Nem sempre em Portugal irrompem as sandálias carmelitas pelas praças da cultura. Que um escritor se fixe nos passos e nas dobras da alma de dois carmelitas descalços, um deles português, Frei Redento da Cruz (Paredes de Coura, 1598 – 1638, Sumatra), muito isso é de escuitar.
1. Em finais de agosto último distraída mão me fez chegar uma entrevista de Mário Cláudio a propósito do seu novo livro Apoteose dos Mártires, Lisboa: D. Quixote, 2022. Demorei 15 dias a afagar a capa do livro, porque as feiras de Lisboa e Porto empeceram que mais cedo ele abalasse para Braga.
Duas coisas me levaram ao livro: o autor e os mártires.
Mário Cláudio é hoje em dia uma das vozes mais destacadas da literatura portuguesa; mas para mim o que mais conta é ter sido seu aluno; — ao ouvi-lo, generoso, espevitar com sal as mortiças brasas da nossa inteligência, pronto se lamenta que um terço do nosso dia seja perdido a dormir.
Frei Redento da Cruz e Frei Dionísio da Natividade são os proto-mártires carmelitas descalços. O primeiro é português, de Cunha, Paredes de Coura, o segundo é francês, de Honfleur. Um é militar, comandante da praça de Meliapor, a mesma cidade onde no ano de 72 da era cristã foi martirizado o apóstolo São Tomé; o outro é notável cartografo — Vide as suas Tabelas Marítimas preservadas no Museu Britânico (Sloan 197) —, que antes da de Portugal servira a armada holandesa. Ambos professaram no Carmo de Goa — cidade que uma vez avistada exime de ver Lisboa — onde pontificava como prior Frei Filipe da Santíssima Trindade.
Tomaz Rodrigues da Cunha, depois Frei Redento, e Pierre Berteloth, depois Frei Dionísio, serviram o Carmo, o primeiro como simples e jovial porteiro, durante vinte e três anos, o francês como douto e sábio sacerdote, durante pouco mais de vinte e três dias.
A fé os tornou irmãos carmelitas descalços e mártires; as vicissitudes e a ânsia de poder e riqueza dos nossos governantes, mártires e ícones da nossa história pátria.
Portugal foi grande; estendeu-se de Melgaço à Índia, das Áfricas às Américas. O que eu não sei é como os pinheiros e os carvalhos aqui semeados desde a criação foram bastantes — se é que o foram… — para o calado de tantas naves, militares e mercantes, que séculos a fio sulcaram a Rota das Índias, depois a do Brasil e, por fim, a de África. — Nem sei de onde saiu tanta inteligência e tanto braço, tanto sangue e tanto nervo para as guiar, defender e pelejar contra ventos e marés, corsários, mercenários e indígenas? —. Não sei.
Portugal não gosta de si. Mário Cláudio que estudou em Londres e que nos remirou desde o lado de lá da curva que nos nutre e protege, tem boa noção da ambiguidade do sentimento de desamor por nós próprios nutrido, e que tão bem define a nossa identidade tribal. Como tribo somos mesquinhos e choramingas; e, por conseguinte, constantemente birrentos, indignados e passadistas; também eu nos entendo assim. E não gostamos da nossa história, das suas gestas e tragédias. Nem gostamos de ler, seja literatura ou história, não vá alguém atirar-nos à cara a desvirtude da cusquice, cuja funda raiz não podemos assumir. Nem gostamos de arte — salva-se talvez a música — que em Portugal quase toda ela é cristã, e poucos o são e assumem assumir o nosso passado velho-católico, porque o que está de moda é ser-se selvagem, isto é, não ser de alguém, não ter patrão ou amo, nem passado, história ou tradição. Ou religião. Certo é, porém, que o nascer jamais é por geração espontânea, e que ao chegarmos à luz trazemos grafados os genes que nos legaram sem licença nossa, e o fito de absoluto em nós semeado por invisível mão transcendente, e dependentes da tribo, sim!
Mário Cláudio sabe — e tenho de assumir que, ou me engana, ou sabe melhor que eu — que a rejeição até à urticária das mais gentis virtudes da nossa alma comum se soma ao rejeito da palpitação do sagrado; e assim, num movimento inquisitorial ao contrário — é ele quem o diz — implacáveis sepultamos ou ostracizamos, em nossos dias, todo o sagrado com referências ao catolicismo. Mas já não procedemos do igual modo, por exemplo, com os princípios budistas ou protestantes.
3. Felizmente temos Mário Cláudio. E haverá outros que se aqui não são nomeados é só por desaire meu. De duas uma: o autor da Apoteose dos Mártires ou tem uma visão que trespassa as duras cortinas do tempo, ou tem esta e uma caixa de alfaiate donde tira coisas novas e coisas velhas que, assessoradas por um soberbo e irreprimível impulso de grafologia e diligente trabalho investigação, nos faz chegar com regularidade à mesa da alma alimento substancial e sólido que alimenta e sacia os apetites mais esquisitos. É o caso deste romance.
Como alguém discerniu, a apoteose na Antiguidade Clássica era o equivalente à glorificação — aquele processo que elevava o mortal à condição e ao culto de imortal. Por sua vez, mártir, em grego, significa testemunha. O livro de Mário Cláudio é, portanto, um exercício da exultação do testemunho cristão, cuidadosamente elaborado, porém, desde fora dos perfumes a que rescende o incenso na sacristia, e das pias de água benta que acolhem os peregrinos à entrada dos templos católicos.
Esta obra do autor portuense, courense por adopção, traz assim para a luz dos nossos dias, para o convívio das esplanadas e das tertúlias mais selectas, duas cousas: o brunir com bom gosto e melhor qualidade as virtudes da alma lusitana; e o ressuscitar — talvez apenas, o repatriar — do sagrado para a soleira da porta da nossa alma pessoal. É sabido que sem a primeira não somos inteiros portugueses; sem a segunda não somos sequer humanos.
4. Notas finais. Não se escreveu este texto para recomendar a leitura da obra. Se de recomendação ela necessita, escreva-a quem saiba ler. Se, porém, se escrevinharam estas linhas, não foi nem por dever nem por obediência a qualquer impulso, mas tão-só como uma ousadia — a de dizer que o romance em questão veio à luz e que jamais algum português ou portuguesa, do céu ou da terra, soçobrará se for de encontro aquele texto. E ainda, porque nos apraz reconhecer o labor dos artistas, no caso, um escritor português que, desde há anos, assume o papel de áugure da nossa causa, e a si mesmo se exige o justo quinhão na ingrata tarefa que lhe cabe: aclarar, escorar e restaurar as raízes da nossa identidade lusa de ascendência católica.
Por último: Lembro bem de, em 1996 ou sete, vésperas dos quatrocentos anos do nascimento do primeiro mártir descalço, meu irmão, ter realizado uma jubilosa viagem com o Frei Silvino Teixeira ao encontro do Pe. Manuel de Oliveira Lemos, saudoso pároco de Cunha, Paredes de Coura, que nos recebeu com um sorriso do tamanho dos seus braços gigantes, e que à sua mesa nos sentou, e nos serviu um belo e generoso almoço de carne cachena. Quando a meio do prândio lhe propus erguer uma estátua à memória de Frei Redento da Cruz, celebrado filho da paróquia de Cunha e do Carmo Descalço, ele não hesitou, e lesto respondeu de garfo no ar: «Trata tu da estátua que eu trato de a pagar!». E ela lá está! Ao largo que a recebeu deu-se-lhe o mesmo venerável nome; é este o mesmo que a espaços recebe e abraça o Mário quando a Cunha o levam. Aliás, ninguém me convence que foi aquela estátua a escrever o livro, mas também ainda não conheci outra forma de sementeira senão a de lavrar um campo, abençoá-lo antes da semeadura, semeá-lo, ir dormir, e vir colhê-lo. É do Evangelho. Post-scriptum: O martírio deu-se em Achem, Sumatra, a 29 de novembro de 1638; a apoteose é, obviamente posterior, e também se deu. O que não sei ousar e idêntica coragem me falha é a definição do tanto que este martírio contribuiu para desengelhar a ideia de Portugal. Terão sido suficientes dois anos para irrevogável injecção de sangue de mártires nas escleróticas veias das consciências lusas, a fim de levantá-las do chão contra Castela, lançando os andaimes da ideia de restauração da independência?