A conversão para a ecologia integral envolve uma preocupação pela natureza que renuncia a fazer dela um mero recurso e objeto de domínio, falando a língua da fraternidade nas relações com o mundo e o próximo, sentindo uma união com tudo o que existe. Daí uma maior sobriedade nos estilos de vida e uma cultura do cuidado nas relações com os outros.
No próximo domingo 1 de setembro, abre-se para os cristãos o Tempo da Criação, período ecuménico de oração ao nosso Criador, momento anual de reflexão e renovação do compromisso com o cuidado da nossa casa comum. Este período de cinco semanas começa com o Dia Mundial de Oração pela Criação, e termina no dia 4 de outubro, com a Solenidade de São Francisco de Assis, o santo afeiçoado ao Louvor a Deus pela criação e proclamado padroeiro da ecologia pelo Papa João Paulo II em 1999.
Foi o Patriarca ortodoxo Dimitrios I, preocupado com os sinais de pobreza e degradação ambiental, que proclamou em 1989 um dia de oração pela criação, precisamente no primeiro dia do ano litúrgico ortodoxo em que se comemora a criação divina.
Dois anos antes, a Comissão Mundial do Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) tinha publicado um relatório que propôs uma “agenda de mudanças globais”, com objetivos mundiais que possam interligar ambiente, recursos, bem-estar dos povos e desenvolvimento sócio-económico, “sem comprometer a possibilidade de as futuras gerações satisfazerem as suas necessidades”[1]. Ou seja, um objetivo global de desenvolvimento sustentável, que vai fazendo o seu caminho até aos nossos dias[2].
O sucessor de Dimitrios I, o Patriarca Bartolomeu I, conhecido internacionalmente como o “patriarca verde”, empenha-se ainda mais na questão ambiental, até considerar a degradação e a destruição da natureza como um pecado contra a criação[3]. Logo a partir do início do nosso século, diversas comunidades e igrejas cristãs aderem à instituição do dia de oração. Ao longo dos anos 2000, o Conselho Mundial das Igrejas desempenhou uma influência decisiva na extensão do dia para o Tempo da Criação das cinco semanas.
Foi precisamente na primeira década do séc. XXI que o Papa Francisco faz a sua caminhada de “conversão ecológica”: «Da absoluta incompreensão, em Aparecida em 2007, à Encíclica [Laudato si’ (LS), 2015]. Gosto de dar testemunho disto. Temos que trabalhar para que todos percorram este caminho de conversão ecológica»[4]. Entenda-se uma conversão para a ecologia integral, que envolve uma preocupação pela natureza que renuncia a fazer dela um mero recurso e objeto de domínio, falando a língua da fraternidade nas relações com o mundo e o próximo, sentindo uma união com tudo o que existe. Daí uma maior sobriedade nos estilos de vida e uma cultura do cuidado nas relações com os outros, particularmente com os pobres e os mais vulneráveis (LS 10 e 11). Trata-se de uma mudança que deve realizar-se progressivamente à escala individual, em que cada pessoa reconhece erros e negligências, enfim os seus pecados. «Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspeto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa» (LS 217). O Espírito de Cristo nos ajude neste desafio pessoal, necessário para a promoção de uma tomada de consciência comunitária que possa agir em prol da criação.
A Encíclica Laudato si’ foi publicada em maio de 2015 e, logo em setembro, o Papa Francisco acrescentou o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação no calendário católico como um dia anual de oração. Em 2019, poucos meses antes do início da pandemia, convidou oficialmente os católicos a celebrarem o período completo.
«É hora de redescobrir a nossa vocação de filhos de Deus, irmãos entre nós, guardiões da criação. É tempo de arrepender-se e converter-se, de voltar às raízes: somos as criaturas prediletas de Deus, que, na sua bondade, nos chama a amar a vida e a vivê-la em comunhão, conectados com a criação.
Por isso, convido veementemente os fiéis a dedicar-se à oração neste tempo que, partindo duma iniciativa oportunamente nascida em campo ecuménico, se configurou como Tempo da Criação (…) É ocasião para nos sentirmos ainda mais unidos aos irmãos e irmãs das várias confissões cristãs. Penso de modo particular nos fiéis ortodoxos que celebram, desde há trinta anos, este Dia de Oração. Sintamo-nos em sintonia profunda também com os homens e mulheres de boa vontade, conjuntamente chamados, no contexto da crise ecológica que tem a ver com todos, a promover a salvaguarda da rede da vida, de que fazemos parte»[5].
Depois da pandemia, a Mensagem do dia 1 de setembro de 2021, assinada em conjunto pelo Papa Francisco, o Patriarca ortodoxo Bartolomeu e o Arcebispo anglicano Justin Welby, acaba com estas palavras: «Cuidar da criação de Deus é um mandato espiritual, que exige uma resposta de compromisso. Este é um momento crítico! Dele dependem o futuro dos nossos filhos e da nossa casa comum»[6].
O convite para o cuidar da criação é renovado na Exortação Apostólica Laudate Deum de 2023 (69-70):
«Convido cada um a acompanhar este percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo com o próprio contributo (…) Mas, o que realmente importa é recordar-se de que não há mudanças duradouras sem mudanças culturais, sem uma maturação do modo de viver e das convicções da sociedade; não há mudanças culturais sem mudança nas pessoas. Os esforços das famílias para poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata estão a criar uma nova cultura. O simples facto de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos. Note-se, pois, que, mesmo se isto não produzir imediatamente um efeito muito relevante do ponto de vista quantitativo, contribui para realizar grandes processos de transformação que agem a partir do nível profundo da sociedade.»
O Tempo da Criação de 2024 reveste uma importância redobrada na preparação do próximo ano pastoral e do Jubileu de 2025 em que seremos todos “peregrinos de esperança”. «Possa ser, para todos, um momento de encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus, «porta» de salvação (cf. Jo 10, 7.9)»[7] Além do mais, os carmelitas comemoram o Centenário da Canonização de Santa Teresinha, grande amiga e contemplativa da natureza, tal como a Santa Madre Teresa de Jesus. Teresinha chega a considerar os estados da sua alma como os reflexos da natureza, que incorpora muitas vezes nas descrições da sua vivência espiritual[8].
“Espera e age com a criação” é o mote do Tempo da Criação e do Dia de Oração pelo Cuidado da Criação, que se realizará no próximo 1 de setembro e que pode ser participada online[9].
«Refere-se à Carta de São Paulo aos Romanos 8, 19-25. O Apóstolo, ao esclarecer o significado de viver segundo o Espírito, concentra-se na esperança firme da salvação pela fé, que é vida nova em Cristo (…) A fé é um dom, fruto da presença do Espírito em nós, mas é também uma tarefa, a realizar em liberdade, na obediência ao mandamento do amor de Jesus. Eis, aqui, a feliz esperança que deve ser testemunhada! Onde? Quando? Como? No interior dos dramas da carne humana que sofre (…) A esperança é a possibilidade de permanecer firme no meio das adversidades, de não desanimar na tribulação ou diante da barbárie humana… Esperar e agir com a criação significa, antes de mais, unir forças e ajudar a repensar a questão do poder humano (…) A terra está confiada ao homem, mas continua a ser de Deus (cf. Lv 25, 23) (…) Por isso, pretender possuir e dominar a natureza, manipulando-a a seu bel-prazer, é uma forma de idolatria (…) A salvaguarda da criação não é apenas uma questão ética, mas é eminentemente teológica: na realidade, diz respeito ao entrelaçamento entre o mistério do homem e o mistério de Deus (…)».
[1] O Nosso Futuro Comum, Meribérica/Liber Editores, Lisboa, 1991.
[2] Através da Conferência de Rio (ONU, 1992), que fomentou a elaboração da Carta da Terra (2000). A ONU elaborou os oito Objetivos de Desenvolvimento humano do Milénio (ONU, 2000-2015), a que se seguiu a Agenda 2030 com os seus dezassete objetivos ainda em vigor. A par deste processo, as Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, destinadas a estabilizar a produção de gases de efeito de estufa e controlar o aquecimento global, iniciaram-se em Berlim em 1995 e realizam-se anualmente com a designação de COP – Conferência das Partes. A última COP 28 teve lugar em Dubai, de 30/11 a 12/12/2023.
[3] Mensagem do Papa Francisco para a celebração do Dia mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, 1 de setembro de 2016.
[4] Audiência do Papa Francisco a um grupo leigos ecologistas vindos da França, 3 de setembro de 2020.
[5] Mensagem do Papa Francisco para a celebração do Dia mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, 1 de setembro de 2019.
[6] Mensagem assinada em conjunto pelo Papa Francisco, o Patriarca Ecumênico Bartolomeu e o Arcebispo de Cantuária Justin Welby para a proteção da criação, 1 de setembro de 2021.
[7] Spes non confundit – A esperança não engana (Rm 5, 5), Bula de proclamação do Jubileu ordinário do ano 2025.
[8] Por exemplo em Ms A, 51v, 72r; Ms B, sendo um passarinho e não uma águia; Ms C, 9v.
[9] Mensagem do Papa Francisco para a celebração do Dia mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, 1 de setembro de 2024. O site Tempo da Criação disponibiliza o Guia de Celebração para 2024, com todas as atividades ecuménicas, reflexões e orações comunitárias e pessoais : https://seasonofcreation.org/pt/. Em Portugal, a Rede Cuidar da Casa Comum está a preparar os eventos dos dias 4 e 5 de outubro: https://casacomum.pt/tempo-da-criacao-ter-esperanca-e-agir/