Mai 27, 2025 | Casa comum, Permanecei no amor

Educadora Social

BÊTANIA, ENTRE LINHAS E CLIQUES

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Betânia somos nós: espiritualidade, amizade e crescimento na adolescência como caminho de montanha.

Seguem linhas que ajudam à hermenêutica do livro BETÂNIA, e linhas cliques a ser apresentado no primeiro dia do mês de junho de 2025, Dia Mundial da Criança, no Convento do Carmo de Braga, às 15:00. Desde já, sintam-se todos convidados! O livro centra-se na figura de Betânia, uma adolescente que, em diálogo com dois adultos, consolida uma jornada de descoberta interior, de crescimento espiritual e construção de sentido. Através duma análise cuidadosa do conteúdo e seu enquadramento simbólico, propomos, neste texto uma leitura que se articula em torno duma dupla chave – educativa e espiritual –, fundamentadas numa pedagogia da escuta e da amizade com maiúscula. A narrativa releva da importância do vínculo intergeracional, da comunicação como espaço de encontro e da abertura à relação eu/tu, e ao mistério relacional como condição essencial para o crescimento humano.

1. A adolescência como tempo de travessia. A adolescência é, por excelência, um período de passagem, repleto de questões e mais questões que se avolumam e de procuras que desafiam o sentido do andar e da vida. É um verdadeiro caminho que, quando iniciado, parece não ter fim. A personagem, por nós criada para este livro, de seu nome Betânia, simboliza este espaço da adolescência que, enraizada na terra da tradição e da comunidade, levanta os olhos à procura de respostas e mais respostas, querendo caminhar com segurança e nunca só. Não é por acaso que transporta o nome dum lugar bíblico – nada mais que a casa da amizade, da escuta e do acolhimento tanto corporal como espiritual; assim vemos Betânia. O livro aqui em análise, apresenta-se, pois, como um diálogo em curso mediado por uma troca de e-mails entre Betânia e dois adultos – eu, Verónica Parente, e o Frei João Costa; propõe-se também como um itinerário de atenção à interioridade, mas não só, de reflexão, educação e espiritualidade.

É sempre Betânia quem abre as portas ao diálogo.

2. A adolescência como lugar de procura e de sentido. Betânia enquanto personagem evoca uma adolescência sedenta de sabedoria, inquietude e sensibilidade pelo invisível. A sua alma crescentemente “curiosa e ágil”, remete para o que Viktor Frankl (2008) designou como a “vontade de sentido”, uma característica inerente à condição humana. Para Frankl, o ser humano não vive apenas de instinto ou prazer, mas da procura incessante por um significado, um sentido para a vida. Esta sede de procura e de transcendência é também apontada por Buber (2002) como expressão do “Eu-Tu”, ou seja, de relação autêntica com o outro e com o sagrado. Ao procurar entender o mundo e o coração dos outros, Betânia inscreve-se numa pedagogia da escuta e da alteridade e, muitas vezes, de urgência de silêncio, para que possa parar, pensar, solidificar o caminho que a espera, e também questionar. A educação, como referem Freire (1996) e Gadotti (2003), deve ser um ato dialógico, onde o educando é um sujeito ativo da sua aprendizagem, e não um mero recetor de conteúdos. Betânia é, neste sentido, tanto educanda como educadora, na medida em que provoca em nós, adultos, que a acompanhamos, um constante (re)aprender.

Que grande didata temos entre nós!

3. A amizade como espaço educativo e espiritual. A relação entre Betânia, Verónica, João e os leitores, não é meramente orientadora; é uma verdadeira amizade espiritual. Esta amizade recorda a hospitalidade evangélica de Marta, Maria e Lázaro. Tal capacidade de acolhimento expressa na amizade genuína é também um espaço de crescimento mútuo.  Assim foi a escrita deste livro. Assim foi escrita cada página e cada badana e lavrado cada desenho. Como afirma Nouwen (1989), o verdadeiro acompanhamento espiritual nasce da vulnerabilidade partilhada e da escuta silenciosa. Já o grupo português Silence 4, cantava, há alguns anos, na música “Eu não sei dizer” que:

“O silêncio, deixa-me ileso,
e que importância tem?
se assim, tu vês em mim,
alguém melhor que alguém,
sei que minto, pois o que sinto,
não é diferente de ti,
 não cedo, este segredo,
é frágil e é meu”.

Quem acompanha os mais novos deve assumir-se como “candeia” e “oleiro fanado», consciente de que, mais do que ensinar ou errar, importa caminhar juntos. Esta relação educativa, sustentada no afeto, no amor e na escuta, liga-se àquilo que Pestalozzi já defendia no século XIX: a educação do coração. Segundo ele, ensinar é amar – e é na ternura dos vínculos que o saber se transforma em vida. Assim o fizemos em cada clique dado no teclado do computador, e na troca de palavras para alcançarmos escrever as páginas deste livro dirigidas às muitas Betânias do Carmo Jovem e não só, incluindo meninos.

Hoje, autores como Carbone (2019) ou Delors (1996) reforçam que aprender a ser e aprender a conviver são pilares incontornáveis da formação integral. Só assim vemos e nos (re)vemos neste “caminho da montanha” que queremos comum!

4. A linguagem como mediação de crescimento. Esta troca de e-mails revela o poder da palavra escrita como espaço de encontro, usado de forma positiva, mesmo se a velocidades espontâneas. Num tempo marcado pela aceleração digital e pela superficialidade comunicativa (Han, 2017), a escrita pausada, meditativa e interpelante dos e-mails da adolescente Betânia propõe-nos uma contra narrativa. Cada mensagem é um convite à introspeção, ao silêncio e à escuta interior – aquilo a que Rilke (2001) chamava de “vida interior”. Para ela, escrever é mais do que comunicar: é transformar, significar e também orar. E para quem a lê, é também aprender a escutar no intervalo das palavras – escutar um mundo questionadoramente adolescente que exige e grita por presença, embora o não pareça.  A linguagem torna-se, assim, um lugar de encontro maior, um lugar teológico onde se manifesta uma Presença que guia e ilumina todos os intervenientes deste livro de que hoje vos falo. Esta ideia ressoa na teopoética de Lévinas (1993), ao defender que o rosto do outro nos interpela com exigência ética e espiritual.

5. A espiritualidade como horizonte educativo. O livro propõe também uma espiritualidade quotidiana, enraizada na experiência concreta, onde se escuta a voz do Espírito na rotina e nas palavras simples das perguntas da adolescência. A fé aqui não é um dogma imposto, mas um caminho oferecido, um trilho que se percorre em liberdade e em comunidade. Nunca só. Nunca desérticos. Nunca ocos. Nunca ilhas. Segundo Marcel (2006), a fé é uma abertura ao mistério e um compromisso com a esperança – uma atitude fundamental para qualquer educador. Ao procurar compreender o sagrado, Betânia reconhece-se como principiante e interroga-se diante das incertezas. Esta humildade é, como refere Santa Teresa de Jesus (2007), condição para a verdadeira vida espiritual: “humildade é andar em verdade”. A espiritualidade proposta no livro é, portanto, um ethos de escuta, de interdependência, relação e compromisso com o bem comum.

6. Caminhar juntos: educação como peregrinação. A imagem do “caminho de montanha” atravessa todas as páginas do livro. Este símbolo, profundamente bíblico e existencial, remete para a pedagogia da peregrinação: um caminhar que forma, transforma e une, inclusive o diferente e diverso, que rompe sola de sapatos nas pedras aguçadas dos caminhos, que bebe das frescas fontes, que vê amanheceres e por de sóis, que colhe flores, que abraça, chora e ri, que escuta o chilrear dos pássaros, o ronronar da terra e se deita a descansar à sombra duma árvore generosa…Tal como em Emaús, e em tantos outros lugares, o caminho torna-se escola, onde se aprende a interpretar os sinais da vida (Lucas 24:13-35). A educação aqui, porém, não é linear, mas feita de hesitações, surpresas, quedas e avanços. Aqui os adultos reconhecem-se aprendizes, tal como Betânia, a personagem deste livro, e assumem que o melhor caminho nunca é aquele em que “se caminha só”. Como lembra Palmer (1998), ensinar é criar espaços onde a alma possa emergir. E isso só é possível em ambientes marcados pela confiança, pela escuta e pela presença do outro na nossa vida. É este ambiente que a troca de e-mails simboliza.

7. Betânia é também Kiko e Anna. Betânia não é apenas uma celebridade; é uma presença que se multiplica e se espelha noutras vidas, em muitos amores. É também o Kiko e a Anna, jovens catalães multidesafiados; ela é pessoa autista; ele, portador de paralisia cerebral. Eles, como Betânia, são nossos mestres e nossos aprendizes – ensinam-nos com a sua generosidade silenciosa e com a arte que nasce dos seus ágeis lápis e pincéis postos a voar pelas suas mãos e seus corações. Também eles pertencem à comunidade da nova Betânia, a de hoje, onde as fronteiras não são geográficas nem institucionais, mas delineadas no território invisível do amor, da paz e dos silêncios acolhedores que trazem consigo, disponíveis para nos acolher e acolher o mistério. Talvez ambos nunca leiam este nosso livro, escrito em português; e ainda assim, já nos disseram tanto, já fizeram outro tanto no tanto destas páginas, através dos traços e das cores, da permissão generosa de publicarmos o que criam, da entrega das suas presenças e das presenças das suas famílias que chegam até nós por meio deles. E é assim que Betânia continua alargando-se em círculos afetivos e criativos, numa comunidade que se funda não na origem, mas na entrega, no amor absoluto que passa fronteiras, que une, por agora, a península. Para completar esta ideia só me ocorre concluir com uma citação de São João da Cruz que reflete a entrega bondosa e amor absoluto: “Onde não há amor, coloca amor e encontrarás amor”. Sim. É por aqui o caminho: a essência da generosidade, com destaque para a importância de cultivar o amor, mesmo onde ele parece ausente. E tanto, mas tanto, esta ausência me recorda o mundo em que vivemos.

8. Conclusão. Centrando-me na figura de Betânia, só posso reconhecer que ela é mais do que um compêndio de mensagens: é uma narrativa iniciática, uma proposta de educação integral, onde se cruzam espiritualidade, amizade, acolhimento, interrogação, incerteza, relação, sagrado, mistério, linguagem e sentido. Sim, quando pensámos este livro, o nosso sentido foi dar sentido. Tal foi a forma como o sonhamos e, por fim, concretizamos! Este livro é também um convite a ler a adolescência como terreno fértil de revelações e possibilidades. A metáfora do pão partilhado – “nunca sós comemos o pão” – revela, por último, o espírito que atravessa estas páginas: ninguém cresce sozinho, ninguém diante do horizonte deve interrogar-se sozinho, todos somos mestres e aprendizes ao longo da vida. Termino afirmando que, em breves linhas, procurámos demonstrar que a escrita, quando atravessada pelo desejo de sentido, pode ser um potente instrumento educativo e espiritual.

9. Arrisca-te também nesta aventura! – Sempre.

Referências
Buber, M. (2002). Eu e Tu. São Paulo: Centauro.
Carbone, E. (2019). Educar com o coração: pedagogia da presença e da empatia. Vozes.
Silence 4. (1998). Eu não sei dizer [Canção]. Em Silence 4. BMG.
Delors, J. (Ed.). (1996). Educação: um tesouro a descobrir. UNESCO.
Frankl, V. E. (2008). Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Vozes.
Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.
Gadotti, M. (2003). Pedagogia da Terra. Peirópolis.
Han, B.-C. (2017). A sociedade do cansaço. Edições 70.
Lévinas, E. (1993). Ética e Infinito: diálogos com Philippe Nemo. Vozes.
João da Cruz, S. (2005). Obras completas. Edições Carmelo.
Marcel, G. (2006). O mistério do ser. Paulus.
Nouwen, H. J. M. (1989). A vida espiritual. Paulinas.
Palmer, P. J. (1998). A educação como uma jornada espiritual. Edições 70.
Rilke, R. M. (2001). Cartas a um jovem poeta. Relógio D’Água.
Teresa de Ávila. (2007). Caminho de perfeição. Paulinas.

Verónica Parente

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