Professora numa Escola artística

A Luz na Idade das Trevas

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Como sintetizar em poucos traços, nas diversas expressões da arte, a força criativa dos longos séculos da Idade Média cristã? Uma cultura inteira, embora com as limitações humanas sempre presentes, impregnara-se de Evangelho, e onde o pensamento teológico realizava a Summa de São Tomás, a arte das igrejas submetia a matéria à adoração do mistério, ao mesmo tempo que um poeta admirável como Dante Alighieri podia compor «o poema sagrado, para o qual concorreram céu e terra», como ele próprio classifica a Divina Comédia[1].

No Evangelho segundo S. Mateus Jesus esclarece: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é, semelhante:  Amarás o teu próximo como a ti mesmo»[2]. À pergunta que fizeram a São Bernardo por quê amar a Deus e em que medida, São Bernardo respondeu: Pois bem, eu vos direi que o motivo do nosso amor por Deus, é Ele mesmo, e que a medida deste amor é amar sem medida.

A arte, como produção humana, enquadra-se nesta lógica devendo seguir, portanto, esta hierarquia no amor – amar a Deus sobre todas as coisas. Poder-se-á, então, formular o seguinte pensamento: toda a arte tem como propósito principal louvar e adorar a Deus e, como consequência, elevar-nos a Ele.

Em que medida este louvor expressa o amor a Deus, por primeiro, e às criaturas, por segundo?

Na arte, parece-me que o tempo histórico que melhor se aproximou deste louvor talvez tenha sido o dos séculos XII e XIII cuja catedral gótica expressa, na pedra, a alma e o pensamento de uma civilização inteira do ocidente europeu. Emille Mâlle, historiador francês especialista em arte medieval, afirmou que não houve pensamento importante da Idade Média que não tivesse sido impresso na pedra da catedral.

Aceitemos, portanto, e segundo a nossa fé, pensar e viver de modo teocêntrico; esqueçamo-nos de nós e elevemos a vida para Deus segundo o Seu primeiro mandamento.

Comecemos, então, por perceber que a catedral gótica excede o propósito de documento histórico, tal como excede o propósito da inovação tecnológica e da engenharia da construção, como excede o propósito da instrução e da catequese visual ou mesmo do deleite estético e espiritual; sem negar nenhum destes propósitos, que são sem dúvida todos reais, verdadeiros e necessários, são, no entanto, secundários, pois que a catedral gótica pretende, como toda a arte o deve, primeiramente, louvar a Deus. Este louvor que parte da arquitetura, faz parte, no entanto, de um sistema maior de louvor que é a própria Liturgia.

De forma simples, a Liturgia é todo o culto de adoração a Deus que reflete na terra o que é a vida nos Céus – o louvor perpétuo a Deus em ato único e eterno – onde a Eucaristia é o momento central numa atualização constante e permanente do ato divino da salvação, a celebração do Mistério Pascal.

Logicamente, é-nos sumamente difícil compreender o que é este ato único e eterno da adoração e louvor a Deus, quando apenas podemos viver os atos de adoração e louvor no tempo sequencial, isto é, cronológico. Sabemos que a Eucaristia não é uma repetição do Mistério Pascal, mas o modo que Jesus Cristo nos deu de atualizar o Mistério, na História, em ação de graças. Mas será que compreendemos bem o que é que significa a palavra atualização neste contexto? Será que não teremos que redefinir o conceito desta palavra, impregnado que está da ideia contemporânea de que uma atualização (update) comporta sempre uma repetição de algo numa versão melhorada? É pelos Sacramentos que nos vamos adentrando no Mistério e por isso, na dificuldade natural de entender o conceito da palavra atualização no contexto litúrgico, senti-me na necessidade de fazer este exercício intelectual de conversão desta palavra para que pudesse alcançar um pouco mais o sentido da Eucaristia. Um dos exercícios que mais me ajudou a compreender este louvor perpétuo no tempo foi o de imaginar que, em toda a terra, com o fuso horário que lhe é devido e por onde os Apóstolos e Discípulos de Jesus foram a evangelizar por Seu mandato, não deverá haver um único minuto em que Cristo não esteja a descer à terra pelo ato da Consagração, numa Eucaristia. Com esta imagem percebi não só o modo como Deus Se faz omnipresente no tempo, como alcancei um pouco mais o sentido da eternidade que já está entre nós. O centro da Liturgia, portanto, não pode ser o Homem e o sacerdote age in persona Christi, o Sumo e Eterno Sacerdote, uma expressão que denota uma realidade fundamental na teologia do sacerdócio católico.

A Catedral Gótica recorda, em primeiro lugar, aquela que foi a primeira casa de Deus na terra descrita na Bíblia como o Templo de Salomão[3] foi pensada pelo monge, teólogo e arquiteto medieval Abade de Suger, para quem a luz era o símbolo de Deus materializada nas joias, no ouro e nas altíssimas paredes de vidro colorido, as janelas de vitrais privilegiando a verticalidade e a luz. A Liturgia começa, pois, por se definir, primeiramente, num espaço físico todo ele ordenado para a contemplação do Mistério, a partir do apelo sensível que a arte evoca através da beleza. E esse espaço nada comporta que não seja sagrado. O profano não entra no espaço litúrgico que literalmente significa «o que fica fora do templo»profanu[4].

Por isso a arquitetura, as imagens, a palavra, a luz, os cânticos, as alfaias litúrgicas, os paramentos, as toalhas, os gestos, o incenso, o órgão, os símbolos… tudo converge para a adoração de Deus; a beleza como experiência do Amor e por consequência o amor como experiência da Beleza.

Como disse anteriormente, a arte e, neste caso a arte gótica inserida no espaço litúrgico que é a catedral, não encerra em si apenas um padrão estético, mas, sobretudo, um padrão espiritual, uma cosmovisão, um modo de pensar e ver o mundo. Aliás, a arte de cada época mostra o que o homem acreditou e o que o homem amou no seu próprio tempo. Como diz Paul Evdokimov, citado por Joseph Ratzinger no livro Introdução ao Espírito da Liturgia, para contemplarmos a arte nessa sua dimensão religiosa e mística, a que nos aproxima do Mistério e da Verdade, deveríamos fazer jejum de todos os nossos sentidos, pois «o ícone deve ter origem na abertura dos sentidos interiores, numa providência que transcenda a superfície do empírico, para conseguir ver Cristo na luz do Tabor… [a Teologia dos Ícones] guia o contemplador para dentro da figura que ela assumiu, para ele poder ver, excedendo os seus sentidos para o exterior, reconduzindo-os para o interior. O Ícone pressupõe, como diz Evdokimov, o «jejum da vista»[5].    Na verdade, trata-se de nos privarmos de ver e de ouvir, para que a experiência de ver e de ouvir se torne, de novo, aquilo que pode originar uma explosão mística propiciada pela arte. Porque para conhecermos o Mistério temos que estar sedentos d’Ele, mas ao invés andamos, hoje, agoniados de tanta experiência sensorial.

Quando melhor nos sabe a água, senão depois de uma longa caminhada ao peso do sol?  Quando melhor nos sabe, um pedaço de pão senão quando estivemos privados de alimento? E quando é que, hoje em dia, entre nós, sentimos tal sede e tal fome? Sabiamente os antigos velavam os altares e as suas imagens, com espessas cortinas que só eram abertas nos dias da Festa Litúrgica, que os fazia reunir na igreja, para se saciarem na ordem divina da esperança e no esplendor do Seu amor.


[1] Carta aos Artistas, João Paulo II, 1999, §8

[2] Mateus 22,37-39.

[3] 1Reis 6.

[4] Profanus – junção de duas palavras: pro e fanumPro é uma preposição que significa “diante de” ou “perante” alguma coisa. Fanum significa um templo ou lugar sagrado. Assim, Profanus significa literalmente “diante do templo”. https://www.dicionarioetimologico.com.br.

[5] RATZINGER, Joseph – Introdução ao Espírito da Liturgia. Paulinas: 8ª edição, 2017. p. 89.

Alexandra Lisboa

Professora numa Escola artística

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