Onde e fala de paz quando aumentam os cenários de guerra e recrudescem os seus crimes e atentados à vida e à dignidade humana e autodeterminação dos povos.
“Paz” é um termo que todos parecemos entender e podemos associar a tranquilidade interior, bem-estar individual e harmonia entre a pessoa e a comunidade, entre a pessoa e a natureza e entre a pessoa e Deus. Essa harmonia plena é provavelmente uma das mais profundas aspirações da humanidade. No entanto, se é difícil alcançar individualmente esse estado interior, quando se transita para a relação das pessoas entre si, com a natureza e até com Deus, parece que tal estado não é mais que uma mera utopia, um ideal sem lugar e sem tempo.
Desde a Antiguidade que é tema de reflexão filosófica e teológica. No período do Império Romano, a “pax romana”, traduzia-se numa paz imposta pelo enorme aparelho militar e por um conjunto de leis que visava concorrer para a ordem pública e esmagava implacavelmente quem violasse essa ordem e suposta segurança jurídica. Vítima dessa noção de paz, foi Jesus Cristo, que trouxe uma nova proposta de vida, em muitos aspetos contrária ao pressuposto de que, como o indivíduo não é capaz de contribuir individualmente para a paz da comunidade a não ser que veja os seus interesses pessoais salvaguardados, é necessário que o Estado ou o Regime político imponham a sua própria visão da paz coletiva através de uma ação coerciva forte e dissuasora.
A evolução dos Estados modernos, como garantes dos direitos civis e individuais, procurou incluir nas formas de proceder governativas um conjunto de medidas que reconheciam e incluíam algumas ações/decisões como garantias da paz entre as pessoas nas comunidades, nomeadamente, a defesa da liberdade individual e de expressão. Foi o desejo incontido de salvaguardar uma liberdade individual, considerada sagrada, que levou povos à revolução, na busca de regimes políticos onde essa mesma liberdade fosse respeitada. Basta olharmos para a Revolução dos Cravos.
A luta pela liberdade pode considerar-se como expressão do desejo de alcançar uma liberdade perdida, usurpada pelo excessivo poder do Estado sobre os indivíduos. A História Humana, a Ocidente e a Oriente, nas diversas culturas, e não obstante essa diversidade, apresenta-nos a luta constante dos povos pela conquista de um estado de paz, onde a liberdade e a justiça sejam uma realidade sentida e experimentada por todos sem exceção. Quando os Estados ou as pessoas entendem que não conseguem alcançar o que desejam, iniciam-se guerras fratricidas, com graves perdas de vidas humanas, destruição das condições de vida das populações e do seu potencial de desenvolvimento. Quase que poderíamos afirmar que a guerra tem a sua origem na inveja – no desejo de possuir o que está nas mãos de outro juntamente com o desejo de impedir que esse outro possa prosperar e ser feliz, vivendo a sua vida em paz. Penso que se pode aplicar este pressuposto tanto às relações pessoais como às internacionais. Acontece, porém, que os iniciadores das guerras acabam quase sempre por ter um fim bastante infeliz, juntamente com o inevitável sofrimento que provocam. Para dar um exemplo, basta observar o que aconteceu ao regente do Japão, Toyotomi Hideioshi, considerado um dos três grandes “pacificadores” do japão (responsável pela maior perseguição feita a cristãos nesse país, em que foram mortas mais de 60 mil pessoas) que, em 1592, invadiu a Coreia para atingir a China, destruiu 66% das terras cultiváveis da Coreia, tendo extraído os intelectuais coreanos para o Japão. Quando a guerra terminou (Guerra Imjin), em 1598, morreu, ficando a sua morte em segredo para não baixar o moral do exército e da população. Estes factos mostram-nos que, para organizar uma guerra, os governantes têm de convencer os seus povos de que a guerra é a única solução dos problemas e é melhor do que a paz existente nesse dado momento. E como é difícil convencer consciências críticas da bondade e interesse geral de uma solução de guerra, os povos só iniciam uma guerra pelo exercício coercivo do poder de quem governa ou pela manipulação da informação e do conhecimento, tanto a Oriente, como a Ocidente. Ainda hoje a estratégia utilizada por quem tem interesse em fazer a guerra, ou em manter a todo o custo o seu poder, é cortar o acesso das populações à informação e ao conhecimento. Boas relações entre os povos e a valorização das múltiplas culturas, com a sua riqueza, impedem o emergir das guerras.
No dia 14 de setembro, o Papa Francisco esteve no encontro inter-religioso no Azerbeijão e afirmou que não é “a contraposição mas a colaboração que ajuda a construir sociedades melhores e pacíficas”. O Papa desafiou o Azerbeijão a continuar a sua missão de “porta entre o Oriente e o Ocidente”[1], cultivando a “sua vocação de abertura e encontro, condições indispensáveis para construir sólidas pontes de paz e um futuro digno do ser humano”. Não faz, assim, qualquer sentido que possa haver religiões, como seres humanos bem formados, a defender ou a ser coniventes com a guerra e a sua consequente destruição da Terra e das pessoas.
Já na Encíclica Populorum Progressio[2], sobre o desenvolvimento dos povos, publicada em 1967, o papa Paulo VI afirmava que “desenvolvimento é o novo nome da paz”. Na Populorum Progressio, entre títulos, cabeçalhos e texto, o termo “desenvolvimento” aparece 77 vezes e o termo “paz” aparece 22 vezes, o que significa que a paz é a finalidade do desenvolvimento e que o desenvolvimento também só pode acontecer, tendo como condição a paz entre os povos. Sem paz, nada funciona, nem a vida pessoal, nem a vida coletiva. A paz é, assim, a condição de um novo mundo e de uma nova vida. No Evangelho de João (Jo 14, 27-31) Jesus, juntamente com a promessa do Espírito, dirige-se aos discípulos para lhes deixar o seu legado de paz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz”. Mas é uma paz que não se refere ao formato de aparente paz do “mundo”, tantas vezes envolta na coerção, no desespero, na falta de liberdade autêntica e apoiada na injustiça e no medo, mas a paz interior, aquela que vence o medo, que nos deixa livres para pensar e realizar, e que levou a Jesus e leva os seus discípulos a atuarem como autênticos construtores de paz, vencendo a inveja, e reconhecendo esta Terra como o lugar, o espaço e a oportunidade de receber o dom da vida para todos e cada um. Como seria tão melhor o nosso mundo pessoal e comunitário se cada um acolhesse um verdadeiro espírito de paz na sua vida.
[1] Expressão de João Paulo II, em Baku, 2002