Dez 10, 2024 | A luz obscura, Espiritualidade

Professor universitário. Carmelita secular

Uma interpretação mística dos extremismos políticos

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O maior exemplo atual de perigosa polarização vem-nos dos Estados Unidos. O fenómeno é também observado na Europa com matizes ligeiramente diferentes, que dependem da especificidade política e cultural de cada país mas que, sem dúvida, replicam o padrão essencial: uma ala ultra-conservadora, a que, por falta de melhor termo, podemos chamar de “extrema direita”, e uma ala que se lhe opõe, e que também na falta de melhor palavra, vou chamar de “ultra-progressista”, mas que também se chama habitualmente de “extrema esquerda”. O que me levou a fazer esta pequena reflexão foi a intuição de que, de ambos os lados, há qualquer coisa de profundamente errada na relação com o divino. Sabemos que o afastamento de Deus conduz à solidão e ao desespero. Neste caso gerou aberrações políticas. Não sei se vou conseguir descrever bem esta intuição mística sobre conceitos políticos, mas vou tentar.

Vivemos tempos extremados e a polarização política está a atingir níveis perigosos. Por um lado, é um facto facilmente verificável nas notícias mas, por outro, também é verdade que a História está cheia de tempos verdadeiramente extremados, de fações terrivelmente opostas e de muito drama, batalhas e sangue. Por isso, não estou ainda muito convencido que estejamos a viver os piores tempos de seja lá o que for. De qualquer forma, posso recorrer à minha memória e não me apoiar em interpretações históricas subjetivas.

A minha memória só me consegue fazer recuar cerca de 50 anos, até aos anos 70, mas é perfeitamente suficiente. Lembro-me, por esses anos, de um dia acordar com gritos no andar de baixo. Era a minha mãe a discutir política com a vizinha de baixo. Quem, como eu, viveu os anos do 25 de abril na idade da escola primária, deve lembrar-se de como aqueles anos foram realmente polarizados. Havia bombas e terroristas, reacionários e revolucionários, patrões e trabalhadores, comícios e sessões de esclarecimento, cartazes colados nas paredes e pinturas revolucionárias…Lembro-me também que a minha mãe tinha medo que um colega do meu pai lhe preparasse uma emboscada na rua, com os capangas do partido, porque eles eram obviamente de cores contrárias. Discutia-se com ardor a política e o heroísmo dos políticos (os da sua cor, claro). Famílias e amizades foram desfeitas por causa da dialética intolerante que se espalhou como um rastilho pela sociedade Portuguesa. Tudo isto me faz lembrar agora, à distância, o comentário que Sir Arthur Eddington fez sobre as discussões inflamadas que se seguiram à popularização da teoria da relatividade, no início do século XX. Também aí havia apaixonados pela nova teoria e seus detratores ferozes. «O que une os que mais alto gritam de cada lado das barricadas» – dizia Eddington – «é a completa ignorância sobre aquilo de que estão a falar». Com tudo isto, o que quero dizer é que a polarização da sociedade é um fenómeno recorrente; que não me parece que estejamos numa época particularmente polarizada; e que a ignorância parece ter um papel importante no extremar das posições. Em qualquer dos casos, não há dúvidas de que vivemos uma dessas épocas, e que é preciso ter cuidado.

O maior exemplo atual de perigosa polarização vem-nos dos Estados Unidos. O fenómeno é também observado na Europa com matizes ligeiramente diferentes, que dependem da especificidade política e cultural de cada país mas que, sem dúvida, replicam o padrão essencial: uma ala ultra-conservadora, a que, por falta de melhor termo, podemos chamar de “extrema direita”, e uma ala que se lhe opõe, e que também na falta de melhor palavra, vou chamar de “ultra-progressista”, mas que também se chama habitualmente de “extrema esquerda”. O que me levou a fazer esta pequena reflexão foi a intuição de que, de ambos os lados, há qualquer coisa de profundamente errada na relação com o divino. Sabemos que o afastamento de Deus conduz à solidão e ao desespero. Neste caso gerou aberrações políticas. Não sei se vou conseguir descrever bem esta intuição mística sobre conceitos políticos, mas vou tentar.

Comecemos pela ala da extrema direita. Há uma série de características gerais bem conhecidas, como o conservadorismo, uma certa forma de entender o patriotismo e os verdadeiros valores da nação, a questão da imigração, etc. Mas o aspeto mais relevante para esta discussão é que, de uma forma geral são também católicos que se identificam como “católicos tradicionais”. Esta descrição é uma contradição em termos. Não há, em rigor, católicos tradicionais e católicos progressistas. A Igreja tem uma doutrina, que não tem mudado, essencialmente, ao longo dos tempos e, quando reavalia o seu magistério à luz da evolução da sociedade, fá-lo em ampla concordância de todo o clero, sob a direção do Papa. Portanto, há uma igreja católica, não há uma igreja católica conservadora e outra progressista. Mas isso não impede que haja uma franja de católicos que não se revêm muito bem na Igreja atual. Assim, hesito em chamá-los de católicos. Eles dizem que são. Dizem que é possível gostar do Benfica sem gostar do seu Presidente. Eu acho que é pior. Eu acho que eles dizem que são do Benfica mas a verdade é que não percebem patavina das regras do futebol… mas adiante, continuemos por agora a chamar-lhes de católicos. Há até um número considerável destes católicos que criticam o Concílio Vaticano II (CVII) e nele veem a origem do declínio da Igreja. Por isso não reconhecem o CVII como fonte doutrinal. E no fim da linha da desconfiança, há finalmente os sedevacantistas, que consideram que a cadeira de São Pedro está vazia depois de Pio XII, já que João XXIII e os Papas seguintes abraçaram as heresias que saíram do CVII. Para estes tradicionalistas, a missa nunca deveria ter deixado de ser celebrada em Latim. E este é um bom exemplo para explicar o meu ponto. Não quero dizer, obviamente, que todas as pessoas de extrema direita sejam católicos tradicionalistas. Mas muitos são. E muitos outros inspiram-se neles, adotando diferentes percentagens de tradicionalismo na sua vivência religiosa. Não se pode negar que o rito latino tem a sua beleza especial. Mas o que eu entendo acima de tudo, como católico, e certamente também a larga maioria dos outros católicos, é que a opção pelo rito latino é apenas uma questão de forma. A forma é importante, que não haja dúvidas sobre isso, pois nós também rezamos com o corpo, e a atitude corporal, bem como as orações vocais, refletem e criam a atitude interior. Mas o rito latino é uma das formas possíveis. A mesma comunhão com Deus pode ser alcançada na missa em Português. E esse é precisamente o conteúdo, que é independente da forma: a Eucaristia é o próprio sacrifício do Corpo e do Sangue do Senhor Jesus. Então porquê essa fixação no Latim? Tudo indica que estes católicos perderam a ligação ao conteúdo e ficaram apenas agarrados à forma, como a uma casca sem interior. Este é o comportamento que conhecemos bem nos Evangelhos, através dos fariseus. Agarrados aos preceitos externos, são totalmente desprovidos de compaixão. Falam constantemente de Deus, da boca para fora, mas não O trazem no coração. As suas ações não são motivadas pelo amor a Deus, mas por um escrúpulo ritual que apenas serve para proteger os interesses da sua própria classe privilegiada. E esta é a primeira intuição sobre a extrema direita: ancorada em supostos valores católicos tradicionais é uma reminescência dos fariseus dos Evangelhos. Sim, os supostos católicos de extrema direita são os novos fariseus. E não nos esqueçamos que os fariseus foram, em última análise, os verdadeiros responsáveis pela crucifixão de Jesus.

Um pouco antes das eleições americanas interrogaram o Papa Francisco sobre uma possível indicação de preferência. Evidentemente, os trumpistas pensaram que ele não teria dúvida em deixar uma pista para o lado de Trump, porque, evidentemente, se achavam os escolhidos de Deus para fazer a América grande outra vez (mas talvez não os vizinhos). Por outro lado, os democratas também pensaram que o Papa não teria dúvidas em dar uma indicação para o lado de Kamala, quanto mais não fosse para fazer uma demarcação clara relativamente à intolerância republicana. Pois a resposta do Papa Francisco foi a óbvia: “Nenhum!” – pois se um não mostra respeito pela dignidade humana pela forma como propõe tratar os migrantes, enquanto a outra faz do aborto uma das bandeiras da campanha, o que pode um católico dizer senão que ambos cruzaram linhas vermelhas e que ambos têm uma visão interesseira sobre a dignidade da vida?

A dissonância cognitiva que existe entre dizer-se católico e ter um discurso de ódio mostra que a verdadeira conversão do coração não deve ter acontecido. Também não há evidência de frutos dessa conversão, como a humildade ou a caridade. Ao contrário, parece haver um orgulho exacerbado. De vez em quando leio textos ou comentários de algumas pessoas que parecem ter sido infetados por este vírus do tradicionalismo. A ideia com que fico é que, quando falam da Igreja, fazem-no de uma posição de superioridade; e de como são pios e notáveis. E partilham generosamente os seus conselhos com os pobrezitos que por aí andam sem luz; mas escrevem-no de tal forma que é como se dessem uma chapada na cara do leitor. Mostram implicitamente uma vaidade oculta em ser católico. Mas a Igreja, tal como a vejo, só pode ter uma atitude de acolhimento simples e despretencioso. E não vejo isso nos novos fariseus.

Resumindo o que disse até agora, a extrema direita são os novos fariseus. Gente que invoca Deus, a tradição e a Pátria mas não tem amor ao próximo. E constituem um perigo porque o seu credo não é sustentado em verdadeira espiritualidade. Faltando a verdadeira espiritualidade, que consiste na escuta paciente de Deus, os novos fariseus só podem ler as Escrituras pela lente humana, o que leva ao enviesamento do interesse próprio.

Mas então e a extrema esquerda?

O sentido do Sagrado foi uma característica universal, observada em todos os povos e em todas as épocas, até há pouco tempo. A dessacralização da civilização ocidental começou no Renascimento. No entanto, mesmo durante os séculos seguintes, com a razão a prevalecer cada vez mais sobre a fé, sempre houve uma noção de lei natural. Assim, podemos dizer que antes do Renascimento a visão do mundo se centrava em Deus e que a partir daí se centrou no Homem Racional, que consegue interpretar e controlar o mundo físico com base na sua razão, sem necessitar de recorrer a Deus. Bem, pode ser uma descrição simplória, mas parece-me que é suficiente para explicar o meu ponto de vista. Pois bem, então ponto central é este: depois do Homem Razão, veio o Homem Vontade. E a ascenção do Homem Vontade é também a ascenção da nova extrema esquerda.

Mas o que é o Homem Vontade? O Homem Vontade é aquele cuja vivência tem apenas uma bitola: ele próprio! Isto gera naturalmente todo o género de aberrações, porque se eu sou a referência de mim próprio, então tudo é possível. Por exemplo, o argumento mais habitual a favor do aborto é «porque o corpo é meu». Isto é uma manifestação do delírio a que a aplicação do princípio da auto-arbitragem conduz. É também um sinal de revolta contra a tal lei natural de que falei acima. Essencialmente, o Homem Vontade quer que seja assim, porque sim. Outro exemplo é o da pressão para permitir mudanças de sexo em tenra idade. Porque é que se há de insistir em dar liberdade de decisão a quem nem sequer tem ainda totalmente formada a zona frontal do cérebro responsável pelas decisões? Parece que a febre legislativa nestas matérias tem a motivação (in)consciente de não deixar que o respeito da lei natural venha a inviabilizar a vontade do Adolescente Vontade. Também é por isso que o movimento woke está associado ao revisionismo histórico (às vezes até faz algum sentido, mas na maior parte das vezes é uma idiotice estéril). Porque, no fundo, tudo tem de ser negado, para que possa triunfar a minha verdade, mesmo que parcial, mesmo que mal-informada. O “positivismo tóxico” que invade as redes sociais e os livros de auto-ajuda tem também a sua origem no aparecimento do Homem Vontade. «Podes ser o que quiseres, basta querê-lo». Sem dúvida que a motivação e o trabalho são muito importantes. Mas na maior parte das vezes, não basta querê-lo. E omitir essa parte da história tem levado gerações de jovens à desilusão e à frustração.

Nesta ideia de Homem Vontade cabem outros extremismos políticos. Por exemplo, as autocracias são manifestações de Homens Vontade ditadores. Um Homem Vontade não tolera que a sua visão do mundo seja discutida. Porque, evidentemente, o mundo é como ele acha que tem de ser. Por isso as ditaduras não permitem o contraditório. É curioso notar que também o movimento woke se tornou uma ditadura de opinião. Todas as opiniões divergentes sobre os «temas fraturantes» são imediatamente condenadas na praça pública por uma multidão de inquisidores woke e a sentença é terrível: xenófobo, homófobo, misógino… Há histórias reais de jornalistas despedidos porque ousaram dizer coisas banais como «a biologia do homem e da mulher é diferente». Enfim,…o Homem Vontade é sempre um ditador.

Assim, a segunda intuição, sobre a nova extrema esquerda é esta: é o resultado da rejeição da lei natural (e portanto de Deus, mas já nem vou por aí) e pela sua substituição pela lei hedónica do eu, como referencial absoluto.

Se pensarmos noutras questões mais clássicas ligadas à esquerda, como a da propriedade coletiva, também aqui há alguns traços que podem ser descritos por esta intuição. Por exemplo, a economia soviética falhou, em grande parte, porque o sistema insistiu em acreditar no «homem novo do socialismo», que nunca existiu. Mas já me estou a alargar demais.

Para acabar, é importante dizer que, naturalmente, há uma esquerda saudável e uma direita saudável. No entanto, um católico dificilmente se identificará integralmente com qualquer um deles. Por exemplo, quando o Papa Francisco apela à conservação da Natureza, está a tomar uma posição tradicionalmente mais de esquerda. E incomoda os setores tradicionalmente mais à direita, porque a conservação da natureza tende a colocar obstáculos às empresas. Por outro lado, quando o Papa defende uma iniciativa privada conscenciosa, está, apesar de tudo, a assumir uma atitude de direita, defendendo os bons empresários, o que incomoda os setores mais à esquerda. Mas dentro dos limites da dignidade humana, do respeito pelas opiniões contrárias e de um saudável exercício democrático, é possível ser-se católico e mais de esquerda ou ser-se católico e mais de direita. Até porque o reino de Jesus não é aqui e ele não nos deixou grandes orientações políticas e económicas. O que um católico não pode ser é de extrema direita ou de extrema esquerda se estas opções políticas ferirem a dignidade humana e a lei natural.

Rui Guerra

Professor universitário. Carmelita secular

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