Fev 13, 2024 | Casa comum, Permanecei no amor

Pintora e Educadora Social

O Divino Pintor e os outros em emendas de sentimentos

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Demos início à obra artística hoje mesmo. Talvez precisemos de mais amor e generosidade. Amor no coração e generosidade na alma. Subamos ao alto da serra, às cumeadas revestidas de neve das altas montanhas. E quando descermos pintaremos mais vivamente na nossa alma, a virtude do desprendimento das coisas terrenas. O degradé de cores do Divino Pintor. Sejamos espelho e abracemos o outro que clama por nós, n´Ele.

Conheço o atelier de alguns pintores. E desalinho e alindo o meu pobre e humilde atelier. Quadros, pincéis por todos cantos, tintas, panos, bancos, banquinhos, telas brancas, telas em espera, telas, telas, telas. A arte em desordem! Em caos. Para que servem a desordem e o caos? Talvez, para que algo nasça e se crie. Sim, passadas longas horas, dias, talvez anos, a obra nasce. Demoradamente. Aturadamente, porque tudo tem o seu tempo e espaço. Com mais ou menos cores, cuidadosamente se pinta uma tela, se faz nascer ou (re)nascer uma obra de arte. Ao terminar, a mesma é olhada de diferentes ângulos, luzes, expectativas. Nunca na mesma perspetiva ou com a mesma lupa do pintor. É maravilhoso ser artista e apreciar uma obra. Mas, mais maravilhoso é saber contemplar! Contemplar uma obra é já por si arte. E contemplar as obras da criação do Divino Pintor, é uma arte ainda mais extraordinária! Como é belo passar a vida a contemplar a Cristo em nós! Cristo nos outros! Cristo numa ponte no Gerês! Numa florinha tenra de um dia só! Numa formiga…  Isto sim, isto é que são pinceladas divinas, arte genial. Contemplar é, e deverá ser sempre assunto de todos e para todos. Até mesmo para os que não têm fé, até para aqueles que não acreditam! Até para os que a uma maçã chamam só maçã, e a uma vela, só vela! Contemplar em tempo de desconfiança e desencanto deveria urgir de nós um alto gau de serenidade para partimos ao encontro de nós e dos outros.

Nunca esquecerei o ambiente de paz que se vivia no alto da Serra d’Arga – Caminha, Viana do Castelo –, um sítio que recomendo visita urgente. Lugar onde passei bons e belos momentos da minha juventude.  Apoiada no ombro e na música Longe do Mundo, da Sara Tavares, artista portuguesa, nostálgica, recordo, hoje, esse local; canta ela: «Longe do mundo, perto de ti; peço conforto de quem eu fugi; perdida, esquecida eu oro a ti». Longe do mundo, mas perto de D´Ele, repetidamente vejo os altos das serras e das montanhas como autênticos sacrários. Lugares solitários, perdidos no meio das serranias, são para mim lugares que atraem o olhar e o coração. No alto das montanhas contemplo o longe (e o perto), como num elástico… No alto das montanhas, recolhidos e cuidados pela mãe natureza, vivem-se confidências íntimas, e escrevem-se os mais belos poemas com o pensamento, a lupa do nosso olhar, e o cadinho do nosso coração. No alto das montanhas afastamo-nos do ruído do mundo e rezamos por esses mesmos ruídos, pois o profundo silêncio convida à meditação; tudo ali ajuda a meditar no mistério de Cristo. Na imensidão do tudo, nada somos…

De facto, o esforço de subir a uma serra revela possibilidades e oportunidades. O meu hoje recorda-me uma caminhada espiritual bebida numa espiritualidade do século XVI, especialmente em São João da Cruz: tal é o que no Místico Doutor tanto admiro e contemplo; e não vejo outro místico que tanto em mim tenha feito: a possibilidade de contemplar, em confiança, a ternura das cores do coração do Divino Pintor!

No alto das montanhas ouço ainda mais intimamente certas palavras; por exemplo: «Eu estarei convosco» (Mateus 28:20). Aquele que passou pelos caminhos fazendo o bem – e foram tantos os que n’Ele encontraram a consolação que necessitavam – diz-me: «Eu estarei sempre contigo, convosco!». «Até ao fim». Aquele que no Seu coração guardou as delicadezas mais supremamente divinas para a hora suprema do amor, diz: «Eu estarei convosco!». E hoje? Onde busca, hoje, o Homem o amor? Onde busca ajuda quando dela precisa? Sentindo-me bem no alto de uma montanha de frios ventos que me acariciam, leio-O e vejo-O com um olhar cheio de bondade acarinhando-me e dizendo-me (e dizendo-nos): «Filhinhos, dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros: como eu vos amei, assim também vos deveis amar mutuamente» (João 13:34).

Deveríamos subir frequentemente ao alto de uma serra, ao mais alto cume duma montanha, como quem desce à mais tenra realidade da terra, para nela ser para os outros o que Cristo foi para nós! Mas como, se vivemos num tempo apressado, e nem tempo temos nem para nós, quanto mais para o outro?

Vivemos num mundo apressado, incitado pela velocidade de um simples piscar de olhos, iscado por um rápido zipar, por um simples teclar que pronto nos transporta para outra galáxia, outro universo. E, além disso, as pessoas não são máquinas… Onde, pois, em nós há lugar para o outro? Onde em nós existem cores que arranjem, curem e alindem o coração do outro? Onde florescem jardins para que os sentimentos falem mais belamente alto ao outro? Por muito que se ame uma pessoa, ocasiões há em que se torna aborrecida a sua presença e logo desejemos estar ausentes. Ausentes, em solidão. E como estabelecer uma relação de ajuda com o outro que tanto espera de nós quando não estamos para ele virados?  

Como tanto temos de aprender com o Divino Pintor que é Cristo!

Nas relações com o outro somos pobres. Sim, somos pobres e frágeis. Mas empobrecemo-nos perigosamente mais quando mais promovemos, no interior da Igreja, uma forma mesquinha de contemplar e viver a relação com o outro e com Deus. Temos medo e não saímos da caixa. Não vamos ao encontro do outro, não elevamos o nosso EU em função da pequenez dos outros.

A meu ver, no nosso quotidiano, até mesmo que de forma inconsciente, a relação de ajuda ao outro deveria assemelhar-se muito à postura assumida por Aquele que confortou e nos conforta no silêncio do cume de uma montanha: Cristo. É que só n´Ele bem encontraremos o outro ferido e rasgado. E como é necessário sentirmos verdadeiramente o outro como igual a qualquer um, compreendê-lo e acreditar verdadeiramente nele! Senão, repare-se: caso não estejamos preparados para sermos genuinamente nós nesta relação com o outro, e para agir em conformidade com a mesma genuinidade, a nossa ação pode ser-lhe danosa (Guerra & Lima, 2005).

O estabelecimento de uma relação de ajuda pode ser um esforço hercúleo, constituindo-se por si só muito desafiante. Aliás, as características de quem procura o outro numa relação de ajuda podem ser diversas; por norma, porém, o que nos leva a pedir ajuda é o sofrimento que se sente (Soriano, 2005). E quantos não sofrem a nosso lado sem nos percebemos?! Não raro, esta situação em que se encontram acaba por ter impacto profundo nas suas próprias pessoas ao nível da autoestima, desespero, angústia, entre outros sintomas e sentimentos negativos (Soriano, 2005). O que mais frequentemente se verifica, segundo Soriano (2005), é que quem pede ajuda tem muita dificuldade em se implicar no próprio problema, uma vez que considera que o mesmo é única e exclusivamente resultado de fatores externos, não percebendo, que a mudança deve partir da sua própria pessoa (Soriano, 2005).

E, portanto, por onde começar o caminho até ao alto da serra?

Aprendamos que a contemplação é uma escola que ajuda a aprofundar (e purificar) a nossa fidelidade a Divino Pintor. Que ajuda a sairmos de nós mesmos e a irmos ao encontro do outro. Aliás, também Ele, ao longo da sua caminhada, foi descobrindo que o Pai Lhe pedia fidelidade e não êxito imediato. E o mesmo também nos pede Ele a nós – fidelidade e não êxito!

Certas experiências deveriam ajudar-nos a deixarmos de ter peneiras e a nos constituirmos mais humildes, mais fiéis, e mais capazes de ir com uma paleta de cores novas e vibrantes ao encontro do outro. Sim, como tanto urge sair das quatro paredes onde alimentamos o nosso ego! Das mesmas onde somos doutores e imperadores do nosso gato ou periquito! Na verdade, quanto mais tarde aprendermos a ser humildes mais tardaremos em a ser verdadeiramente humanos com competências relacionais.

Proponho, pois, um desafio: subamos, de quando em vez, ao cume duma serra como quem toma um banho de humildade, a fim de melhor podermos ir ao encontro dos outros. Talvez assim melhor percebamos que ainda temos um longo caminho pela frente e que as características que são tão importantes no ser humano têm de ser genuínas, não forçadas. Todavia, considero que com o tempo este processo amadurecerá e tornar-se-á mais natural em nós, porque a reflexão e a consciência de nós próprios ditarão em grande medida o decorrer do desafio do sairmos ao encontro do outro.

Referências

Guerra, M., & Lima, L. (2005). Intervenção psicológica em grupos em contextos de saúde. Lisboa: Climepsi.

Soriano, J. M. (2005). Los procesos de la relación de ayuda. (2ªEd.). Editorial Desclée de Brouwer: Espanha.

Tavares, Sara. (1990). Longe do Mundo. Consultado a 03 de fevereiro de 2024 em https://www.letras.com/sara-tavares/525185/

Demos início à obra artística hoje mesmo. Talvez precisemos de mais amor e generosidade. Amor no coração e generosidade na alma. Subamos ao alto da serra, às cumeadas revestidas de neve das altas montanhas. E quando descermos pintaremos mais vivamente na nossa alma, a virtude do desprendimento das coisas terrenas. O degradé de cores do Divino Pintor. Sejamos espelho e abracemos o outro que clama por nós, n´Ele.

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