Ago 9, 2022 | Sabedoria da Cruz

Carmelo de Aveiro

O “Desconcerto” da Sabedoria

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Abordando-se o Desconcerto da Sabedoria continua o tema da Sabedoria da Cruz: os desconcertos são mais demorados que os concertos. Usa-se a mesma estrutura, que termina com uma oração para ser rezada por todos.

Convido-te a entrar na ala do meu claustro, a subir ao miradouro da Cruz e desde aí leres comigo no livro da vida.

Hoje vamos penetrar no “desconcerto” da Sabedoria e apraz-me chamar “desconcerto” àquele estado em que Deus nos coloca para nos “fazer nascer de novo”. Ou se quisermos no estado de presente imperfeito para chegarmos a ser presente perfeito, quero dizer obra de Deus em plenitude, não acabada, mas em criação, verdadeira manifestação da Sua glória e total acolhimento do Seu Ser divino.

Ainda que tenhamos dificuldade em reconhecer, o desconcerto da Sabedoria da Cruz é encantador porque é o que permite escutar Deus dizer ao nosso coração: “Ainda que todos te abandonem eu não te abandonarei. Eu gravei-te na palma das minhas mãos, tu és meu.” É o que nos faz ter a percepção do cordão umbilical da fé que nos une a Deus.

Então, onde está o desconcerto da sabedoria da Cruz e como se manifesta? O desconcerto da sabedoria da Cruz está em Deus manifestar em nós a Sua santidade ao mesmo tempo que nos situa na verdade “nua e crua” do nosso ser. Despoja-nos da falsa verdade que criamos acerca da nossa imagem e do ser que somos. Somos despojados de nós e revestidos de Deus pelo próprio Deus. S. Paulo claramente conhecedor destes mecanismos do nosso ser diz-nos que: gememos e vivemos acabrunhados enquanto somos despojados do nosso homem velho e que mutas vezes não queremos ser revestidos do homem novo, à imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O desconcerto da Cruz é o mesmo paradoxo que Jesus tenta explicar a Nicodemos, no capítulo 3 de S. João, da necessidade de nascer do alto, de nascer do Espírito. A dúvida de Nicodemos era: «Como pode um homem, já velho, voltar a entrar no útero da mãe?» E Jesus responde-lhe: «Se não nasceres da água e do Espírito não entrareis no Reino de Deus». Se entendermos o Reino de Deus como o reino da nossa interioridade, como o Reino de Deus que nos habita logo percebemos que senão nascermos do Espírito, senão passarmos pelo desconcerto da sabedoria não podemos entrar dentro de nós e estar na presença de Deus, ser testemunhas de que: “Vive o Senhor em cuja presença estou”.

Todos temos de passar pelo desconcerto da sabedoria cruz, mas para cada um de nós ele manifesta-se de forma nova, única e irrepetível. Cada um de nós sofre um desconcerto à medida do amor com que Deus o quer amar e que lhe é possível suportar. Deus não nos pede nada maior que as nossas forças e acolher o Seu amor, sem medida, deixando-se purificar por ele, é para nós verdadeira alegria e santidade.

O grande “desconcerto” que a Sabedoria Divina reservou para mim teve início em 1996, contudo ele esteve desde sempre na mente e no coração de Deus, por isso toda a minha vida, até este momento, estava já orientada para isso. Era uma manhã de sol muito brilhante e com um azul celeste muito intenso e parecia-me que o céu beijava a terra, naquela manhã eu ia levar a medicação a uma doente que vivia no bairro ao lado da nossa casa. Pelo caminho eu ia a cantar o salmo da minha liberdade, o salmo 23 – O Senhor é meu pastor nada me falta. Na realidade sentia-me tão livre naquele céu azul e sob os raios luminosos do sol que quase me afigurava a um pássaro a voar na imensidade celeste.

Entrei no bairro, um labirinto de casas de “matope” com pequenos carreiros de terra batida a contornar as casas. Depois de alguma procura encontrei a casa da Rosa. Dentro de casa estava escuro, tinham feito uma fogueira para aquecer o ambiente, mas a lenha era verde e produziu um fumo tão intenso que fazia arder os olhos e mal se podia respirar. A casa estava cheia de buracos e parecia que com uma rajada de vento mais forte iria desmoronar. A um canto estava deitada a Rosa. A Rosa era uma mulher que tinha traços de beleza, mas agora estavam convertidos em sulcos de sofrimento e dor. Ela já não falava, apenas imitia uns sons roucos que ecoavam como gritos lancinantes de dor. Coloquei a cabeça da Rosa no meu regaço e procurei dar-lhe a medicação, que a muito custo tomou. Depois sentei-me junto dela, que ao sentir a minha proximidade agarrou-me na mão com tanta força que era impossível separar-nos.

Enquanto estava ali voei para o Calvário. Diante dos meus olhos, na pessoa da Rosa, estava Cristo Crucificado. A Cruz era aquela cama tecida de cordas ásperas, a escuridão, o fumo, os buracos da parede, o frio, o abandono, a casa a desmoronar-se, a força com que apertava a minha mão tudo me falava daquela sexta-feira santa… permaneci ali e deixei-me invadir pelo sagrado daquele momento. Em breve no meu espírito acendia-se uma luz e a minha oração estava completa, não era a Rosa que me tinha agarrado na mão, mas Cristo. Cristo Crucificado tinha-me agarrado pela mão. Permanecemos assim cerca de uma hora, o tempo em que a Rosa foi perdendo a força e a minha mão ia ficando solta…

No caminho, de regresso a casa foi-se apoderando de mim uma certeza: eu tinha estado no Calvário e Cristo tinha-me agarrado pela mão. O que isto significava eu não sabia, contudo, o tempo encarregar-se-ia de mo fazer entender. No dia seguinte voltei para ver a Rosa, mas já tinha morrido e já nem a casa existia.

Dias depois, sem saber como nem porquê, aconteceu, de facto, o maior desconcerto da minha vida, comecei a sentir-me morta, a ter a consciência profunda de estar morta. Estava morta, mas continuava a viver. Tinha de viver estando morta. Agora sabia que a morte da Rosa era a prefiguração da minha morte, que Cristo me tinha agarrado pela mão para me pregar com Ele na Cruz.

Nas mãos tinha um paradoxo insolúvel: como dizer alguém que estava morta se na realidade estava viva? Viver tinha-se tornado a minha grande agonia. Só me restava um caminho esperar que a morte chegasse verdadeiramente e me levasse com ela. Esperava a morte como se espera uma pessoa. Uma manhã saí à varanda e olhei para o horizonte à procura dos sinais da chegada da morte, mas só existiam sinais de vida, voltei desiludida e com uma dor de alma ainda mais aguda, porque a morte era a minha única esperança.

Morrer quando se tem 20 anos e se está cheio de planos para o futuro é de facto um descer à sepultura num abismo profundo de dor e de amargura… é um estar moribundo à espera… é um comungar das palavras de Jesus no que demais profundo têm: «Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?»

Mas se por um lado eu estava a agonizar, à espera da morte, por outro era tão real a presença de Deus em mim e no que fazia que os outros encontravam-n’O e viam maravilhados o que Ele fazia através de mim, na resposta aos desafios vários que apareciam ao longo dos dias. Enquanto eles viam vida eu via morte, o que fazia com que eu tivesse que viver sozinha a minha morte, sem o apoio de ninguém, aparentemente nem do próprio Deus. O meu desconcerto agudizava-se de dia para dia e a mim restava-me o silêncio, a solidão, a morte e oração como caminho para a suportar, e, a espera como fidelidade a todas as coisas.  

Comecei a percorrer o caminho do abandono em Deus, sem o saber, como ar que respirava para sobreviver e a seu tempo fui sentindo que eu era “como criança pequena a quem Deus leva ao colo”, como diz o salmista. Objetivamente o meu homem velho estava a morrer, eu não me identificava com a pessoa que anteriormente era, o meu próprio nome era-me estranho, as qualidades e virtudes que eu tinha deixaram de existir e o que antes sabia tornou-se pura ignorância. Quem eu era agora não sabia e a convivência com a minha morte uma realidade muito dolorosa, quase insuportável. Tinha entrado num processo de morte e já não existia. Era uma ilustre desconhecida para mim mesma. Mas existia uma proximidade de Deus, que naquele momento não me era possível conhecer, que me estava a fazer nascer de novo, que me estava a fazer nascer desde o alto, desde Ele. Nascia das entranhas amorosas do próprio Deus, da Sua santidade, da Sua verdade e beleza. Numa palavra da Sua graça. Era a experiência de ser sustentada pelo próprio Deus, de ser Ele a minha providência e o meu Pai. A proximidade de Deus revela sempre o seu rosto paterno.

As duas coisas conviviam harmoniosamente: a santidade de Deus manifestada na Sua proximidade e a minha morte, na realidade até se reclamavam mutuamente.

O Desconcerto da Sabedoria está precisamente na união destas duas dimensões, o divino e o humano, de forma harmoniosa no ser de cada um de nós: a nossa morte e conhecimento próprio e a Santidade de Deus. Deixemos que Deus nos faça passar pelo desconcerto da Sabedoria da Cruz para nos revestir da Sua santidade e beleza.

Acerca do desconcerto da sabedoria da Cruz diz-nos o Papa Francisco:

«Deus escolheu o caminho mais difícil: a cruz. Para que não houvesse na terra ninguém tão desesperado que não conseguisse encontrá-Lo, até mesmo na angústia, na escuridão, no abandono, no escândalo da sua miséria e dos próprios erros.

Alguns santos ensinaram que a cruz é como um livro que, para o conhecer, é preciso abri-lo e ler. Significa deter o olhar sobre Crucificado, deixar-se impressionar pelas suas chagas, se comover e chorar diante de Deus ferido de amor por nós.

Se não fizermos assim, a cruz permanece um livro não lido, cujo título e autor são bem conhecidos, mas que não influencia a vida. Não reduzamos a cruz a um objeto de devoção, e menos ainda a um símbolo político, a um sinal de relevância religiosa e social.

Da contemplação do Crucifixo provém o segundo passo: dar testemunho.

A cruz não quer ser uma bandeira elevada ao alto, mas a fonte pura de uma maneira nova de viver. Qual? A do Evangelho.» O desafio está em nos deixarmos desconcertar pela sabedoria da cruz para encontrarmos uma nova maneira de viver.

Rezamos juntos:

Senhor,
Também eu desejo penetrar na tua Sabedoria
E deixar-me desconcertar por ela
Para aprender uma nova maneira de viver.

Ao olhar-Te levantado, ao alto, na Cruz
Descubro que é daí dessa divina cátedra
Que me ensinas o que é a Tua Sabedoria.
Não precisas de palavras
Porque Tu és a Palavra.

Os teus braços abertos cravados na Cruz
Falam-me de generosidade no serviço.
O teu Coração trespassado a jorrar sangue e água
Fala-me de acolhimento e abrigo para todos.
Os teus pés cravados juntos no madeiro
De um sentido único na vida,
O da vida eterna.
A Tua cabeça inclinada
Fala-me da tua permanente atitude de escuta
Da vontade do Pai e do clamor dos Homens.
O teu despojamento
Fala-me de entrega até ao fim.

Esta é a Tua Sabedoria
A Sabedoria da Cruz que gera entrega até ao fim e
Faz nascer de novo,
Para uma vida à maneira do Evangelho.

Senhor,
Ensina-me a abrir a minha vida,
A cada instante, ao desconcerto da Tua Sabedoria divina,
Para dar testemunho do poder vivificante da Tua Cruz.

Ir. Sofia da Cruz

Carmelo de Aveiro

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