Os debates sobre igualdade de género têm-se multiplicado, mas nem todos se referem ao mesmo assunto. Pretendo, com esta breve reflexão, partilhar a minha humilde perspetiva, a partir do que tenho lido, estudado e pensado. Para se compreender melhor o que pretendo explanar, deixem-me contar-vos um pouco da minha história.
Em 1996 entrava para o Mestrado em Filosofia de Expressão Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Quando, na entrevista de seleção me perguntaram porque razão desejava fazer a minha tese sobre a emancipação da mulher num mestrado de filosofia respondi que se a filosofia não trata da vida, então não trata de nada que realmente tenha interesse. Assim foi. Deixaram-me entrar pela aventura a que me tinha comprometido e abriram-me outras portas ao pensamento, que se tornaram fundamentais para o meu desenvolvimento pessoal e intelectual. Ali pude contactar mais de perto com as preocupações do Pe. António Vieira com os Direitos Humanos e com tantos outros pensamentos em português, acerca do direito à educação das mulheres, já desde o século XVIII, como o que nos deixou escrito Luís António Verney no seu “Verdadeiro Método de Estudar”.
Terminada a tese, que versou sobre a obra mais importante escrita em Portugal [1]sobre a condição feminina no século XIX – “A mulher e a vida ou a mulher vista debaixo dos seus principais aspetos” -, que data de 1872, de José Joaquim Lopes Praça, eminente professor de direito constitucional da Universidade de Coimbra, começou a tentativa de encontrar patrocínios para a publicação do trabalho. Demorei 7 anos a conseguir um patrocínio para a publicação (desde 2000 até 2007) e ele veio, não da Câmara Municipal de Alijó, de onde o autor era originário, nem da Câmara de Montemor-o-Novo, onde o autor foi professor antes de casar com a sua esposa (D. Elisária Eugénia da Mata e Costa). Quem veio a patrocinar a publicação da minha tese de mestrado foi a bisneta de Lopes Praça. O que me diziam sempre as editoras era que o tema não tinha leitores e que a publicação não era rentável. E tinham razão!
Após esta breve narrativa, torna-se mais fácil entender que os temas da emancipação da mulher ou da igualdade de género têm poucos estudiosos em Portugal. Contraditoriamente, o assunto tem obtido nos últimos anos, por força das temáticas obrigatórias definidas na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania uma maior visibilidade e, por falta de lucidez, intencional ou não, alguma confusão conceptual, colocando-se no mesmo grupo de discussão problemáticas de âmbito social e político ao lado das de âmbito sexual e de saúde mental.
Ao contrário do que se pensa, este não é um tema fraturante como o aborto ou a eutanásia, mas é incómodo, talvez mesmo muito incómodo. E a razão para isso é que nos coloca diante dos olhos a nossa responsabilidade na colaboração silenciosa com as injustiças praticadas e permitidas contra as mulheres durante demasiado tempo e que ainda se podem encontrar em todas as sociedades, incluindo a sociedade portuguesa. Desde a tolerância face à violência doméstica (“em briga de marido e mulher não metas a colher”) até às diferenças claras no direito ao emprego e a salário igual para trabalho igual, poder-se-ia discutir sobre uma grande panóplia de assuntos, todos eles muito mais fundamentados documentalmente, na atualidade, por força dos avanços da investigação social. Basta consultar os indicadores-chave sobre igualdade de género em Portugal (CIG-Mag_2), publicados pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, para se ter acesso à evolução da situação portuguesa até 2017, ou o site estatístico PORDATA (PORDATA – Base de Dados de Portugal) para se reconhecer que à medida que aumenta o grau de qualificação a diferença salarial, para a mesma função, entre homens e mulheres se situa acima dos 26%. Algumas diferenças ocorrem também no campo político, onde só por força de uma lei de paridade é que se verificou o aumento do número de mulheres nas listas dos partidos às eleições.
Quando nos questionamos sobre quais serão as razões pelas quais isto continua a acontecer uma delas é o facto de pensarmos que o que acontece “é natural” ou “sempre foi assim”. É o facto de herdarmos padrões de pensamento e comportamento que nos levaram a admitir como “naturais” formas de tratamento discriminatório entre pessoas que dificulta as mudanças sociais para formas de tratamento mais humano. A crença de que “sempre” se agiu de uma determinada forma não legitima por si só que se continue a agir do mesmo modo. As desigualdades sociais não são um produto da natureza, mas da cultura. Jesus Cristo desmontou muitos destes padrões legitimadores da violência com perguntas e respostas simples, sobrepondo a lógica do poder e da dominação à lógica da humildade. No Evangelho de S. Mateus, Jesus afirma: “Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu”; “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 18, 4; Mt 20, 16). O Evangelista S. Lucas, considerado o evangelista das mulheres, apresenta Jesus, em casa do fariseu Simão a dirigir a palavra a uma mulher considerada pecadora pública, a deixar-se tocar por ela e a perdoar-lhe os pecados, recuperando, assim a sua dignidade de pessoa e de mulher (Lc 7, 36-50), substituindo o padrão da condenação e da exclusão pelo padrão do acolhimento e da inclusão, substituindo o padrão pessimista e da profecia da desgraça pelo padrão do perdão e da esperança. Outras situações são narradas nos Evangelhos[2], onde uma e outra vez Jesus se deixa tocar por mulheres consideradas publicamente impuras, chega a curá-las ao Sábado, a dirigir-lhes a palavra[3] e a libertá-las de todo o tipo de enfermidades, dando-lhes, assim, uma visibilidade, até aí, insuspeita, resgatando a sua humanidade. Na senda da sua pregação sobre o valor da humildade e a exigência de autenticidade que deve marcar o dom da nossa vida, Jesus apresenta como exemplo uma pobre viúva (Lc 21, 1-4), que havia passado despercebia, situando-se sempre num plano transcendente ao comum pensamento da sua época (e de todas as épocas) . Estes e outros factos levaram os seus discípulos a compreender a revolução mental que Jesus estava a produzir com as suas palavras e os seus gestos[4]. Jesus veio instaurar uma nova visão sobre o humano e restaurar a sua absoluta dignidade originária, independentemente de se tratar de um homem ou de uma mulher, questionando todas as práticas culturais e todos os padrões de pensamento que viabilizavam a menorização da pessoa pela sua idade, sexo, proveniência social ou enquadramento religioso e moral.
Uma outra questão que leva a pensar erroneamente sobre esta problemática da igualdade/ desigualdade está relacionada com o facto de se ter atribuído ideologicamente um sentido negativo à “desigualdade” no seu todo. Uma coisa é falarmos de igualdade de tratamento das pessoa perante a lei, em que qualquer desigualdade neste ponto é inaceitável. Outra coisa é falarmos de desigualdade enquanto a diferença que nos caracteriza a cada um, que define a nossa identidade determina a forma como vivemos, nos realizamos como pessoas e permite a própria propagação da espécie. Há “desigualdades” produzidas pela natureza, nomeadamente a diferença entre sexos: sexo feminino e sexo masculino. Neste campo, a natureza dita as regras e toda a produção conceptual em torno dos sexos adquire a sua legitimidade se respeita a expressão natural dos sexos. Esse aspeto é também claro nos casos de hermafroditismo, em que os seres hermafroditas desenvolvem como preferencial um dos sexos consoante as necessidades do seu contexto reprodutivo para garantir a manutenção da espécie e o equilíbrio da ocupação do território. Por mais abertura que tenha do ponto de vista conceptual, não tenho encontrado apoio em literatura científica para aceitar que a discussão sobre o “género” tenha atingido os níveis atualmente publicitados, com a emergência de uma diversidade de géneros que ultrapassa aquilo que a natureza nos permite considerar. Há, neste caso, alguma contradição, e até confusão, que importa relevar para que se possa pensar com lucidez sobre matéria tão complexa. Do ponto de vista, meramente conceptual, quando se fala de “género” estamos a referir-nos ao conjunto de características que culturalmente se atribuem ao sexo feminino ou masculino. Enquanto que o sexo é um facto da natureza, o género é um facto da cultura. Isto significa que os papéis sociais de homens e mulheres são definidos, transmitidos e aprendidos no seio de uma determinada cultura e como tal, podem ser transformados e até questionados, quando produzem situações de clara discriminação ou injustiça. É aqui que entra a discussão sobre a igualdade de género – igualdade no tratamento e na valorização das pessoas, sejam elas homens ou mulheres, a partir da organização cultural do papel dos sexos. Já quando de uma suposta variação intersexo (alguma indefinição no sexo, da qual o hermafroditismo é o único exemplo fisiologicamente possível) se procura legitimar uma variação intergénero, tornando impossível a construção da identidade da pessoa, estamos diante de um fenómeno cultural que visa a anulação da identidade e que é, em si mesmo, contra-natura e contra-cultura. É contra-natura, pois na natureza, os seres hermafroditas optam por desenvolver uma das duas hipóteses (masculino ou feminino) e no caso humano, as intervenções que têm sido feitas orientam-se para respeitar as características sexuais primárias e secundárias predominantes na fisiologia originária dos indivíduos. Não há como ser efetivamente masculino e simultaneamente feminino. É contra-cultura porque embora a cultura deva ser transformada por forma a ser inclusiva de todas as diferenças e de todas as sensibilidades, a identidade pessoal continua a ser um construto fundamental para uma personalidade mentalmente saudável e socialmente integrada. Uma pessoa sem identidade ou com uma identidade dúbia não é uma maravilha da natureza, é um caso preocupante de saúde mental, e deve ser apoiada na sua problemática própria. É que natureza e cultura não são estanques, como bem mostrou Edgar Morin no seu livro “O Paradigma perdido – a natureza humana em questão”.
A BBC publicou, em 2008[5], uma notícia que apontava para um artigo divulgado na revista intitulada “Biological Psichiatry”, australiana, apontando para uma descoberta científica que apresentava uma possível origem genética da transsexualidade. Recomendo a visualização do filme “A rapariga dinamarquesa”(2015)[6] para se compreender o drama vivido pela primeira pessoa a submeter-se a uma cirurgia de redesignação do sexo. Aí a questão é sempre da identidade e não a afirmação de uma indefinição da mesma. Como a mudança de sexo tem o seu paralelo na mudança de género, a utilização do termo “transgénero” suscita dificuldades conceptuais, na medida em que a transferência é simultaneamente de um sexo/género para outro sexo/género. A cirurgia e todo o tratamento que a acompanha, nomeadamente, o hormonal e o psicoterapêutico, têm como finalidade a construção de um género adequado ao sexo e não de um género indiferentemente do sexo. Por essa razão, me parece também contra-natura e contra-cultura o discurso que hoje circula nos meios de comunicação social, que pretende, socorrendo-se de histórias muito mal contadas, e ainda pior acompanhadas, passar a ideia de que até é moda não ter identidade sexual ou identidade de género. Já os filósofos gregos pré-socráticos afirmavam que o “ser ou é ou não é”. Nesta disjunção lógica a verdade só se apresenta de um dos lados da opção para o mesmo ser, no mesmo instante de tempo. Aristóteles estabeleceu três princípios lógicos para o pensamento humano acerca do que é: o princípio da identidade, o princípio da não contradição e o princípio do terceiro excluído. Com eles visava clarificar que um ente não pode ser e não ser, ao mesmo tempo. Assim, ainda que alguns tenham o desejo de ser tudo, ao pô-lo em prática, correm o risco de não ser senão nada e essa experiência traz consigo um enorme sofrimento. A rutura, hibridez ou ambiguidade na construção da própria identidade traduzem-se em problemáticas de saúde mental e fisiológica de difícil abordagem. O que acontece ao nível da mente, acaba por se repercutir no corpo. Dificuldades no conceito de si mesmo dão origem à rutura da identidade imunológica da pessoa. As correntes psicanalíticas modernas têm estabelecido uma forte conexão entre as doenças autoimunes e as problemáticas da construção da identidade[7]. Traumas e vivências dolorosas na infância, não tratadas nem saudavelmente reconfiguradas, podem estar na base de grande parte dos desajustes da vida adulta.
Algumas culturas resolveram como sabiam os problemas causados por experiências traumáticas nas crianças vítimas de abuso sexual, criando uma espécie de género indefinido, como os hijra, na Índia e no Paquistão, que são meninos castrados ritualmente, integrados numa seita e obrigados a vestir-se e a comportar-se como mulheres, havendo a crença de que tais pessoas têm o poder de abençoar ou amaldiçoar. Com esta forma de resolução cultural do trauma tenta a cultura recuperar o valor do rapaz vítima de abuso sexual. Hoje, porém, analisado o contexto sociocultural e económico em que isso acontece sabe-se que estas pessoas pertencem quase sempre a grupos vulneráveis, que o seu processo de transformação e a sua exploração são processos de violência e violação da dignidade humana, tendo despertado o alerta de organizações internacionais defensoras dos direitos humanos. Olhando para este exemplo, parece-me inevitável que a abordagem à problemática da violência de género tem de ser feita com base na distinção da sua origem e causas, para que se possa distinguir também o tipo de agressor e qual a melhor forma de promover mudança nas mentalidades que a geram, sendo que em qualquer situação está sempre a falta de respeito pela integridade da pessoa e pelo seu direito à autonomia. Toda a pessoa vítima tem, por isso, o direito de ser restituída à sua integridade através de uma terapêutica adequada e competente. É a nossa incapacidade de olhar para um mundo solitário, doente e fragilizado, que emerge da loucura de uma autonomia fora do plano de Deus (impossível nos termos – não há fora de Deus, porque em si Deus é a totalidade sem qualquer fronteira – talvez esta seja a raíz mais profunda do sofrimento humano), que nos leva a cair na ilusão de que a dor e a fratura identitária possam alguma vez ser saudáveis e suportáveis. Basta ler o salmo 2 com atenção para percebermos que precisamos de retomar a nossa relação com Aquele que tudo pode, tudo sabe, a todos conhece e a todos ama com amor incondicional e que não nos criou de uma forma indiferenciada, embora nos tenha dado um potencial quase ilimitado de desenvolvimento.
Considero, por isso, que todo e qualquer discurso que promove o modelo da indiferenciação sexual ou de género como forma de vida é tão prejudicial quanto os nossos padrões de repetição do preconceito, do estigma ou da exclusão. Ao afirmar-se “Filho do Homem” e ao ter escolhido uma forma de nascimento humana, sendo gerado e nascendo no seio de uma mulher; ao ter passado pelo mundo curando toda a espécie de males, tanto doenças físicas quanto mentais, e revolucionando a mentalidade dos seus discípulos, Jesus entregou-nos a resposta para a pergunta acerca de quem somos, e para todos os problemas que havemos de enfrentar na evolução temporal das culturas e das comunidades humanas e essa resposta baseia-se na misericórdia e na humildade, na compaixão e no fazer-se irmão de todos. É esta a atitude que nos permite vencer os obstáculos do preconceito e do fechamento à mudança de estruturas sociais e mentais injustas.
No Evangelho de S. João encontramos um exemplo fabuloso de como Jesus se faz pequeno com os pequenos. No episódio da mulher apanhada em flagrante adultério (Jo 8, 1-11), depois de se baixar para ficar ao nível da mulher que já estava prostrada, envergonhada, exposta na sua miséria, Jesus desafia os acusadores a atirarem a primeira pedra sob a condição de uma coerência absoluta: se não tivessem pecado. Com este desafio coloca-nos a todos despidos, despojados de fingimento, e compelidos a olhar para a nossa verdade profunda de pecadores, frágeis e sem legitimidade para julgar os outros, levando-nos a distinguir pecado e pecador, e colocando o mal no lugar do nada, daquilo que irá desaparecer, superado pelo poder do amor e do perdão, do respeito e da valorização da pessoa, que traz em si a declaração de amor de Deus expressa no salmo 2: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei”, como a designação do sentido de toda a sua história, seja homem ou mulher.
[1] Tendo eu lido todos os documentos disponíveis na época no acervo da Biblioteca Nacional e investigado documentos existentes noutros países europeus
[2] Cf. Lc 8, 43-48; Lc 13, 10-17;
[3] Cf. O diálogo com a Samaritana em Jo 4, 1-41
[4] Cf. Parábola do Juiz e da viúva em Lc 18, 1-5
[5] Cf. BBCBrasil.com | Reporter BBC | Cientistas dizem ter identificado gene ligado a transexualismo
[6] Um filme que retrata a vida de Einar Mogens Wegner, primeira pessoa a submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual
[7] Cf. A título de exemplo – CBP- CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE ou ainda o seguinte artigo SciELO – Brasil – Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: algumas considerações sobre o corpo na clínica Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: algumas considerações sobre o corpo na clínica