante a sociedade, a humanidade e a cultura, também eles muito diferentes. Não são, por exemplo, comparáveis a “extrema direita” italiana e a francesa: as suas motivações e valores são distintos.
Enquanto cristãos, e perante o desafio de deslindar as intenções de tantos fazedores de opinião, que muitas vezes confundem mais do que elucidam, urge retomar sempre as lições de Jesus sobre os caminhos que devemos percorrer. A participação dos cristãos na cultura e na política será tanto mais importante quanto mais lúcida e fiel ao Evangelho conseguir ser. E a condição base para se ser fiel é o conhecimento dos próprios Evangelhos.
Ser cristão não se compagina com ser de “extremos”, a não ser, talvez, de um extremo amor. Todos os extremismos são perigosos para as sociedades, tanto à “direita” quanto à “esquerda”, pois induzem a ideia de que há apenas uma única forma de pensar a vida humana e social, uma única forma de fazer cultura e política, um único modelo de humanidade e que para o atingir é legítimo recorrer à força. Daí até à legitimação da perseguição, da tortura, da discriminação e da eliminação do que é diferente é um passo. Foi o que aconteceu com o Nazismo (Nacional Socialismo) e com o Stalinismo. Destes extremismos, curiosamente inspirados em ideais de esquerda, o Nazismo passou, pela sua associação com o Fascismo, a ser olhado como um extremismo de direita. Assim, a passagem de uma ponta para a outra não foi impossível, mostrando como efetivamente, parecendo opostos, estes extremos têm muito em comum. Seja qual for o quadrante, qualquer deles pressupõe o exercício de um poder totalitário, exercido com recurso à violência explícita para reprimir tudo o que ameace pô-lo em causa. Ser cristão não é compatível com este tipo de mundividência, logo à partida porque o próprio Jesus Cristo, rejeitando todas as formas de violência, foi uma pessoa altamente crítica face às formas de dominação do seu tempo, quer se tratasse do âmbito religioso ou de perspetivas sobre a relação das pessoas entre si e com a sociedade.
Um dos problemas da propaganda política dos circuitos extremistas é que ela é estruturada para nos levar a construir raciocínios simplistas, superficiais e cegos à complexidade do real tão problemático que nos inquieta, quer se trate de injustiça, corrupção ou falta de visão. Os extremismos, por norma, elegem uma entidade, raça ou instituição como “bode expiatório” para poder justificar a defesa das atrocidades que pretendem implementar.
Edith Stein apercebeu-se muito cedo das consequências da propaganda Nazi e procurou combatê-la abertamente. Hoje somos chamados a estar igualmente atentos a discursos com estas características para não embarcar em decisões cuja essência é contrária à perspetiva cristã, que é aberta, dialogante, construtora de pontes, multilingue e capaz de abrir portas e janelas para que as diferenças culturais e mentais não sejam uma ameaça à autêntica paz e ao desenvolvimento entre pessoas, comunidades e povos.
Neste momento, a Europa atravessa um período conturbado do ponto de vista político, com a ascensão de movimentos de “extrema direita”, como se pôde ver pelos resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu, com impacto especial na França.
Perguntamo-nos: o que pode ter causado estas alterações na escolha dos eleitores europeus? Da minha perspetiva cristã, trata-se de uma reação veemente dos povos europeus a um conjunto de decisões políticas e a um certo tipo de ideologia social, claramente originária da ala dita “moderada”, que tem dominado o pensamento à escala global, com a qual os europeus não se identificam. A até aqui mansa e silenciosa mudança social e mental posta em marcha por este pensamento “moderado”, tornou-se ultimamente mais agressiva, sobretudo no que toca às questões da chamada ideologia de género, procurando impor uma agenda ideológica que, sob a capa de uma abertura para a defesa do direito individual à escolha da identidade, tem expandido uma visão do ser humano como um ser híbrido, com uma identidade fluida, com um sentido existencial variável. Com essa visão a esmagadora maioria dos europeus não se identifica porque os valores europeus têm nas suas fontes o cristianismo com uma antropologia inteiramente diferente.
Dada a exacerbação do relativismo, que tal perspetiva preconiza, em todas as esferas da vida humana, as decisões políticas da autoproclamada ala “moderada” tornam-se extremas no que respeita à violação na prática de alguns dos mais sagrados direitos humanos: o direito à habitação, a um salário digno, à educação, à saúde, à segurança. Já são muito poucos os que conseguem alugar ou comprar uma casa nas cidades, porque a política ultraliberal levou a um “boom” de preços que tornou as casas inacessíveis ao cidadão comum. Não precisamos de analisar o fenómeno à escala global. Basta olhar para o que está a acontecer ao Sistema Nacional de Saúde: a mesma área política que o criou rendeu-se à pressão do capitalismo selvagem, contribuindo para a derrocada quase total de uma das maiores conquistas da democracia. Isso aconteceu graças à liberalização dos vínculos laborais e ao aumento sucessivo da precaridade desses vínculos, dando à iniciativa individual um papel incompatível com a necessária responsabilidade social. Não se pode exigir a um médico tarefeiro responsabilidade na formação dos seus colegas mais novos, por exemplo. Tudo acontece em nome de uma suposta liberdade exercida autorizadamente sem a correspondente responsabilidade. A contradição nos termos é tal que, no final, a liberdade de cada um, numa situação de igualdade teórica perante a lei, é abafada pela liberdade de alguns, criando-se as mais variadas situações de desigualdade. A Ideologia “moderada” concretizada em decisões e ações políticas nada moderadas, gera as injustiças que se pretende combater e é o ingrediente principal que fez alterar o sentido de voto dos europeus nas últimas eleições. E à custa deste clima mental crescem os partidos parasitários do sistema de confusão e de ilusão criado. Aqueles que estariam inscritos em partidos moderados e que tentam ser coerentes, apercebendo-se de que não têm espaço para promover uma ação política consistente, afastam-se desiludidos e os que ficam vão, muitas vezes, desprovidos de princípios éticos universais que os possam orientar, navegando à deriva e ao sabor de ventos e marés.
Sabendo nós que não temos um mundo perfeito, mas em construção, somos chamados, enquanto cidadãos, a construir em conjunto um mundo em que todos possam viver em paz e com dignidade e não podemos compactuar com quaisquer formas de relativismo sob pena de aceitar uma coisa e a sua contrária, sem qualquer critério, permitindo que venha a acontecer aquilo que inicialmente não desejaríamos.
Como podem os Evangelhos ajudar-nos a encontrar quer uma chave de leitura para o que está a acontecer, quer um conjunto de orientações para sair deste círculo vicioso da ilusão?
Centrando-nos no Evangelho de Lucas, encontramos algumas indicações muito oportunas sobre como podem e devem os cristãos estar e pensar em política:
- No que toca à questão do poder e do serviço, Jesus diz aos seus discípulos: “o que for o maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve” (Lc 22, 26). Este é o primeiro fator de mudança profunda numa sociedade que quer fazer uma política promotora de desenvolvimento: o sentido de serviço de quem recebe o poder de governar. Se existir este sentido, a corrupção desaparece porque se torna inaceitável delapidar os bens de quem estamos a servir.
- No episódio do homem rico, Jesus desafia-o, dizendo-lhe o que era necessário para alcançar a perfeição: “vende tudo o que tens, distribui o dinheiro pelos pobres e terás um tesouro no Céu” (Lc 18, 22). A libertação interior só é possível quando nos desapegamos do sentido de posse. Só nessa condição é que podemos sentir-nos independentes para o desempenho de cargos públicos. Aqui está outra ferramenta de combate à busca do poder por causa do prestígio ou dos privilégios que daí possam advir.
- A história de Zaqueu, para complementar esta, é a história de um homem rico que se libertou (Lc 19, 1-10) e fê-lo com ações concretas começando por distribuir a sua riqueza e repor a justiça junto daqueles que poderia ter defraudado. A atitude de corrigir os erros é essencial e tão rara em política devido ao medo de “perder a face” e, por esse motivo, os erros perpetuam-se associados à falta de uma virtude que mudou a vida e a ação de Zaqueu – a humildade.
- Jesus aconselha a dar a César o que é de César (Lc 20, 25) como que a dizer que existe uma legitimidade própria dos poderes públicos na organização da vida social e, portanto, não é um partidário da desordem ou da resistência sem um fundamento ético claro, mas não deixa de ter uma visão crítica das formas de funcionamento da sociedade, chamando à conversão das mentes e das ações.
- Um dos aspetos marcantes da sua visão é a crítica à hipocrisia dos doutores da lei porque “sentem prazer em passear de túnicas compridas, e gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, dos primeiros lugares nas sinagogas e dos primeiros assentos nos banquetes; eles que devoram as casas das viúvas (…)” (Lc 20, 46-47). A crítica à hipocrisia, colocando a nu os direitos dos pobres face à dominação dos que enriquecem à sua custa tem implícita uma visão da sociedade que não se compagina com privilégios decorrentes do abuso e da injustiça. E é por isso que pouco valor tem, afirmar-se de direita ou de esquerda, pois vemos que tanto de um lado como do outro a tendência à prática da injustiça e à obtenção de privilégios acima do justificável se verificam, na incongruência entre o discurso e a ação.
Um cristão na política só o será se as suas ações exprimirem, sem sombra de dúvida, quer como eleitor, quer como decisor, uma busca ativa da justiça e do bem comum, da igualdade efetiva e da promoção do ser humano em todas as dimensões da sua vida, como fez Jesus, sem exclusão de pessoas. Nesse sentido, a crítica à metodologia de atuação das visões claramente extremadas é tão necessária quanto a crítica à ala “moderada” que também não está a ser capaz de definir um limite claro entre o sentimento dos povos e os interesses de grupos e lobbys de influência, deixando os europeus com um sentimento de que estamos entregues ao mesmo “monstro” invisível, quer se vote à direita, à esquerda ou num novo partido de “extrema direita” ou “extrema esquerda”. Ser cristão requer discernimento, clareza e também exige uma intervenção social e cultural mais intensa de modo a poder gerar outras opções políticas ou inspirar as já existentes a recuperar as suas fontes originais de inspiração para construir uma sociedade democrática e justa.