Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem

O Silêncio em São João da Cruz

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Há sentido no silêncio atualmente? Na nossa sociedade globalizada, onde não nos faltam recursos para nos mantermos em contacto e informados, precisamos ou queremos o silêncio? Com todas as nossas faculdades para a comunicação e para o relacionamento, para elaborar raciocínios, será o silêncio uma necessidade? Não será um obstáculo à produção continua de conteúdos? Estará o homem constituído para o silêncio?

Nesta sociedade, escravizada pela contínua estimulação, falar de silêncio parece algo estranho. É ir contra a corrente, é querer quebrar esse ciclo que nos mantém sempre ativos e a fazer coisas, muitas vezes, sem sentido. O silêncio – já seja de palavras, de pensamentos, de imagens, de qualquer tipo de estímulos – parece ser algo estranho ao nosso estilo de vida. Porém, não é raro escutar as pessoas – cansadas, esgotadas pelo andamento da vida moderna – dizer que o necessitam.

O silêncio, tal como a solidão que era tema na última entrada sobre a espiritualidade de São João da Cruz (SJC) neste blog, tem conotações ambíguas, pode ser algo negativo ou positivo.

Pensemos em quantos foram e continuam a ser silenciados na sua liberdade de expressão pela censura. Assim visto, o silêncio é algo claramente negativo. Pensemos também em quantos por falta de iniciativa silenciam as próprias opiniões. Ou em quantos são ignorados segundo a ‘lei do mais forte’. A procura do silêncio pode estar também motivada por razões negativas, como a procura de isolamento, como desinteresse apático pelo vida e pelo mundo à volta.

No entanto, quando escutamos os nossos contemporâneos dizer que o necessitam é porque, geralmente, veem  nele um lado luminoso. O silêncio pode ser eloquente, pode falar por si mesmo. Pode ser fecundo, pode ser um espaço ou ambiente onde germinam muitos e bons frutos. Pode ser relacional, um ambiente onde se estreitam laços de amor, quando as palavras perdem a sua expressividade e o silêncio expressa aquilo que elas já não podem expressar. Pode ser expressão de assombro e de admiração perante uma determinada realidade nova que se apresenta diante de nós, e que calando tudo em nós e à nossa volta nos permite admirá-la. Pode ser um silêncio orante e/ou contemplativo, onde nos relacionamos com o divino. E pode ainda ser ser um esforço ascético da nossa parte por calar aquilo que nos distrai de nós mesmos e da presença de Deus em nós.

Voltemos, então, à imagem poética do Pássaro Solitário de SJC, que tem um canto muito suave: o silêncio. Esta imagem poética surge num momento da vida espiritual – o desposório espiritual – em que o silêncio é visto já na perstpetiva teologal e contemplativa, mas, para compreender melhor este sentido do silêncio, vejamos que sentidos lhe dá São João e como eles se integram na vida espiritual.

O silêncio não ocupa um papel central na forma como SJC ensina e transmite aquilo que é a vida espiritual. No entanto, é um elemento basilar para criar o ambiente certo para promover a experiência que o ser humano possa fazer de Deus. No conjunto da doutrina sãojoanista o silêncio pode ser apreciado desde duas perspetivas: desde a relação com Deus, a chamada dimensão teologal; e desde a perspetiva ascética, do trabalho que o próprio orante faz com a finalidade de viver a relação com Deus.

SJC concebe a relação de Deus com o ser humano fundada na iniciativa divina, é Ele quem sai ao encontro do homem e quem estabelece o como há de acontecer esta relação. Deus, que fala sempre “em eterno silêncio” (D 99) e que no silêncio se expressa e revela, é “música calada” (CB 15). Ele faz-se presente no “centro e fundo da alma” de cada homem de forma silenciosa, ali estabelece a sua morada “secreta e caladamente” (ChB 4,3). Por isso, aquele que quer relacionar-se com Ele deve manter “a paz e o silêncio espiritual” (ChB 3,66), porque “aquilo que Deus faz na alma […] é em silêncio” (ChB 3,67) e em silêncio há de ser acolhido. Fazer experiência de Deus é para SJC contemplação, que ele denomina “calada comunicação” (ChB 3,40), a qual acontece “naquele sossego e silêncio da noite” (CB 14,25). Assim, um primeiro critério para dar continuidade à relação que Deus inicia com cada um de nós é o silêncio, uma atitude de abertura para acolher a obra de Deus em nós. Isto implica necessariamente calar todas as coisas que fazem ruído sobre o obrar silencioso de Deus: “esta sabedoria altíssima e linguagem de Deus, como é a da contemplação, não se pode receber senão em espírito silencioso e arredado de sabores e reflexões” (ChB 3,37). O silêncio, quer exterior como interior, é, portanto, uma condição para relacionar-se com Deus e para receber a sua auto-comunicação silenciosa.

Além de uma exigência para se relacionar com Deus, o silêncio é um fruto dessa relação no ser humano: “quando a alma sentir que desta maneira se põe em silêncio e à escuta” (ChB 3,35), pois Deus atua sobre as faculdades e apetites da alma “adormecendo-os e silenciando-os” (2 N 24,3). Deste modo, Ele faz a alma “saborear a ociosidade da paz e do silêncio interior” (ChB 3,66).

O silêncio para SJC é também na relação com Deus uma atitude de escuta. Pois para o Santo, Deus comunica-se ao homem através do silêncio e está desejoso de ser escutado por ele. Por isso mesmo, Deus auxilia o homem no caminho espiritual para o capacitar para a escuta atenta e amorosa: “estas almas deram muito trabalho a Deus para as trazer até aqui; por isso, muito se preza de as ter conduzido até à solidão e vazio das suas potências e operações para lhes falar ao coração, como é sempre seu desejo” (ChB 3,54).

Cristo, a Palavra eterna de Deus Pai, condensa na sua pessoa tudo aquilo que Deus quer comunicar ao ser humano (cfr. 2 S 22,3). E assim o convite de Deus é sempre a escutar atenta e continuamente o Filho, pois “Uma palavra falou o Pai, que foi o seu Filho, e di-la sempre em eterno silêncio, e em silêncio a há de ouvir a alma” (D 99). Só desde o silêncio profundo, em atitude de acolhimento, pode o ser humano relacionar-se com Deus. Assim, SJC convida, numa carta dirigida a Ana de S. Alberto, a uma atitude de silêncio e esperança: “no silêncio e na esperança está a nossa fortaleza” (Ct 30), fazendo eco de Isaías 30,15. O Santo une silêncio e esperança numa atitude global de atenção amorosa diante de Deus.

Desde a perspetiva ascética, SJC ao falar do silêncio adverte para os perigos do muito falar. Diz claramente numa carta dirigida às carmelitas descalças de Beas: “o que falta […] é […] calar e agir. […] o falar distrai, enquanto que o calar e agir recolhe e fortalece o espírito”. Mais, o silêncio é um sinal da maturidade espiritual: “a alma que cedo se põe a falar, muito pouco atenta está a Deus” (Ct 8). O falar muito é uma das imperfeições da vida espiritual (cfr. D 121) e como remédio o Santo exorta: “Como te atreves a folgar sem nenhum temor, se tens de comparecer diante de Deus para prestar contas da mais pequena palavra e pensamento?” (D 73); “considerem que Deus leva em conta cada palavra que tiverem dito sem ser por obediência.” (D 84).

Havendo perigo no muito falar é necessário saber pôr um freio às palavras e aos pensamentos, pois “grande sabedoria é saber calar” (D 108). O silêncio é “a maior necessidade que temos” (Ct 8) no relacionamento com Deus, sem ele “é impossível ir aproveitando” (ib.). SJC deixa claro qual deve ser o modelo para alcançar a sabedoria do silêncio: “Não fazer coisas nem dizer palavras notáveis que Cristo não diria nem faria se vivesse no estado em que eu estou e tivesse a idade e saúde que eu tenho.” (Graus de Perfeição, 3). A imitação de Cristo, para SJC, há de orientar a nossa vida em todas as suas dimensões: “esta vida, se não for para O imitar, não presta” (Ct 25).

A ascese na doutrina espiritual de SJC, e em particular a ascese do silêncio, tem um objetivo muito claro: abrir a pessoa para a relação com Deus, sem este horizonte a prática de qualquer tipo de virtudes não tem sentido. O silêncio como esforço feito pelo ser humano deve estar encaminhado à escuta atenta e amorosa de Deus, que nos disse tudo em Cristo Jesus e que nos continua a falar em silêncio.

Quando no Cântico Espiritual o Poeta Místico evoca o Pássaro Solitário, como imagem do orante que se encontra na fase de desposório espiritual, e diz que o seu canto suave é o silêncio está a falar-nos da oração contemplativa do orante, que acontece no silêncio. O qual, neste momento da vida espiritual, é já um dom divino. É ao mesmo tempo o estado da alma do orante (alcançado pela graça divina) e a comunicação do próprio Deus ao orante.

Porém, para chegar a este momento da vida espiritual devemos seguir os conselhos de São João da Cruz, de perseguir ativamente o silêncio como disposição para deixar-se encontrar por Deus e para iniciar uma relação com Ele. Sem dúvida, hoje São João da Cruz continuaria a convidar-nos ao silêncio, pois é o ‘espaço’ e o ‘ambiente’ onde podemos escutar Deus, que tem uma morada no mais profundo mais íntimo de cada um de nós. O Silêncio é  o ‘espaço’ e o ‘ambiente’ onde desenvolver a nossa relação com Ele, estreitando os laços do amor até à união com Ele.

P. João Carlos Vieira

Carlos Vieira

Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem

Há sentido no silêncio atualmente? Na nossa sociedade globalizada, onde não nos faltam recursos para nos mantermos em contacto e informados, precisamos ou queremos o silêncio? Com todas as nossas faculdades para a comunicação e para o relacionamento, para elaborar raciocínios, será o silêncio uma necessidade? Não será um obstáculo à produção continua de conteúdos? Estará o homem constituído para o silêncio?

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