Out 29, 2024 | Cinzas e pão, Cultura

O que é que, Ricardo, vim eu aqui fazer?

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1. Li o livro O Que É Que Eu Estou Aqui a Fazer? em duas viagens, numa ida e num regresso de Fátima. Quem percebe de leitura, percebe que não li o livro, que o tempo não deu para tanto, e o tremor do autocarro não facilitava o encarar do carreiro das letras. Mas para mim é muito simbólico que o tenha lido em viagem.

O Que É Que Eu Estou Aqui a Fazer? é fruto de conversas entre João Francisco Gomes (jornalista) e Ricardo Araújo Pereira (humorista). Ricardo, Ricardo Araújo Pereira ou RAP é o humorista do momento em Portugal; e é ateu. O João é jornalista, ombreia com a inteligência e a cultura do Ricardo e, suspeito, também é ateu. Se o é, não creio que algures ali o diga, já Ricardo, sim, faz ali a sua profissão de fé.

Acheguei-me ao livro pelas páginas do Observador onde li a notícia do lançamento próximo e meia dúzia de comentários azedos e malcheirosos sobre a prontamente denunciada contradição entre os factos do Ricardo ser comunista e ser rico; à qual se acrescentava o azedume pelos padres, seminários e até bispos lhe abrirem portas e o convidarem para as suas casas e salões – ó Igreja, por andas e por onde vais, se até as portas abres aos ateus?

Ainda que o Ricardo diga jamais ter sido bafejado pela graça, eu estou com o P. Tolentino, o Cardeal Mendonça, quando diz que sim, foi, e muito, que mais que bafejado, ele foi inundado.

Sobre o que a seguir escreverei terei de pedir a indulgência de quem ama o Ricardo porque, de facto, não li o livro como se exige que se leia; e outras terei de pedir aos que o detractam porque eu, padre, o comprei e o li – ora, comprando-o, propus-me enriquecer o comunista; e lendo-o, inquinei-me.

2. Deram-me alvíssaras de que todos temos fé em Deus. Uns chamam-lhe Deus, outros deus, outros energia, outros entidade, entidade suprema, força, luz, ser supremo, alegria, paz, o que se queira. A Deus eu chamo-lhe Deus. Único e absoluto. E sem olimpo. E a não ser único e absoluto seria boneco, títere ou fantoche em comédia de enganos, tipo Guerras de Alecrim e Manjerona. Sim, chamo-o e apresento-me diante Dele como único e absoluto, acredito na sua Incarnação, que passou pelo nosso mundo fazendo-nos o bem, só o bem, a nós, aos bichos e às plantas, e depois, num acto de amor, ímpar e inigualável, deu-se-nos em pão e em vinho abençoados, após o que morreu de braços abertos e coração rasgado. Eu acredito em Deus feito carne, carne da minha carne, mas carne, carne com nervos e sentimentos, carne frágil, essa mesma carne que, bem ou mal assumida e conduzida, ou ergue epopeias diárias, ou inquina o futuro com as ruínas que hoje tanto esparze. Em acredito no Deus que entre nós e connosco caminhou e suou, cresceu e adoeceu, aprendeu e trabalhou, rezou e meditou, semeou e colheu, cantou e dançou, sofreu as nossas tribulações e de todas elas nos resgatou, incluindo da morte. Acredito num Deus sem botas, mas de sandálias, na sua acção de graças quando comia pão escuro, num Deus que dava estalidos quando saboreava um copo de três (que eu saiba, os judeus não fabricavam cerveja). Eu acredito e gosto do Deus frágil, no Deus bebé que se saciou dos seios de Maria; que se quis comer deu à sola, trabalhou no estaminé de José, fez biscates, subiu e lançou traves, martelou os dedos, encavou enxadas e consertou cancelas. Eu acredito num Deus que aprendeu a rezar a Deus e teve como catequistas um homem e uma mulher – José e Maria. Se o meu Deus oprimisse eu não gostaria Dele, mas porque ama a todos e a todos, inteiro, se dá, então é Esse que eu amo e sirvo; eu amo Aquele que na escura pobreza se escondeu quase rasurando-se, sim é Esse mesmo que eu consigo amar.

Eu não consigo ficar indiferente ou não amar nem beijar um Deus que, por mim, se fez bebé! Não consigo amar um Deus forte, invencível, todo-poderoso, insofrido, com aparentes tiques de indiferença e sem empatia. Mesmo se lhe tinha medo, eu acredito no Deus da avó do Ricardo que mexia os lábios durante a reza do terço, nesse Deus perante Quem ela se benzia depois de enxugar as mãos ao avental.

(Eu sei que isto pouco ou nada tem a ver com o livro, mas é a minha confissão de fé diante de um ateu: eu amo, sigo e sirvo a Deus que sofreu a Cruz, que nela foi cravado como o pior dos malfeitores, que sentiu a ausência do Pai e por Ele clamou e, sabendo que era o fim, Lhe entregou o espírito. Se tenho de ter a ousadia de confiar, prefiro que seja em Deus impotente e esmagado pela dor infligida pelos poderosos, no Deus que tragou o pior cálice de fel, que o não o ignorou nem rejeitou, que nos ensinou a bebê-lo, que enfrentou a morte e perdeu, e depois descendo ao seu terreiro ali, definitivamente, a venceu e humilhou para sempre. E aos poderosos também.)

Volto ao que atrás dizia: Deram-me alvíssaras de que todos temos fé em Deus. Até o diabo. A diferença está que o diabo não O ama. E eu, sim. Não sei se sei amá-l’O, corresponder-Lhe, estar à altura Dele. Sei e confio naquela que me disse que o amor com amor se paga, que o que importa é que em mim haja amor, que se muito, que se pouco, Ele o reconhece, me abraça, mo purifica e amplifica e assim se sente gratificado e pago. Pensam Nele os ateus todos os dias e eu também, mas da minha parte com um elevado sentido de gratidão e de júbilo, mesmo se por entre as névoas da fé e das dúvidas.

3. Li alhures uma estória que me retrata (e me retratou ainda antes de eu ser gente) e de que muito gosto. Por causa das letras do Ricardo fui à sua procura e encontrei-me com pormenores que sempre ignorei. E agora me ajudam. É a história de amor (e da fé católica) de Jacques e Raïssa. Jaques era francês, Raïssa, russa. Protestante liberal ele, judia ela. Ele filósofo, ela poetisa. Ele nascido em 1882, ela em 1883. De apelido ela levava Oumansoff, ele Maritain; passaram à história como o casal Maritain. Em seus dias jovens professaram e depois abandonaram o marxismo. Conheceram-se e amaram-se na Universidade de Paris. Eram inteligentes, bem-sucedidos, ricos, jovens com toda clara e ousada beleza do futuro pela frente, e porque se amavam casaram em Berlim no ano de 1904. Detinham todas as fichas da felicidade, porém, um ano e picos depois de casados fizeram-se mútua promessa: suicidar-se-iam se em doze meses não encontrassem o sentido da existência – essa inexorável sede existe, sim, e sacia-a quem encontra fonte.

Felizmente não se suicidaram. Felizmente acharam amigos comuns que lhes mostraram e os aproximaram da fonte. Felizmente um soube ser o esteio do outro, reconhecendo-se e revendo-se ambos no que o outro conquistava. Jacques é, provavelmente, o pensador contemporâneo que mais influiu na teologia do séc. XX, e a ele muito se deve a defesa da democracia, um legado ímpar de cultura cristã, a defesa dos direitos humanos, da família, da liberdade religiosa e de consciência, a justiça social, e a afirmação da dignidade do pobre, do marginalizado e do estrangeiro.

Eu digo que na cultura cristã ocidental muito a ele se deve, mas intuo, por aquilo que li, que quando a mão de Jacques escrevia, quando o coração de Jacques batia e pensava, era o de Raïssa que bombava e a ambos enchia de vida.

Até aqui o que eu não sabia dos Maritain; a partir daqui a estória que sabia e muitas vezes gosto de recordar: alguma vez li que o casal hesitou muito se deveria ou não baptizar-se e entrar na Igreja Católica. Pensadores que eram, tanto ponderavam o mais e o menos, que depois nada os movia, nada os decidia e encorajava à entrega, à entrada no redil. Se na Igreja algo encontravam que os atraía, logo sobrevinha algo maior que os demovia; se algo os seduzia e fazia sorrir e aceitá-la, logo a indignidade da comunidade católica se sobrepunha e os devolvia ao não. Por tanto tempo um tal tempestuoso e invencível mar de dúvidas os envolvia, ameaçava e cansava que só um sonho Raïssa tudo venceu e clareou.

Que sonhou, pois, sonhou Raïssa, em certa noite? Sonhou que aqui e ali achava pérolas, uma aqui, outra ali, e mais além. Sim havia pérolas riquíssimas, únicas, e elas ofereciam-se-lhe – era pegar ou largar. Ao lado de Jacques, Raïssa, porém, hesitava em colhê-las, porque elas, ainda que vendo-se luzentes e perfeitas, estavam meio submersas num monte de imundície fedorenta. Oh, não, o cenário era tão ruim que nem de luvas Raïssa ponderava achegar-se-lhes! Mas, oh, meu Deus, como resistir a colher pérolas, que mulher lhes poderá resistir, mesmo se envolvidas em porcaria – ponderava ela no sonho?

Pela manhã, Raïssa acordou transpirada, e às perolas do sonho deu nome: Evangelho, baptismo, Igreja, Jesus, fé, Missa, comunidade cristã…

E baptizaram-se ambos.

(O resto confrontem, por exemplo, com a Wikipédia…)

4. Não, não é de agora que o mundo tanto obsta a Deus; que, as mais das vezes, tantos Dele se separam, não por Ele, que é rico como uma imensa pinha de pérolas, mas pelos crentes que O rodeamos, e O louvamos, Lhe dançamos e cantamos, choramos e oferecemos sacrifícios, pedidos, foguetes e orações – como bem compreendo que queiram a fonte de água pura, que anseiem e precisem dela, mas já não sei como haverão de achegar-se-lhe sem passar pelo caminho cheio de lixo e de esterco. Desculpar-me-á o Ricardo que nem no livro se me confessou: de pérolas até eu gosto; o que, porém, mais me pergunto é: a não ser por excessivo, incompreensível e transbordante amor, que necessidade tinha Deus de nascer? E para mais neste nosso mundo?

Para mim faz, sim, sentido, que a Pérola tivesse nascido neste nosso mundo mesquinho e ferido. Aliás, eu não perceberia que houvera de nascer num mundo rico e perfeito, só com sol, nunca com chuva, só com férias, nunca com tri-pallium, habitado por dores, ódios, paixões de faca e alguidar, nunca verdadeiramente amigo, nunca inteiramente pacificado e saciado de ordem e progresso inteiros.

Este, sim, este é o mundo que merece um Deus pequenino e frágil como nós. Um Deus que sofreu e sofre, que sabe compadecer-se e nos salva. Não nos salva sem nós querermos, nem contra nós, mas como se antes não soubera, como se antes nunca nos ouvira, propõe-se salvar-nos porque, depois de só fazer o bem, Ele-próprio aqui foi esmagado pelo ódio.

Este é o mundo merece ser salvo, que é salvo por um de nós, carne da nossa carne, um igual a nós, menos no cheiro a pecado.

5. A fechar conto-lhes algo que vi e me comoveu, enquanto lia o Ricardo. Passando folha a folha, e às vezes atrás volvendo, eu lamentava-me por ele, pelos que são como ele. (Dou de barato se também eles se lamentam por mim!) É que eu lia-o e lendo-o só concebia perceber que eles vivem enclausurados numa caixa – é um horrível pensamento, eu sei! Imaginava que indo para onde forem estão permanentemente diante de um muro! Quer virem para a direita quer para a esquerda, para a frente ou para trás, sempre estão diante de um muro inultrapassável. Não é que seja alto e contrafortado – se calhar até é de papelão – mas um muro inderrubável é o que sempre têm por diante do olhar e dos passos que, em última análise, nada mais veem. Óbvio é que entre muros eles têm coisas lindas: flores e filosofia, estrelas e igrejas, arquitectura e música, e humor. E muito mais. Muitas mais coisas lindas, e sempre um muro por diante e, lá para o fim, um buraco escuro no chão.

Eu que também tenho muros brancos rodeando-me, quero-me com eles; alguns vejo-os e nem sei se, nesta idade, já toquei todos os meus limites. Mas mais que muros, para mim eles são véus que adejam, e um dia, muito para além dos meus méritos, rasgar-se-ão e cairão todos!

6. Nota final: Ao rechegar a Braga, comigo saiu uma família com uma criança tão irascível e belicosa que durante a viagem não nos deu sossego; e a mim, por demais, me impediu de ler. Fora filho de minha mãe, pensei eu, e o assunto resolvia-se logo ao primeiro quilómetro. Mas não era. Mimado que era, ora peguilhava por isto, ora por aquilo. Como não me chamou careca, tudo acabou em bem, mas…

Trazia o miúdo um rato branco dentro duma caixa de sapatos. Por três vezes o rato fugiu da caixa e pelas três o rapaz ali o devolveu. Quando uma fuga veio na minha direcção considerei que merecia viver, porque a culpa não era do rato, e viveu. Ora aconteceu que eu e a família saímos para a Praça do Comércio e ali chegados o rapaz tropeçou, o rato soltou-se novamente, atravessou a passadeira aos saltinhos e, do outro lado, já no passeio, foi colhido por uma trotinete conduzida a alta velocidade por um adolescente. Obviamente o rapaz babou e chorou em escarcéu e o adolescente, desculpando-se, lamentou a morte do animal e também chorou. Eu assisti até que o pegaram pelo rabo e o depuseram na caixa. Não fui ao funeral, mas surpreso e patético, assisti a parte do velório.

7. Desculpa-me, Ricardo, de facto não tenho respostas, tenho estórias e caminhos por entre véus. Agora mesmo estou a ver a tenda de Abraão e à frente desta um fogo que arde. Essa fogueira e o caminho que dela sai é o que me anima.

Frei João

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